Uma investigação divulgada este mês, da responsabilidade da empresa finlandesa Check First, relata que cerca de 800 organizações de mais de 75 países, entre as quais vários meios de comunicação social, têm sido assolados por e-mails e menções nas redes sociais que os convidam a verificar alegações duvidosas que circulam, aparentemente de forma orgânica, nas redes sociais. Porém, ao que tudo indica, é uma operação mais organizada do que poderá parecer à superfície.
Em colaboração com a organização sem fins lucrativos Reset.Tech e com base em contributos fornecidos por dezenas de projetos de fact-checking ao nível internacional, constata-se que, por detrás desta “Operação Sobrecarga” – nome escolhido pelos autores do relatório –, estarão atores pró-russos que têm levado a cabo “ataques frequentes e bem coordenados, especialmente durante eventos importantes” e com impacto significativo sobre o continente europeu.
Mas quais serão, então, os objetivos de uma operação em larga escala como a que é agora revelada? Segundo o relatório, a mesma serve, em primeiro lugar, “como propaganda dirigida ao público russo através das redes sociais e páginas web locais para promover a agenda militar do Kremlin”. Mas não só: pretende ainda afigurar-se como uma técnica de “interferência estrangeira e manipulação da informação”, de forma a “enganar o público ocidental por via da imitação de entidades e indivíduos ocidentais”.
Ou seja, como explicou ao Polígrafo, Miguel Crespo, investigador do CIES-ISCTE (Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa) e especialista em combate à desinformação, “este tipo de informação, que está a ser difundida online e que, depois, é empurrada para os jornalistas e para os verificadores de factos, também serve para consumo interno na Rússia”. Não sendo apenas útil, pois, para “pressionar os jornalistas [que trabalham] noutras localizações, mas também para alimentar a narrativa pró-russa entre aqueles que já são apoiantes ou que têm dúvidas” sobre aquilo que devem (ou não) tomar como verdadeiro.
O modo de funcionamento da campanha
Na perspetiva deste investigador, a “primeira grande mudança” evidenciada na “Operação Sobrecarga”, em comparação com anteriores campanhas de larga escala que foram já alvo de análise, prende-se com a constatação de que os “jornalistas e verificadores de factos” são o verdadeiro “alvo” deste tipo de iniciativas. “Ou seja, [os atores] não estão a atacar instituições ou os cidadãos diretamente, mas sim a atacar os intermediários mediáticos”, notou Miguel Crespo, sobre esta que é uma campanha que classifica como sendo “organizada e profissional”.
Mas como é que se materializa, então, esse “ataque”? Para cada “narrativa” que possa ir ao encontro dos interesses russos, explica o relatório, um “conjunto de conteúdos manipulados” é, num primeiro momento, “publicado em canais de língua russa no Telegram e, depois, em páginas web conhecidas do Kremlin”. A campanha expande-se, depois, para o X (antigo Twitter), “onde os operacionais propagam o conteúdo falso e se envolvem com os meios de comunicação social, instituições e verificadores de factos” – através, nomeadamente, de interações diretas com os mesmos. A “última fase” prende-se com uma “campanha coordenada de correio eletrónico”, direcionada para essas entidades, “que aponta o destinatário para conteúdos previamente publicados no Telegram, no X ou em páginas web controladas”.
Tudo com vista a “sobrecarregar a comunidade global de investigação da desinformação e de verificação de factos, obrigando os especialistas a trabalhar horas extra para verificar e desmentir conteúdos falsos especificamente criados e divulgados para os atingir”, esclarece a investigação.
E de que modo este tipo de iniciativas pode contribuir para salvaguardar os interesses destes atores pró-Rússia? Para o investigador Miguel Crespo, “é uma lógica que parece um pouco contraproducente e ilógica, mas que, se pensarmos nela com algum detalhe, percebemos que é muito interessante”.
Elaborou o raciocínio: “Quem cria o conteúdo falso ou, pelo menos, quem o partilha e o envia aos meios [de comunicação social], parece saber que o mesmo é falso e, ainda assim, pede para que este seja verificado. Isto parece não fazer sentido. Mas, se pensarmos bem, se os jornalistas e verificadores de factos começarem a verificar esta avalanche de informação falsa que lhes é enviada, então deixarão de verificar a informação que é realmente relevante, seja ela verdadeira ou falsa.”
Existe ainda, na ótica do investigador, uma “segunda questão” que deve ser tida em conta, tendo, para isso, recordado uma “máxima” célebre: “Falem bem ou falem mal, mas falem de mim.” Assim, “se for feita a verificação de algumas dessas falsidades, mesmo que digamos que elas são falsas, acabamos por dar-lhes visibilidade”, acrescentou o especialista, considerando que isso é algo que “pode ter impacto”.
As narrativas predominantes
Com base no contributo fornecido pelas dezenas de projetos de fact-checking a nível internacional que colaboraram com esta investigação, foi possível identificar os temas mais proeminentes que constavam nos e-mails enviados, às redações, com pedidos de verificação de informação. Nesse âmbito, destaca-se a “disseminação de notícias relacionadas com os media russos e ucranianos”, geralmente relacionados com o conflito em curso no leste europeu, embora também seja dado grande relevo a “notícias políticas e eventos relacionados com os Jogos Olímpicos” que vão decorrer, a partir do próximo mês, na capital francesa, Paris.
Temas em tudo semelhantes aos dos conteúdos desinformativos que têm vindo a ser disseminados, nas redes sociais, no âmbito desta campanha: sejam eles vídeos manipulados com os logotipos de meios de comunicação social respeitados (de modo a credibilizar a narrativa veiculada) ou alegadas capturas de ecrã de artigos que aparentam ser publicados em sites de notícias reputados (ainda que não o sejam), entre outras estratégias. As narrativas mais comuns, por exemplo, nos vídeos analisados no âmbito deste estudo prendem-se, nomeadamente e por esta ordem, com: a guerra na Ucrânia; os principais eventos públicos a realizar-se na União Europeia em 2024, como os Jogos Olímpicos de Paris e o Campeonato Europeu de Futebol da UEFA, na Alemanha; e a crise económica em curso na Europa.
Os países afetados
No leque dos países mais afetados por este tipo de estratégia, destacam-se França e a Alemanha, revela a investigação. Algo que, na ótica de Miguel Crespo, faz sentido no âmbito de uma campanha de “desinformação organizada” a nível “internacional”, como é o caso. Isto porque as mesmas têm precisamente como “alvos prioritários”, na Europa, a “Alemanha, França e Grã-Bretanha”, devido ao “seu peso na NATO” ou “dentro da União Europeia”.
Até porque a “desinformação só funciona quando há polarização”, tendo recordado o “exemplo da guerra na Ucrânia” em contexto nacional. “Portugal foi, desde a primeira hora, após a invasão russa, o país onde mais consenso houve pró-Ucrânia. E, portanto, aquilo que acontece é que basicamente toda a desinformação pró-russa que foi chegando a Portugal, mesmo traduzida para português, não tinha grande tração”, recordou Miguel Crespo. Isto porque “a desinformação só tem tração se houver público que considera que essa informação é verdadeira e que a reproduza novamente”, acrescentou ainda.
Ora, no “caso da Alemanha e da França”, embora não sejam “os países onde há mais polarização nesta área”, constata-se que existe “polarização suficiente para que desinformação pró-russa tenha tração” nestes dois territórios. “Mais tração atrai ainda durante períodos eleitorais, como é o caso, porque há uma polarização que se transforma depois, ou não, em voto”, concluiu.
Sobre as ameaças que uma campanha desta natureza pode ter em Portugal, o investigador recordou, neste sentido, que “Portugal não é um alvo prioritário para a desinformação organizada internacional”, precisamente “pela dimensão do país” e “pelo seu peso na política internacional”. Ou seja, o facto de não ser “um dos países mais influentes” no âmbito de organizações como a União Europeia ou a NATO motivam estas forças destabilizadoras a desencadear ações, predominantemente, em Estados que o sejam.
Apesar disso, recordou que “a desinformação não tem fronteiras geográficas ou físicas e, portanto, vai evoluindo” – podendo, assim, chegar até outras nações que não tenham sido inicialmente visadas por tais iniciativas. Ainda assim, notou como, num outro contexto, já foi identificado “pelo menos um caso” de “tentativa externa de interferência política em Portugal”.
O que leva a concluir, no caso desta campanha de desinformação em concreto, que, ainda que não existindo “um esforço direto para atingir Portugal” – ou seja, os seus “cidadãos, instituições ou, até, meios de comunicação social” –, “obviamente que [o país] será um alvo”, ainda que não seja “prioritário”, elucidou o especialista.
As consequências
Uma campanha desta natureza, com as particularidades que lhe são inerentes, não podia deixar de ter um “impacto nos meios [de comunicação social]”, revelou, ao Polígrafo, Miguel Crespo. É que, se os fact-checkers que recebiam “100 pedidos de verificação de conteúdos que possam parecer relevantes por dia passam, de repente, a receber 200, isso vai impactar negativamente o seu trabalho”. Ou seja, será algo que “vai dificultar o seu trabalho, vai implicar mais esforço, mais recursos, tanto humanos como financeiros, e, portanto, piorará a atuação dos verificadores de factos e dos jornalistas”.
E explicou ainda, acerca da potencial eficácia de iniciativas deste género: “Nenhum verificador de factos, perante uma avalanche de pedidos de verificação ou de conteúdos que podem ser verificados, vai conseguir identificar rapidamente quais é que fazem parte de uma campanha e quais é que não fazem. Portanto, vão necessariamente perder tempo. E, portanto, ao perder tempo, vão fazer um pior trabalho ao final do dia.”
Na ótica de Miguel Crespo, uma campanha com as características daquela que é exposta neste relatório da Check First poderá ainda ter outra consequência digna de registo, em período de eleições para o Parlamento Europeu: o crescimento da representação parlamentar de forças eurocéticas, “mesmo que o objetivo direto [desta campanha] não seja esse”.
“A questão é a seguinte: quanto mais eurocéticos, negacionistas, nacionalistas nós tivermos no Parlamento Europeu, uma maior tendência haverá para que o Parlamento Europeu se foque em questões menos importantes ou estruturantes para o futuro da Europa”, explicou o investigador. Que elucidou, ainda, recordando que “um momento eleitoral é o melhor momento para desestabilizar as instituições”: “Quanto maior polarização houver dentro do Parlamento Europeu, menos efetivo e decisivo ele pode ser para o futuro [da União Europeia] e, portanto, isso põe em causa as instituições.”
Lembrando que “se continuássemos a recuar no tempo, percebíamos que desinformação ganha guerras” – fazendo, assim, uma alusão ao sucedido na II Guerra Mundial –, notou ainda outro impacto que pode derivar do recurso a este tipo de estratégia. Tendo em conta que “a Europa como um todo” se configura “como um dos grandes apoiantes da Ucrânia e, provavelmente, o mais importante no conflito com a Rússia”, conseguindo-se colocar “em causa o apoio europeu” ao primeiro desses países, as tropas russas acabariam, em última análise, por “ganhar a guerra”.