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“Todos os sinais são importantes e não há vítimas menores”. Entre a pandemia e a guerra, a violência doméstica persiste

Este artigo tem mais de um ano
Embora secundarizado na agenda noticiosa, o flagelo da violência doméstica persiste. Como evoluíram os números de ocorrências e vítimas nos últimos anos? A que sinais devemos estar atentos? E como ajudar as vítimas? No Dia Internacional das Mulheres, o Polígrafo falou com a vice-presidente da Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV), Margarida Medina Martins, e com a psicóloga e gestora da Equipa Móvel de Apoio à Vítima do Douro da APAV, Rita Bessa, em busca de respostas.

A casa foi sinónimo de abrigo para muitos que, em março de 2020, se viram obrigados a abdicar da rotina para se protegerem de um vírus desconhecido e imprevisível. Para outros, fechar a porta para a rua significou estar durante 24 horas por dia debaixo do mesmo teto do agressor. Agora, numa altura em que o mundo parece estar a despedir-se da pandemia, a iminência de uma guerra na Europa deixa estas vítimas, sobretudo mulheres, ainda mais vulneráveis. As associações que as apoiam pedem que não nos esqueçamos delas e estejamos atentos aos sinais.

Afinal, quais os números da violência doméstica em Portugal? A que sinais devemos estar atentos? E como podem estas vítimas ser ajudadas? A vice-presidente da Associação de Mulheres Contra a Violência, Margarida Medina Martins, e a psicóloga e gestora da Equipa Móvel de Apoio à Vítima do Douro da APAV, Rita Bessa, ajudam a responder a estas questões.

Como é que têm evoluído os números da violência doméstica em Portugal?

De acordo com os dados mais recentes divulgados na na página da CIG – Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, a PSP e a GNR registaram, nos últimos três anos, mais de 80 mil ocorrências de violência doméstica. Em 2019, foram registados 29.223 episódios, em 2020, 27.619, e em 2021, 26.511. Os números mostram uma diminuição do número de casos, mas a ativista pelos direitos humanos e vice-presidente da Associação de Mulheres Contra a Violência, Margarida Medina Martins, garante que a violência doméstica não diminuiu.

“Os dados apresentados nunca correspondem ao real no sentido em que a maior parte das situações nunca são denunciadas. Não há diminuição da violência, o que há é uma diminuição das situações registadas. Estamos inclusive convictas de que a violência deve ter aumentado muitíssimo porque estar 24 horas com agressores acaba mal”, sustenta.

“Os dados apresentados nunca correspondem ao real no sentido em que a maior parte das situações nunca são denunciadas. Não há diminuição da violência, o que há é uma diminuição das situações registadas. Estamos inclusive convictas de que a violência deve ter aumentado muitíssimo porque estar 24 horas com agressores acaba mal”, sustenta.

Na perspetiva da ativista, o cenário não está a melhorar e ainda “estamos muito longe de ter consciência do impacto da própria pandemia”.

Quanto ao número de mortes, também nos últimos três anos, 90 pessoas morreram às mãos dos agressores, sendo que a maioria das vítimas mortais, 69, são mulheres. Só em 2021, foram registadas 23 mortes por violência doméstica: 16 mulheres, duas crianças e cinco homens.

“Todos os sinais são importantes e não há vítimas menores”

Estar atento aos pequenos sinais é uma das formas mais eficazes de impedir que uma situação de violência doméstica termine com a morte da vítima, defende Margarida Medina Martins. Para a ativista “todos os sinais são importantes, porque podem escalar, e não há vítimas menores”, dado que “há casos que passam do zero aos cem muito rapidamente”.

A mudança no comportamento da vítima é o principal sinal de que “algo não está a bater certo”, explica a ativista. Essas alterações podem passar por a pessoa “estar mais controlada, mais inibida, começar a deprimir, ser menos espontânea, ter menos autonomia na circulação e nas relações com os amigos”.

No mesmo plano, a psicóloga e gestora da Equipa Móvel de Apoio à Vítima do Douro da APAV, Rita Bessa, lembra que “a violência física é o tipo de violência visível”, mas que há outras formas de agressão que a própria vítima tem dificuldade em identificar, como “o ser controlada, o ser dominada, injúrias, o isolamento da vítima dos contactos com outras pessoas, o controlo do telemóvel, das redes sociais, a humilhação ou desvalorização do outro, a possessividade, etc.”

Muitas vezes, sublinha a psicóloga, existem também ameaças e manipulações que podem levar a vítima a pensar que a sua situação pode piorar caso termine a relação.

E como podem as vítimas ser ajudadas? “É importante não emitir juízos de valor”

Identificados os sinais, chega a hora de agir. Mas como? Onde podem as vítimas pedir ajuda? E como podem aqueles que assistem a uma situação de violência doméstica agir? Margarida Medina Martins é perentória: numa situação de risco que exija uma intervenção rápida, o melhor “é ligar para o 144 (linha de emergência social) ou para o 112 (número europeu de emergência)”, e seguir as orientações dos técnicos.

Noutras situações, esclarece a psicóloga Rita Bessa, há uma série de organizações a dar apoio telefónico e online a vítimas de violência doméstica, bem como gabinetes abertos durante a semana para receber tanto as vítimas como os seus familiares, amigos ou terceiros disponíveis a prestar auxílio.

“No nosso caso, a APAV tem uma linha de apoio à vítima 116 006, que está disponível entre as 08h00 e as 21h00. Do outro lado, a vítima receberá um apoio técnico especializado em violência doméstica, que a informará dos direitos e daquilo que pode fazer. Além disso, de norte a sul do país, existem serviços de proximidade que são gabinetes de apoio à vítima que estão abertos à comunidade”, sustenta.

Rita Bessa frisa que “o nosso dever é denunciar a situação, uma vez que a violência doméstica é um crime público” e defende que “temos de desmistificar a ideia de que entre marido e mulher não se mete a colher”.

“O nosso dever é denunciar a situação, uma vez que a violência doméstica é um crime público” e defende que “temos de desmistificar a ideia de que entre marido e mulher não se mete a colher”.

No entanto, destaca a psicóloga, quando se presta apoio à vítima “é importante não emitir juízos de valor”, já que “ninguém está numa relação de intimidade violenta porque quer”. Por isso, reitera, “é muito importante perceber e dar o timing à vítima. É importante sensibilizar, não julgar e dar contactos de associações que possam ajudar, dizer que existem profissionais que podem ajudar”.

“É importante que a vítima sinta confiança no outro, porque a partir do momento em que começamos a emitir juízos de valor as vítimas começam-se a distanciar e depois é uma bola de neve”, afirma.

Esta visão é partilhada por Margarida Medina Martins que lembra que “qualquer pessoa pode fazer uma queixa às forças de segurança” e que todos temos o dever de agir. Já que “o que não for parado cresce no tempo e a nossa paralisação ou inação pode contribuir para a morte de uma pessoa”.

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