Manuel Pinho (ex-ministro da Economia) e Ricardo Salgado (ex-presidente do BES) foram acusados de corrupção e branqueamento de capitais, no âmbito do “processo EDP”. Concorda com a ideia corrente de que a classe política é tendencialmente corrupta?
O poder corrompe. Obviamente que quem está num cargo de poder tem mais possibilidades de corromper pela natureza do cargo que tem. Não é que os políticos em si, ou que as pessoas que vão para a política sejam inerentemente corruptas. A questão é que a natureza do cargo permite e dá mais incentivos a que isso aconteça. Num segundo patamar, não me parece que todos os políticos sejam corruptos. O que acontece é que a classe política tende a tratar todos os casos como iguais e a proteger-se de forma a que dificilmente façam a condenação de atos de corrupção, ou de quem tem más condutas éticas. Não levam a sério a questão dos riscos e das vulnerabilidades do cargo político. Ao não diferenciarem estas boas e más condutas também passam a imagem que todos os políticos são iguais e igualmente maus.
A exposição mediática, o arrastar de casos judiciais de corrupção e, por exemplo, a prescrição de crimes acentua a ideia de que não existe uma condenação efetiva destes agentes políticos, mesmo após serem acusados?
Os níveis de perceção da corrupção revelam que a população continua a achar que há altos níveis de corrupção no país. Ao mesmo tempo, os níveis de confiança na Justiça têm diminuído substancialmente. Há um estudo do ICS, em que é feito um inquérito de opinião na altura em que saiu o resultado da instrução da “Operação Marquês” e os níveis de confiança na Justiça caíram a pique. Acho que pode haver uma relação com este sentimento de impunidade, que se vê na prática, já que os processos se arrastam durante anos e há muito poucas condenações. Há muitos meios para atrasar a justiça e isso, inevitavelmente, pode ter consequências na confiança dos cidadãos.
“Os níveis de confiança na Justiça caíram a pique. (…) Pode haver uma relação com este sentimento de impunidade, que se vê na prática, já que os processos se arrastam durante anos e há muito poucas condenações”.
Existem novos fenómenos relacionados com a ética na política à espreita? E quais?
Começa a haver uma maior preocupação, ou uma menor tolerância, em relação a conflitos de interesse. Há também um papel mais ativo da comunicação social e uma vontade por parte dos cidadãos de terem mais informação e de responsabilizarem mais a classe política. Isso faz com que possa haver mais escândalos, até porque o que antigamente não era noticiado hoje passou a ser. Não quer dizer que as práticas tenham piorado, quer dizer que as práticas que sempre foram aceites começaram a ter um escrutínio maior. Como resposta a este aumento de escrutínio também temos visto um aumento da regulação ética na política, mais regras, mais instrumentos, código de conduta e mais entidades de supervisão. Parece é que existe, ainda, um desencontro entre as expectativas dos cidadãos e esses respostas.

Refere-se no estudo recentemente publicado, “Ética e integridade na política”, assim como é visível nas estatísticas, que os países afetados por crises de dívida soberana são também tendencialmente os que, nos anos mais críticos, registam níveis mais baixos de confiança na democracia e instituições políticas. Como é que isto se explica?
Quando há uma menor satisfação com a vida e quando se passa por situações de crise, é normal que as pessoas reflitam isso em relação a tudo o que está à sua volta. Mas também nas situações de crise é quando há menos recursos e, quando tal acontece, as pessoas também estão mais sensíveis ao seu mau uso. Também há maior tendência de certas empresas e grupos de interesse em fazer mais pressão para conseguir garantir os poucos recursos públicos, ou económicos em geral, que existem. Nesse sentido, podem incentivar-se más práticas que, quando descobertas, fazem com que os cidadãos tenham ainda menor confiança nas instituições.
Tendo em conta a crise social e económica atual, é possível que nos próximos anos nos deparemos com um maior número de casos de corrupção e de crimes conexos?
Daquilo que vimos da facilitação da contratação pública agora em altura de pandemia… O Tribunal de Contas e outras entidades alertaram para o aumento dos riscos de corrupção, apontando para imensas irregularidades e para uma abuso enorme dos ajuste diretos. Agora com o PRR e com os outros fundos europeus, que as entidades públicas estão a ser pressionadas para executar com rapidez, geram-se os incentivos errados para que possa haver mais abuso de poder e mais corrupção. Isto combinado com instituições mais fracas, que não têm os instrumentos e as competências técnicas suficientes para mitigar esses riscos, pode aumentar a incidência nos próximos anos.
“Agora com o PRR e com os outros fundos europeus, que as entidades públicas estão a ser pressionadas para executar com rapidez, geram-se os incentivos errados para que possa haver mais abuso de poder e mais corrupção”.
Com maior incidência em autarquias?
Todas as entidades que fazem contratação pública, sejam autarquias, empresas públicas, a administração central. Ou seja, que façam contratação pública, ou que usem fundos europeus.
No mesmo estudo indica que os cidadãos aceitam melhor casos de tráfico de influências ou de “portas-giratórias” do que aqueles em que são trocados ou obtidos itens de forma direta, como dinheiro, casas, ou viagens. Porque é que isto acontece?
Acho que tem mais a ver com o facto de estas coisas funcionarem em circuito fechado. Em as ditas trocas de favor, ou nepotismo, não estarem ao alcance do resto da população, o que pode gerar sentimentos de frustração, porque mina o esforço das pessoas que trabalharam para conseguir alguma coisa.

É também apontada a diferença entre quem está de fora e dentro da vida política em relação à percepção que têm dos padrões éticos. Existe de facto uma maior permeabilidade ética quando se integra o sistema político?
Parece-me que quem está dentro do sistema está balizado pela lei. E, portanto, é só essa a sua bússola de comportamento. A questão é que a lei é limitada e não abrange aquilo que podem ser os comportamentos pouco éticos. Por outro lado, quem faz a lei é a própria classe política, não toda, mas são os deputados e os membros do Governo, ou seja, balizam-se a si próprios.
O atual Governo tem protagonizado vários casos de alegadas incompatibilidades, nomeadamente na realização de negócios entre o Estado e familiares diretos de membros do Executivo. Apesar de garantirem que não estão em causa ilegalidades, estes negócios parecem eticamente censuráveis e são vistos por muitos cidadãos como tal. A lei deve ser alterada para se tornar mais clara ou rígida no que respeita a situações como estas?
Só dão garantias de ilegalidades ou legalidades as autoridades judiciais, e não a palavra do próprio. Se vamos para o patamar do que é legal, ou ilegal, eu gostava de ouvir o Tribunal Constitucional (TC), que é quem faz a avaliação das incompatibilidades e impedimentos e é quem dá a palavra final. Ter um membro do Governo, ou o primeiro-ministro a dizer que é legal ou ilegal, não chega. Tenho pena que o TC não seja mais proativo a analisar estes casos e que dê uma palavra final, até porque estamos numa situação em que temos membros do Governo que não temos a certeza se estão legais ou não, o que cria uma instabilidade na confiança e até nos atos que esse membro pode exercer.
Por outro lado, temos uma sensação de quase “vale tudo”, já que a lei é interpretada de forma literal, ou não, consoante as conveniências políticas, não há uma previsibilidade de como os atores ou as instituições vão agir. E isso é muito mau, porque a lei tem de ser previsível. É preciso mais, é necessária a conduta ética que vai para lá da lei, o que significa que o membro do Governo não tem de ser responsabilizado criminalmente, mas têm de haver consequências políticas, ou uma sinalização de que aquele comportamento não está certo.
A lei tem vários problemas, em determinados aspetos é demasiado rígida e o problema é que depois ninguém a quer aplicar. Tanto em relação ao número de impedimentos, a lei cria imensas barreiras à entrada, mas depois os próprios admitem que quando chegamos à prática, os impedimentos são demasiados. Por outro lado, como a única sanção que existe é a pior de todas – a perda de mandato -, também ninguém tem coragem de a assumir, porque nem todos os casos são tão graves que exijam isso. Como tudo se baseia na lei e pouco na ética e as entidades esperam umas pelas outras para agir, toda a gente tem medo de ser proativo e de entrar na jurisdição da entidade ao lado. Na prática, não há nem regulação nem uma aplicação coerente da lei.
“A lei é interpretada de forma literal, ou não, consoante as conveniências políticas, não há uma previsibilidade de como os atores ou as instituições vão agir. E isso é muito mau, porque a lei tem de ser previsível”.
Num Governo de maioria absoluta, como aquele que é agora liderado por António Costa, existem mais riscos de más práticas de conduta ética?
Poderia não ser um problema de maioria absoluta, se já houvesse uma cultura de integridade no Governo, se fosse claro no seio do Governo o que é permitido, ou não permitido e o que é politicamente aceitável ou não é. Aquilo que temos visto é que não é tanto o que se passa no Governo, embora naturalmente possa trazer níveis de maior confiança e arrogância política, mas é sobretudo do Parlamento. O papel do Parlamento, além de legislar, é fazer o controlo político do Governo e o que estamos a ver é que a maioria parlamentar está a bloquear todas as iniciativas de controlo político do Governo. Até setembro, o PS já tinha bloqueado 16 audições de ministros, fora o que se passou nos últimos meses. Ora, quem está num cargo político tem de prestar contas e o sítio onde pode melhor prestar essas contas é no Parlamento, porque quem lá está, os diferentes partidos, representam os eleitores. Aí é que reside o perigo, é não estar a haver uma prestação de contas no Parlamento por causa da maioria.
“O papel do Parlamento, além de legislar, é fazer o controlo político do Governo e o que estamos a ver é que a maioria parlamentar está a bloquear todas as iniciativas de controlo político do Governo”.
E considera que a integração de familiares no mesmo Governo, tal como acontece desde a última remodelação do Executivo, favorece este tipo de fenómenos?
As regras alteram-se consoante os interesses políticos do momento e isso não favorece a estabilidade e a previsibilidade das regras e das práticas. Depois, a questão dos familiares não aumenta os riscos de corrupção em si, mas naturalmente é, por si mesma, uma questão de nepotismo e favorecimento que pode ser visto como um abuso do poder confiado nos políticos para benefício próprio. Não fui a favor da lei que impedia a nomeação de familiares, até porque a lei foi extremamente específica e acabou por não evitar nenhum destes casos. Só lidou com o caso que o primeiro-ministro já tinha lidado politicamente – o secretário de Estado que nomeou um familiar direto que foi obrigado a demitir-se.
Mais uma vez temos o tal problema, resolve-se pela legalidade e não pela ética. Há necessariamente, dentro do Governo e dentro do Conselho de Ministros, um problema de conflito de interesses, porque os membros do Governo com assento no Conselho têm que ter uma postura de liberdade para confrontar um colega. A partir do momento em que lá estão familiares, já estão constrangidos na sua liberdade e não há um controlo tão fácil dos outros colegas.
No estudo invoca-se a importância de serem os próprios políticos a estabelecerem os padrões de ética em relação aos seus pares. O exemplo de quem está “de dentro” pode ser determinante?
É importante que exista esta auto-regulação, para haver uma responsabilização dos atores políticos. O estar sempre a passar tudo para a justiça, provoca uma judicialização da Justiça e esta tem o seu próprio tempo, que não é o tempo da política. É então preciso fazer a distinção entre uma responsabilização e a outra. Nesta medida, seja nos partidos políticos, seja nos parlamentos e nas autarquias, é necessário o estabelecimento de normas sobre o que é aceite ou não e o que é ético ou não. Um exemplo é a regulação de ofertas e hospitalidade, haver regras comuns, não quer dizer que alguém se corrompa por receber uma prenda de 150 euros, como também há atores políticos que podem achar que o valor é demasiado alto e preferem não aceitar nada. Mas haveria uma regra comum e uma moralidade partilhada, cada um tem a sua e pode autorregular-se pela sua, mas só ao ponto destes valores partilhados, para que não seja só “a minha ética é diferente da tua”. Têm de existir regras claras sobre o que é aceitável ou não, com guias para esclarecer o que fazer em determinadas situações, é normal que as pessoas tenham dúvidas. E que haja um acompanhamento do cumprimento dessas regras e que haja sanções quando elas não são cumpridas.

É certo que o primeiro-ministro desempenha um papel central no recrutamento de ministros. Como é que se evitam situações como a que se verificou no caso de Miguel Alves, acusado de prevaricação enquanto era autarca?
Acho que o caminho não é criar mais leis. É importante que haja cargos de confiança política, não podemos passar de uma democracia para uma tecnocracia. Os políticos precisam de ter cargos de nomeação em relação às pessoas que trabalham com eles. Parece-me é que dentro das próprias instituições, seja nos partidos, ou neste caso no Governo, é importante que se faça esta averiguação de potenciais problemas que possam vir a surgir e que possam criar danos reputacionais aos próprios, a quem o nomeou e à própria instituição. Olhando para este caso em particular, pelo menos dentro do Governo já se sabia dos riscos, que se ignoraram. Ou seja, sucedeu uma desvalorização da ética por parte dos atores políticos.
“Dentro das próprias instituições, seja nos partidos, ou neste caso no Governo, é importante que se faça esta averiguação de potenciais problemas que possam vir a surgir e que possam criar danos reputacionais aos próprios, a quem o nomeou e à própria instituição”.
O que culminou numa demissão…
Lá está, há escândalos evitáveis e este era um deles.
Como é que se efetua uma avaliação regular dos padrões éticos na política, de forma prática?
O Grupo de Estados Contra a Corrupção (GRECO) do Conselho da Europa tem feito isso, fazem um trabalho muito interessante e efetivo. Das avaliações internacionais são os melhores. Fazem uma primeira avaliação dos riscos de corrupção de algumas instituições e fazem recomendações e depois vão acompanhando a aplicação dessas recomendações e diria que é um exercício muito útil. As próprias instituições podem fazer essa auto-avaliação, os planos de prevenção de risco de corrupção poderiam ter tido esse papel, infelizmente tornaram-se um exercício formal, que as pessoas faziam por obrigação e não se aplicavam a instituições políticas. O primeiro passo para se fazer este exercício de auto-avaliação é ter consciência da importância que as questões da integridade têm e é por isso que o nosso estudo começa com a questão da confiança nas instituições.
Os sistemas de regulação da ética na vida política são suficientes em Portugal? O que falta fazer e que medidas inovadoras podem ser aplicadas?
Acho que é preciso haver uma clarificação das normas éticas. Não é criar mais leis ou incompatibilidades, mas é criar normas claras do que se deve ou não fazer, sobretudo na gestão de conflitos de interesse. Seria interessante, por exemplo, criar uma Comissão de Ética, já existe uma Comissão de Transparência no Parlamento, mas uma comissão que combinasse elementos da política e elementos de fora da política, que criasse um equilíbrio e em que houvesse uma visão dos cidadãos, para que o sistema político não viva nessa bolha. E também uma gradação de sanções, por exemplo sanções administrativas como sucede em outros parlamentos – a perda de subsídios, nem precisa de ser nada material, pode ser uma sanção pública, dizer que não se concorda com o comportamento de determinado membro do Governo ou deputado.