Há já vários anos que o Parlamento Europeu tem vindo a debater o tema da desinformação e a votar medidas com vista a combatê-la. Foi, inclusive, criada uma Comissão Especial para dar uma resposta a esta realidade, a par da ingerência estrangeira. O que motivou a sua criação?
Criámos esta Comissão Especial e a realidade veio depois demonstrar a importância do mesmo. Isto porque nós tivemos, recentemente, dois episódios muito importantes e decisivos – um deles é, obviamente, a agressão russa sobre a Ucrânia, que foi seguida de uma enorme estratégia de desinformação e “fake news”. Por outro lado, houve o caso Qatargate, que colocou em destaque as estratégias de interferência levadas a cabo por outros países sobre o Parlamento Europeu. Estes dois casos mostraram que esta Comissão tinha boas razões para ser criada.
Têm existido duas fases diferentes no trabalho desta Comissão. Uma delas passou por fazer um diagnóstico claro acerca da situação em que nos encontramos, em matéria de desinformação e “fake news”: também para sermos capazes de definir, de forma clara, o que são estes conceitos, bem como que papel desempenham na estratégia de interferência de países estrangeiros, que vai muito além do uso massivo das redes sociais para disseminar “fake news”. Penso que abrimos, assim, caminho a uma reflexão real sobre o tema.
Quais são os principais desafios que existem atualmente em matéria de desinformação no contexto europeu?
Primeiro que tudo, prendem-se com questões de literacia. Há muitas narrativas falsas que passam despercebidas porque produzem muito poucos “sintomas” e, por isso, habitualmente acabamos por ignorar o seu impacto. Mas é muito importante ter isso em conta. Até porque as pessoas acabam, dessa forma, por acreditar em tudo isso.
Diria, então, que potenciar a aposta na literacia mediática ajudaria a combater o problema? Dotar os consumidores de informação de mais ferramentas para reconhecer conteúdos com informação enganadora pode ajudar a combater o problema?
Completamente. Mas, ainda assim, é preciso dizer que a desinformação não passa apenas pela disseminação de “fake news”, mas sim pela adoção de uma estratégia. Existem formas, finalidades e objetivos que têm de ser considerados, e geralmente trata-se de uma estratégia que acaba por perdurar no tempo. Algumas delas pretendem conseguir um impacto imediato, mas outras são iniciativas de longo prazo, com o objetivo principal de erodir as narrativas democráticas e de minar as bases da democracia. E uma dessas bases fundamentais é a opinião pública, resultando num enviesamento psicológico e levando as pessoas a acreditar em coisas extraordinárias, em vez de temas comuns. Recorrem ao impacto daquilo que é mais espetacular para tornar as suas narrativas bem-sucedidas, na medida em que quando começámos a investigação sobre estes temas, concluímos que a desinformação, as “fake news” e outras estratégias desta natureza estavam já bastante consolidadas em muitos casos.
As próprias instituições europeias têm sido alvo de narrativas desta natureza. Quais têm sido as mais recorrentes?
A fonte de tudo isso é a Rússia, numa perspetiva de vingança histórica. A Rússia gostaria de ver uma divisão na União Europeia: prestou inclusive bastante apoio e teve grande influência na iniciativa separatista na Catalunha. Como se tem dito muitas vezes, sempre que existe um fogo na União Europeia, a Rússia aparece com um bidão de combustível para alimentá-lo. Mas isto acontece tudo numa perspetiva de vingança histórica. O Ocidente viu o Império Russo desintegrar-se e, portanto, esta é a consequência. Esta é uma das narrativas mais frequentes.
A outra importante é a ideia do declínio da Europa. Aí, a Rússia torna-se no verdadeiro guardião dos valores cristãos: de que o seu povo lutou contra os fundamentalistas na Síria e defendeu o legado cristão lá. E agora, na Europa, assolada pela imigração, onde existe uma “grande crise de identidade” e a narrativa LGBTI a circular – vários elementos de divisão interna e falta de coesão, como alegam -, dissemina a ideia de que a Rússia contrasta pela ideia de solidez. Isso é muito importante porque tem tido impacto em alguns segmentos da opinião pública europeia, e parte disso devido à influência da extrema-direita. Ultimamente, esta narrativa tem sido mais agressiva.
Desde a guerra na Ucrânia?
Desde a guerra.
A intervenção russa na disseminação de narrativas que fossem ao encontro dos seus interesses estratégicos sofreu alterações com a guerra na Ucrânia?
Primeiro, passaram a recorrer à narrativa de que eles não estão a invadir a Ucrânia, mas sim a lutar contra o Ocidente. Por isso, eles querem apresentar um enquadramento diferente da guerra. Eles estão a lutar contra o Ocidente, estão a lutar contra os Estados Unidos – o que faz com que a questão aumente de proporções, em vez de dizer que estão a lutar contra os ucranianos, que deveriam sucumbir aos primeiros dias da guerra. Agora, a narrativa passou a ser mais agressiva e focada, basicamente, na ideia de que a União Europeia está em guerra com a Rússia e não está, apenas, a auxiliar a Ucrânia. Alegando que o bloco europeu é uma parte ativa e que, por isso, está sujeita às consequências disso mesmo. É por isso que acredito que a estratégia de desinformação é direcionada especificamente contra a União Europeia com o objetivo de criar fraturas no seio da opinião pública, que tem mostrado uma impressionante unidade. Mas tem existido um debate crescente sobre o tema.
O documento expressa ainda uma particular preocupação face à ingerência chinesa no bloco europeu, para além da russa. Preocupação em que sentido?
Na China, as campanhas de desinformação são diferentes, em comparação com o caso da Rússia. Enquanto a Rússia está preocupada em corroer as bases políticas das democracias ocidentais, interferindo nas eleições, a China tem objetivos diferentes. Claro que tem a sua agenda política própria, mas eles não estão preocupados em converter Espanha ou Portugal num regime comunista. O que pretende é ter uma forte presença na Europa e, certamente, também em África e na América Latina. Eles estão muito mais interessados nisso, por via de uma narrativa anti-colonial. E, tal como a Rússia, a China tem muito dinheiro.
A China ainda está a tentar aproveitar a ideia de um país com dinheiro e sem agenda política agressiva. É meramente económica, porque eles precisam de recursos, embora também isso esteja a mudar. Durante muito tempo, esse foi o caso. E isso traz desafios sérios à União Europeia, quando se pretende estabelecer novas parcerias com países da América Latina, por exemplo.
O relatório mais recente da Comissão Especial sobre a Ingerência Estrangeira em Todos os Processos Democráticos na União Europeia (UE) refere que o Parlamento Europeu espera uma maior ingerência e manipulação da informação no período que antecede as próximas eleições europeias, em junho de 2024. O que motiva essas preocupações acrescidas?
Penso que o Parlamento Europeu tem sido um elemento muito importante, ao fornecer apoio aos esforços europeus e ocidentais para apoiar Volodymyr Zelensky na guerra. O Parlamento tem sido muito sensível face a essa matéria e forneceu um forte apoio à Ucrânia. Por isso, não é apenas dizer que o Parlamento fez declarações muito sonantes sobre o tema, tendo sido mesmo um ator político chave.
Por outro lado, a Rússia tem beneficiado da postura amigável por parte da extrema-esquerda, por ser anti-ocidental. Existe aqui uma certa nostalgia por parte da extrema-esquerda, pelo que esta ideia de Putin conseguir vingar-se do Ocidente é atraente para eles, de um ponto de vista emocional.
Estas são as principais preocupações numa altura em que as eleições europeias se aproximam a passos largos? O que podemos esperar de narrativas de desinformação sobre a União Europeia e as suas instituições até junho do ano passado?
São estas as preocupações, porque Putin sabe com o que pode contar. Por outro lado, temos a extrema-direita, que é anti-americana, que viu em Putin um “homem forte”, muito determinado e com valores fortes, pelo que acaba por ser sensível a esta narrativa do declínio da Europa. Vi alguns apoiantes desta extrema-direita – até escritores e jornalistas -, a descrever Moscovo como a “terceira Roma”, a verdadeira esperança para o Cristianismo. O que é algo improvável e assustador, até. Penso que o Putin está muito interessado em ver o desempenho destes dois extremos nas eleições para o Parlamento Europeu. Mas penso que aquilo que mais lhe interessa é ter um Parlamento Europeu fragmentado e um ambiente político tóxico. O principal interesse da Rússia, no que diz respeito a estas eleições, passa, concluindo, por um bom desempenho dos extremos e um Parlamento mais fragmentado.

É por estas razões que podemos esperar uma maior interferência por parte da Rússia nos meses que se avizinham?
Exatamente. E um ambiente mais tóxico, também. Iremos ver todo o tipo de “fake news”, bem como um discurso mais agressivo. Ninguém sabe em que ponto estaremos em maio ou junho do próximo ano, nem como a guerra terá evoluído. Mas independentemente do que acontecer com a guerra, mesmo que continue ou que a Rússia ou a Ucrânia sejam derrotadas, a Rússia é estruturalmente antagonista da Europa. Não há dúvida sobre isso.
O relatório citado dá conta de que a Rússia está a investir fortemente no financiamento de partidos políticos em países democráticos. Que preocupações isso suscita em matérias de desinformação?
Suscita preocupações quanto à disseminação de desinformação, mas também de outro tipo de narrativas.
Que intervenção tem Moscovo a esse nível?
Não passa apenas por dar dinheiro a um partido político. Passa também por ter os canais e os recursos financeiros para alimentar as organizações que disseminam estes conteúdos. As sanções terão dificultado tudo isto, mas a estrutura financeira da Rússia na Europa, até na Alemanha, é absolutamente impressionante. É o chamado lobby da Gazprom, que implica o patrocínio de eventos culturais, o financiamento de projetos culturais ou científicos, bem como a criação de seminários, conferências e outros eventos. E, claro, não esquecendo a publicidade muito lucrativa, também. Ocorre em dimensões muito diferentes.
Claro que ficamos aliviados por existir liberdade de expressão e que uma pessoa pode dizer que não concorda com a posição defendida pela Ucrânia e que esse país se torne membro da União Europeia. É perfeitamente legítimo. Mas quando esse argumento é parte integrante de uma estratégia e, de certo modo, de um planeamento para erodir as bases do nosso sistema político, passa a ser um problema. Porque não se trata de um escritor, de um cidadão que está a expressar simplesmente a sua visão, mas sim de um agente político.
Referimos já os movimentos de extrema-direita enquanto foco particular de preocupação nesta matéria. Como é que o Parlamento Europeu tem trabalhado para combater a sua ação em matérias de ingerência e desinformação?
Penso que muito trabalho tem já sido feito. Na minha opinião, a guerra na Ucrânia e as estratégias de humilhação do Parlamento Europeu têm tido algum efeito de imunização. Todas estas organizações sabem que nós também já temos conhecimento de todas estas práticas e do que elas estão, no fundo, a fazer. É algo muito mais consensual. Mas é também importante olhar para os processos eleitorais, como é exemplo a República Checa e outros países. Até em Itália, a par com França, onde a extrema-direita é mais robusta, mas sem ter grandes consequências políticas. Tudo isso mostra que estamos perante um assunto sério, que um Estado não pode combater sozinho o problema. Uma coisa é alguém simpatizar com a ideia de que a Europa está em declínio e que é preciso fazer algo contra isso, ou que existe uma crise em matéria de valores sociais e familiares, outra coisa é alinhar com alguém que assume ter um inimigo declarado.
De que forma estes movimentos trabalham para difundir ao máximo a sua narrativa? Existe um planeamento estratégico nesse sentido?
O custo da desinformação atualmente é muito superior do que anteriormente. Primeiro, não passa despercebida. Existem mais pessoas e mais recursos a trabalhar nisso. Mas também existe uma capacidade reforçada de resposta a isso mesmo.
Podem as instituições, nomeadamente europeias, trabalhar mais arduamente para tentar controlar a disseminação destas mensagens?
Sim, mas não apenas as instituições. Também os media, por via do “fact-checking”. Diria que o maior desafio, na minha opinião, passa por prevenir, a todo o custo, que a desinformação se torne no conteúdo dominante nos media. Visto que ele é mais fácil de monetizar. É um risco real em alguns países na Europa.
De que forma se pode atingir esse objetivo? E diria que é concretizável?
Temos aqui vários problemas. Primeiro, os governos têm de reconquistar uma maior credibilidade enquanto fontes de informação. Essa é a base. E têm também de comunicar melhor. Em segundo lugar, é preciso considerar a crise no modelo de negócio no jornalismo tradicional e convencional. O jornalismo – o jornalismo bom e talentoso – perdeu-se, e as condições precárias de muitos jornalistas são um problema real porque impedem a realização daquilo que devia ser a missão do jornalismo: fazer a filtragem do conteúdo e de dar garantia de uma informação confiável para o público.
Considera, então, que o jornalismo de verificação de factos é importante neste combate à desinformação?
Isso mesmo: e falo daqueles que recorrem verdadeiramente a um processo de “fact-checking”, que agora é desempenhado, em larga medida, fora das organizações de media convencionais. Enquanto formos capazes de consciencializar relativamente a isso, o público irá, na minha opinião, escolher boa informação em vez de má informação. Aquela ideia de que o digital equivale a informação menos rigorosa, é devastadora.
Para além da disseminação de desinformação, que outras formas de ingerência estrangeira têm tido particular impacto em fenómenos eleitorais na União Europeia – e que se esperam que sejam motivo de inquietação nas eleições europeias que se avizinham?
Na minha opinião – e diria que em períodos de eleições ou fora deles -, a principal inquietação prende-se com a cibersegurança. E não estou a falar de preocupações relativamente a uma cidade ficar totalmente às escuras porque alguém interferiu com o software de uma companhia elétrica. Não é apenas isso. Mas sim ser capaz de causar perturbações – mesmo a um nível muito limitado – nos serviços públicos para, uma vez mais, atacar a confiança do público. Lembro-me até que, na última vez que aprovámos uma resolução contra a Rússia, nesse mesmo dia tivemos um incidente muito grave de cibersegurança aqui no Parlamento Europeu.
Todo este cenário levou os eurodeputados a apelarem a uma estratégia coordenada para aumentar a resiliência da UE à ingerência estrangeira e à manipulação da informação, com vista a conceder um maior grau de proteção às próximas eleições europeias.
Primeiro que tudo, é preciso que sejamos capazes de perceber o que se passa no ambiente digital. E depois, claro, é preciso essa estratégia coordenada. Não é possível disseminar a ideia de que o Papa apoia Putin, por exemplo. Esta é uma história grotesca, diria. Mas que funcionou nas redes sociais e que teve um impacto. É muito difícil restaurar a verdade nestes casos.
O que deve, então, incluir essa estratégia?
Sabemos que temos em breve uma eleição, e não se trata apenas de uma eleição nacional, mas sim europeia. É uma enorme palco para ações de interferência estrangeira. Por isso, temos de fazer os nossos próprios compromissos enquanto Parlamento, para conseguir colocar em andamento as medidas necessárias de monitorização e para acompanhar o que está a acontecer. Mas, na minha opinião, precisamos de um compromisso, um acordo político entre todos os grupos políticos que concorram a esta eleição em matérias de desinformação. Até porque, durante este período, vamos ver de tudo: desde o uso da IA (Inteligência Artificial) degenerativa, mas não só. Vamos ver coisas completamente impensáveis. Mas, na minha opinião, seria importante conseguir um consenso claro nesta matéria e um compromisso mútuo, o mais rapidamente possível.
De que modo estão as instituições europeias a trabalhar, quer no sentido de promover o impacto destes projetos de verificação de factos, quer de aumentar a literacia mediática das populações dos diferentes Estados-membros?
A primeira coisa que as instituições deviam fazer, como disse, é fornecer informação de qualidade e credível. Além disso, precisamos de proteger os jornalistas e o jornalismo enquanto atividade, algo em que o Parlamento Europeu tem sido altamente ativo. A missão passa também por proteger a transparência, ou seja, ajudar os jornalistas a chegar até fontes credíveis. Podemos ainda fornecer financiamento para programas específicos de formação, direcionados para combater as lacunas e vulnerabilidades do jornalismo atual, bem como a desinformação. Mas é muito difícil dizer o que podemos fazer quando em causa está o ambiente mediático, porque tal levanta várias suspeitas sobre o fim que se está a dar ao dinheiro. Ainda assim, é algo que pode ser feito de forma muito transparente. Mas não nos enganemos: podemos ter os serviços de inteligência a detetar o que se passa nesse domínio, mas se nós estamos a falar de um combate à contaminação da opinião pública e de uma tentativa de preservação do espaço público, o jornalismo e os media são uma parte crucial da equação.
Concluindo, diria que estamos atualmente mais bem preparados para combater o fenómeno da desinformação do que quando o tema começou a ser debatido?
Na minha opinião, sim. Não diria que o trabalho está terminado, mas pelo menos estamos mais consciencializados sobre aquilo com que estamos a lidar. A pandemia fez-nos aprender imenso e agora, quando olhamos para o Brexit, já conseguimos entender a causa por detrás de tudo isso. Porém, a desinformação tornou-se mais direcionada e específica, enriquecida com mais dados.
É mais difícil de detetar?
Sim, também muito mais segmentada. Até porque, diria, um ataque de desinformação generalizado, dirigido a todo o tipo de pessoas, em certas circunstâncias pode funcionar, mas geralmente não é tão eficaz.
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Este artigo foi desenvolvido pelo Polígrafo no âmbito do projeto “EUROPA”. O projeto foi cofinanciado pela União Europeia no âmbito do programa de subvenções do Parlamento Europeu no domínio da comunicação. O Parlamento Europeu não foi associado à sua preparação e não é de modo algum responsável pelos dados, informações ou pontos de vista expressos no contexto do projeto, nem está por eles vinculado, cabendo a responsabilidade dos mesmos, nos termos do direito aplicável, unicamente aos autores, às pessoas entrevistadas, aos editores ou aos difusores do programa. O Parlamento Europeu não pode, além disso, ser considerado responsável pelos prejuízos, diretos ou indiretos, que a realização do projeto possa causar.