Portugal é um país onde as taxas de abstenção são marcadamente elevadas, mas o caso das eleições europeias tem sido paradigmático a esse nível. No último escrutínio dessa natureza, em 2019, a taxa de participação eleitoral em Portugal - ou seja, de eleitores que decidiram votar - ficou-se apenas pelos 30,75%, segundo dados do Parlamento Europeu. Tratou-se do valor mais baixo neste indicador desde que o país aderiu à União Europeia, em 1986.

Numa altura em que estamos a apenas oito meses das próximas eleições para a referida instituição europeia, que vão decorrer de 6 a 9 de junho de 2024, surgem algumas questões: as modalidades de voto podem ter impacto nas taxas de participação eleitoral? Poderá o voto online ser uma solução para combater o problema da abstenção, que tem afetado marcadamente as faixas etárias mais jovens, mas não só? Ou será uma maior generalização do voto antecipado a melhor estratégia?

O Polígrafo esclareceu algumas destas dúvidas (e muitas outras) com Marta Vicente, professora de Direito Constitucional da Universidade Católica Portuguesa (UCP). 

O panorama português

Atualmente,  o mais comum é os eleitores votarem presencialmente, no local de voto indicado na altura das eleições. Porém, como explica o portal “ePortugal”, os cidadãos podem optar por votar antecipadamente caso tenham “algum impedimento de se deslocar à assembleia de voto no dia da eleição”, uma semana antes da data da votação oficial. Porém, tal destina-se a situações específicas, como: das “pessoas internadas em estabelecimentos hospitalares; pessoas presas em estabelecimentos prisionais que possam exercer os seus direitos políticos; pessoas em mobilidade; e pessoas deslocadas no estrangeiro”.

Existe ainda a solução do voto por correspondência, que como lembrou Marta Vicente, é já aplicável “no caso dos emigrantes, que podem votar por correio” - caso não optem por “votar presencialmente nas secções de voto consulares”.

Voto por correspondência para todos?

A docente citada explicou que esta é uma discussão que está já em curso: “o que se discute é que, se já admitimos o voto por correspondência nestes eleitores, por que não alargar para todos?” Porém, questionada sobre o impacto que tal poderia ter numa eventual diminuição da taxa de abstenção em Portugal, explicou, com base num exemplo de um estado australiano: 

“Não sei fazer essa extrapolação. Poderia ter, mas não há grande evidência. E até, por exemplo, em Nova Gales do Sul, o que se vem notando é, até, uma diminuição do número de votos pelo correio”, explicou, acrescentando: “o que se tem verificado é que as pessoas querem votar, muitas vezes, antecipadamente”, explicou a especialista.

Uma generalização do voto antecipado?

Questionada se essa aposta poderia ser uma boa forma de combater as baixas taxas de participação eleitoral em Portugal, Marta Vicente considerou que poderia ajudar. “ As pessoas têm aderido ao voto antecipado e se ele fosse mais facilitado ainda, designadamente se não tivéssemos que fazer aquele ritual de ter de avisar a Administração Eleitoral que queremos votar antecipadamente e em que circunscrição eleitoral e assembleia de voto queremos fazê-lo, isso podia, pelo menos, facilitar o voto”, apontou.

Porém, ressalvou que tal não será suficiente. E exemplificou, olhando para o caso das eleições nacionais: “Estamos muito mal. Temos sempre 50% de abstenção, portanto não é por aí que vamos conseguir resolver o problema. Mas isso pode representar mais 3, 4 ou 5% de votação”. 

E o voto online?

Uma das soluções que têm vindo a ser pensadas como formas viáveis para “combater a abstenção” tem sido o “voto eletrónico online, não presencial, em ambiente não controlado. Pode ser voto por SMS, pela Internet, em quiosque, há várias modalidades”, recordou Marta Vicente.

Mas nem mesmo a este nível foram obtidos “dados muito definitivos” sobre o impacto efetivo ao nível da participação, “porque muitos dos países que introduziram, parcial ou totalmente, o voto online acabaram por recuar, com exceção de um ou outro”.

Sobre o tema, Marta Vicente lembrou o “caso da Noruega”, que optou por abandonar a aposta do país no voto “precisamente porque não tinha grandes resultados ao nível de taxa de participação” - apenas um incremento de “2 ou 3%”, considerado “negligenciável em termos de todas as outras desvantagens”.

Também não se registou ainda um “grande aumento de participação eleitoral” na Estónia, que é “o país mais informatizado, digamos assim, em termos de voto e de participação dos cidadãos”. O estado australiano de Nova Gales do Sul passou igualmente por uma experiência semelhante - “mas aí, também, por razões que se prendem com o facto de o voto na Austrália ser obrigatório, pelo que a participação acaba por ser sempre maciça”, comentou a professora de Direito Constitucional.

Além disso, trata-se de uma modalidade de voto que acarreta várias “objeções genéricas”, que “que se prendem com a perda do caráter secreto do voto”. E mais: de “que a partir do momento em que abrimos a porta ao voto online, podemos abrir a porta a fenómenos de caciquismo, de compra de votos, de voto em família, entre outros”.

Porém, essas nem são as principais preocupações sobre esta matéria, elucidou Marta Vicente: “O problema não é acharmos que o voto deixou de ser secreto, embora isso seja uma preocupação legítima. Mas prende-se mais com aspetos técnicos de segurança do sistema, resistência a ataques informáticos, e votos que não conseguem ser contabilizados pelo sistema”.

O caso do voto eletrónico presencial

No que toca às novas tecnologias, importa ainda fazer referência ao “voto eletrónico presencial, nas secções de voto, naquilo que designamos de ambiente controlado” - ou seja, “escrutinado por uma autoridade pública ou por um terceiro”, apontou a constitucionalista. 

“Esse tipo de voto não é uma medida de combate à abstenção, embora tenha outras vantagens. Não motiva ninguém a ir só pelo facto de a urna ser eletrónica ou de haver uma máquina de voto. Mas pode facilitar o voto de pessoas com capacidades motoras reduzidas”, notou Marta Vicente. E apontou ainda que tal pode ser uma ferramenta importante no “caso de pessoas que têm doenças degenerativas, dificuldade em mexer os membros superiores”, que não contam atualmente com “uma resposta no sistema”.

E concluiu: “Existe apenas o voto através de uma matriz em braille, que temos desde a última alteração das leis eleitorais, mas isso não resolve o problema de todas as pessoas com deficiência motora. Há aqui vários tipos de máquinas, que podem até emitir sons, para ajudar as pessoas a votar. Mas não servem para combater a abstenção.”

“Deveríamos concentrar-nos em facilitar o voto”

Na ótica da docente universitária, a estratégia correta a tomar perante o problema da abstenção deverá passar pela facilitação do voto. “Depois logo se vê se as pessoas querem votar ou não. Essa parte nós não conseguimos antever: se é um problema cultural, das pessoas terem perdido o interesse pelo sistema político, ou se é mesmo uma questão prática, das pessoas não terem facilidade em votar”, argumentou.

Uma das metodologias que pode ser útil nesse sentido passa por “desmaterializar os cadernos eleitorais e permitir que as pessoas possam votar em qualquer lado”. Mas como é que tal funcionaria? Marta Vicente elucidou: “Depois dava-se ‘baixa’ no sistema informático de que aquela pessoa já tinha votado”. Um “desdobrar das secções de voto em mais mesas e espalhá-las de uma forma mais disseminada pelos municípios” também poderia ser uma opção, embora essa solução também traga “riscos de segurança” associados.

Ponderar um “período eleitoral mais alargado, numa eleição a dois dias, eventualmente”, poderia também ser algo a ter em consideração, ainda que isso tivesse “custos associados”. Mas a especialista não se mostrou confiante de que tal alcançasse o objetivo pretendido: “Há países em que as eleições são durante a semana, as pessoas queixam-se e querem votar durante o fim de semana. Nos países em que as eleições são ao fim de semana, as pessoas queixam-se e querem votar durante a semana”.

Existem ainda outras “medidas de fundo” que têm vindo a ser debatidas no sentido de tentar promover uma maior participação eleitoral, passando nomeadamente por “alterar o sistema eleitoral”. Ou seja, fazer com que uma pessoa que queira votar num partido pequeno, num determinado círculo eleitoral, tenha efetivamente a possibilidade de ver esse partido eleger um deputado”. Ou então apostar em “sistemas que dêem mais possibilidade de escolha ao cidadão, por exemplo, através de lista aberta, onde se possa colocar por ordem os candidatos de cada partido que se pretende que sejam eleitos para o Parlamento”, sugeriu Marta Vicente.

As particularidades do voto livre

Em Portugal pratica-se o voto livre, que contrasta com o “voto obrigatório que, em princípio, não se pode ter por força do facto da Constituição dizer que o voto é um dever cívico”. Porém, apesar de garantir não estar “a sugerir” a sua adoção, essa seria a “única forma” de assegurar um “aumento significativo da participação eleitoral” em Portugal, disse a professora universitária.

E explicou a afirmação: “O voto obrigatório está associado a participações eleitorais bastante elevadas. A generalidade dos países que têm voto obrigatório têm participações eleitorais muito elevadas, na casa dos 80/90%. E há países que já tiveram voto obrigatório e que deixaram de ter, mas em que os eleitores continuam a ir votar de forma significativa. Adquiriram o hábito”.

Porém, neste momento “não existe muita” abertura na nossa legislação para que se adote essa regra, comentou Marta Vicente: “Nós temos uma norma na nossa Constituição, que é o artigo 49, que trata do direito de voto, e no n.º 2 diz-se que o ‘voto é um dever cívico’. A partir daí, a doutrina, e o próprio Tribunal Constitucional e a Comissão Constitucional, quando se pronunciaram sobre algumas questões durante a reposição da democracia, disseram que isso significa que o voto não pode ser obrigatório”.

E clarificou: “Ou seja, não votar não pode estar associado a nenhum tipo de sanção, seja jurídica, seja económica. Portanto, desta perspetiva teria de se fazer uma revisão constitucional. Seria uma mudança de paradigma forte”.

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UE

Este artigo foi desenvolvido pelo Polígrafo no âmbito do projeto "EUROPA". O projeto foi cofinanciado pela União Europeia no âmbito do programa de subvenções do Parlamento Europeu no domínio da comunicação. O Parlamento Europeu não foi associado à sua preparação e não é de modo algum responsável pelos dados, informações ou pontos de vista expressos no contexto do projeto, nem está por eles vinculado, cabendo a responsabilidade dos mesmos, nos termos do direito aplicável, unicamente aos autores, às pessoas entrevistadas, aos editores ou aos difusores do programa. O Parlamento Europeu não pode, além disso, ser considerado responsável pelos prejuízos, diretos ou indiretos, que a realização do projeto possa causar.

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