Desde há anos que o Parlamento Europeu tem vindo a debater e votar medidas para combater a desinformação. Considera que havia uma melhor preparação para enfrentar esta nova onda de desinformação que resultou da guerra na Ucrânia do que em situações anteriores?
Não. Se existisse essa preparação, a onda de desinformação não tinha tomado esta dimensão. É preciso que estejamos muito certos que por muito investimento que se faça, este tem der ser constantemente atualizado. Não é uma tarefa que se termine, é uma tarefa continuada e vai exigir um esforço permanente. Por mais estratégias que montemos para combater a desinformação, existe um poder criativo dos seus promotores e não o devemos subestimar, nem a forma como são capazes de mobilizar recursos e utilizar ferramentas para fazer circular essa desinformação. Trata-se de um trabalho de constante monitorização, mas também de readaptação das nossas ferramentas. Mas este combate faz-se também muito através da aposta numa boa imprensa independente e na aposta da educação dos utilizadores das redes sociais para que não assimilem a primeira informação que lhes surge e para que façam até o seu próprio fact-checking. E também promover a ação da sociedade civil e as plataformas de fact-checking que ela vai organizando.
A desinformação propagada nas redes sociais tornou-se uma arma de guerra?
Se recuarmos no tempo, alguns séculos atrás, vemos que a desinformação, as notícias falsas e os rumores foram sempre um instrumento de combate em qualquer guerra. Nesta guerra, toma uma outra proporção, porque hoje em dia temos uma capacidade de difusão de informação com uma velocidade e com níveis de manipulação através da utilização de determinadas técnicas que tornam este movimento algo avassalador comparado com os rumores ou as falsas notícias que se faziam passar, antigamente, para o lado adversário.
O que está a ser feito para atenuar as consequências dessa desinformação relacionada com a guerra na Ucrânia? Quais são as prioridades identificadas?
No último relatório do grupo da “Comissão Especial sobre a Ingerência Estrangeira em Todos os Processos Democráticos na União Europeia, incluindo a Desinformação” já apresentámos algumas recomendações para serem adotadas pela Comissão e pelo Conselho que, tendo um desenho geral, até porque o relatório foi debatido em março e tinha decorrido ainda pouco tempo da guerra, já perspetivavam o que estava a acontecer. Já com a pandemia de Covid-19 tinha existido um movimento avassalador de desinformação e tudo isso fez-nos ver o caminho que estávamos a trilhar e fosse a guerra, fosse um problema de uma crise comercial instalada, fosse uma questão política que se viesse instalar entre blocos, alguma coisa ia fazer gerar um movimento destes. Portanto, emitimos uma série de recomendações no sentido de fortalecer a monitorização, de haver uma intervenção mais assertiva na retirada de desinformação das plataformas sociais, sem com isto estar a violar o direito à informação, nem à liberdade de expressão, mas também não deixando que a desinformação progrida.
Depois podemos encontrar formulações consoante os instrumentos que vamos tendo ao nosso dispor, tendo em conta a evolução tecnológica e tudo o que está a acontecer. As soluções nunca são fechadas em si. Na sua implementação, podemos deitar mão de um instrumento ou outro que no momento se mostre mais assertivo e necessário. Há anos atrás não existiam vídeos deep fake, por exemplo. A tal evolução tecnológica que temos de procurar para combater a desinformação produzida com base nesse tipo de tecnologia. Tem de haver uma evolução constante.
A ligação da Rússia a campanhas de desinformação não é uma novidade, já tinha sido notória no referendo ao Brexit no Reino Unido ou na eleição de Donald Trump como presidente dos EUA. Esta forma de ingerência da Rússia já era um problema identificado e trabalhado pelo Parlamento Europeu?
Há quem aponte gastos na ordem dos 260 milhões de euros por parte da Rússia e por parte da China em campanhas de desinformação que são claramente prejudiciais. Era um problema que já estava identificado, sim, tanto na eleição de Donald Trump, como no Brexit e agora mais recentemente com a Covid-19. Uma onda de campanhas que foram surgindo ao longo dos últimos anos e que com um grande investimento que foi feito por parte desses países e de outros atacam as nossas democracias e o nosso modo de vida.
A decisão da União Europeia de bloquear todas as plataformas dos meios de comunicação estatais russos era realmente necessária? Com esse “apagão” ficámos sem acesso à informação consumida pelos cidadãos russos, terá sido uma boa decisão?
Confesso que tenho uma posição contrária. Nós temos que nos diferenciar claramente em relação aos instrumentos e à atuação desses países. Se criticamos a falta de democracia aos ataques prepretados nesses países, não podemos vir a seguir fechar esses canais. Temos é que ter mecanismos e formas de assinalar que esses canais difundem informação manipulada e condicionada, que não são livres e independentes, ou seja, que são veículos de propaganda de um determinado país.
É também uma questão de princípio, nós não podemos adotar os mesmo mecanismos de censura que esses países adotam e que não fazem parte da forma de atuar das democracias, fazem parte da forma de atuar das autocracias. Assistimos muito ao fecho de canais, à não abertura de canais de informação na Rússia e também na China, onde os sistemas são muito fechados. Por exemplo, em Macau, os jornalistas do canal “TDM – Teledifusão de Macau” viram ser-lhes imposta a diretiva do “amor à pátria”, quando só podiam emitir informação que estivesse em absoluta concordância com o Governo central chinês. Assistimos a estas situações em diferentes países autocráticos e ditatoriais. Não podemos, nós, democracias, ser empurrados ou deixar-nos empurrar para essas vias.

Tem afirmado em várias ocasiões que é necessário regular as plataformas digitais, como forma de proteger a democracia, mas salienta a necessidade de equilíbrio entre essa regulação e a não admissão de cedências à censura, à limitação da liberdade de expressão e ao direito de informar e ser informado. Como é que se chega a tal solução de meio-termo?
Para se chegar a esse meio-termo é necessário existir uma distinção. Os critérios têm que ser absolutamente claros, inclusive para o utilizador, que tem que ter claro qual o tipo de informação que pode, ou não, colocar nestes espaços. Não pode colocar apelos à violência, isso é claro. Não pode colocar discurso de ódio e não pode colocar notícias falsas. E a retirada desses conteúdos não pode ser feita só através de um algoritmo, tem de haver uma avaliação para lá do que é a informação que o algoritmo transmite de que ali pode estar um problema. Tem que haver uma análise clara sobre se existe um problema ou não, por uma pessoa capacitada para tal. Não podemos deixar tudo ao critério dos algoritmos. O algoritmo não tem capacidade de discernimento, de avaliação e o que vai acontecer é que vamos ter a retirada de informação válida e aí estamos a cair num processo de censura e de violação democrática.
Há estudos que apontam para o facto de as mulheres, minorias étnicas e membros da comunidade LGBTQIA+ serem alvos mais recorrentes (e vulneráveis) de ameaças, discurso de ódio, assédio ou perseguição online. Estas pessoas não deveriam ser mais protegidas?
Eu trabalho muita a questão dos ativistas de direitos humanos e dos jornalistas e, se analisarmos, estas categorias estão mais expostas online, mas dentro destes grupos existem ainda grupos que estão mais expostos, como por exemplo as mulheres. E isso nota-se sempre, mas ainda se evidenciou mais durante a pandemia. Portanto, esses grupos têm que ser particularmente protegidos e a denúncia de qualquer ação de assédio online a elementos destes grupos tem que ser imediatamente verificada e combatida.
Umas das respostas pode estar na auto-regulação das redes sociais?
Sim, com a tal definição de critério que mencionei e tornando-os públicos. Eu, como utilizador, tenho direito a saber quais são os critérios e depois utilizo ou não aquela plataforma consoante aqueles critérios me agradam ou não. Mas tem que ser muito claro, caso contrário cai-se em algo arbitrário que nos pode levar a qualquer momento a cair num caminho próximo de censura ou da violação da liberdade de expressão.
Considera justificado o bloqueio de dirigentes políticos nas redes sociais, como o Twitter fez relativamente a Donald Trump, por exemplo?
Se há um apelo sério e reiterado ao ódio e/ou à violência… Não estamos a falar de frases tontas, isso é outra coisa e temos de saber avaliar. O retirar a afirmação e realizar um pedido de desculpas também repõe a situação. Agora, apelos como aqueles que foram lançados por Donald Trump são complicados. Também Jair Bolsonaro tem tido muitas vezes um discurso de ódio e agora durante a crise pandémica foi uma autêntica via de desinformação que levava as pessoas por caminhos completamente errados. Arrastava multidões atrás dele durante o pico de infeções e desaconselhava a máscara quando ela era fundamental. Fazia também propaganda de medicamentos que não tinham comprovação científica e nem sequer eram adequados.
Esse tipo de informação tem que sair das redes ou a informação alastra e causa, por exemplo, um problema de saúde pública. Nunca se pensa que o presidente de um país seja capaz de induzir os seus cidadãos em erro quando está em causa um problema grave de saúde pública. Se isso acontece, é completamente anormal e esses conteúdos têm que ser retirados. Os apelos do Donald Trump para que as pessoas saíssem à rua e houvesse uma insurreição não podem ser de todo não tidos em conta. Bolsonaro ameaça fazer o mesmo nas próximas eleições. Esperemos que isso não aconteça e, se acontecer, esperemos que exista uma atuação por parte das redes sociais que evite a propagação de desinformação ou incitamento à desordem pública, que põe em causa a paz social.
Que importância atribui ao jornalismo de verificação de factos no âmbito do combate à desinformação?
A importância é enorme. Às vezes, eu mesma descubro que fui enganada e isso demonstra a importância das plataformas de fact-checking, porque se não existissem estávamos muitos de nós a ser enganados constantemente. E temos de apelar e apoiar cada vez mais esse tipo de instrumentos. Essa é, de facto, uma das melhores vias que temos para combater a desinformação no imediato.
E a aposta na educação e em iniciativas de literacia mediática, pode ser uma solução a longo prazo?
Vai demorar a formar as pessoas para tal. É algo que eu entendo que deve ser cada vez mais introduzido nas escolas e nos programas escolares. Estamos a preparar uma geração que vai ser muito diferente.
Existem diretivas europeias nesse sentido?
Sim. Para que se comece a trabalhar com os mais jovens no sentido da literacia. Além disso, também para a “terceira idade”. O facto de os idosos estarem muitas vezes sós e de não terem literacia mediática, torna-os particularmente vulneráveis, por exemplo, a burlas online, e temos que proteger em absoluto estas pessoas. Mas lá está, isto é um trabalho longo e duro de formação e preparação das pessoas para que não peguem na primeira informação que lhes chega.
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Nota editorial: O Polígrafo viajou a convite do Parlamento Europeu.