“Eu não entrei por querer, nem sabia ao que ia. Fui apanhada numa máfia. Aliás, ainda estou apanhada“; “Tinha um filho para sustentar. E isso é mais importante que qualquer coisa na vida”; “Tinha de ganhar dinheiro, mas é claro que não é o que eu queria, mas era a única saída. Não dava para viver do RSI e do abono, não é? E não havia trabalho ou é tudo a ganhar uma miséria”; “O dinheiro não chegava, eu tinha um filho para sustentar e a única coisa que tinha era o meu corpo. Tinha de ser“; “Pareceu-me a única forma de sobreviver“; “Estava sem trabalho, havia umas casas de alterne onde eu conhecia umas moças e no desespero fui para lá. Já tinha três meses de renda em atraso, não tinha outra saída“.
São excertos de respostas que várias mulheres deram no âmbito do “Estudo diagnóstico sobre as mulheres no sistema de prostituição em Lisboa“, promovido pela Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres (PpDM), ao serem questionadas sobre os motivos que as levaram a dedicar-se à prostituição. A eventual “livre escolha” ou “vontade” não são referidas.
“Nas condições e fatores de entrada no sistema assumem maior relevância (75%) as questões ligadas às carências ou dificuldades económicas e ao desemprego. (…) Quatro mulheres referem que essa necessidade de dinheiro está (ou esteve) ligada à situação de toxicodependência. Noutros dois casos, a necessidade de dinheiro é secundarizada pela imposição do companheiro/proxeneta, ainda que estes dois fatores não se dissociem, porque o argumento utilizado pelos proxenetas é o da carência económica, cuja resolução passará pela entrada no sistema de prostituição, que será, na argumentação desses proxenetas, de caráter provisório”, descreve-se no estudo, apresentado no dia 29 de outubro.
A montante encontramos histórias de vida, contextos familiares e sociais de origem, trajetórias individuais em que sobressaem características comuns, identificadas no estudo: famílias de origem marcadas por interações deficitárias e ausência de afeto; situações de violência e abuso; pobreza ou carência económica; contextos sociais e culturais de exclusão social; baixos níveis de escolaridade e ausência de qualificação profissional; trabalho indiferenciado, mal remunerado e precário e percursos de emprego erráticos; relações afetivas com elevada toxicidade e dependência (em que se confundem as figuras do companheiro e do proxeneta); baixa auto-estima; abulia, resignação e falta de percepção face à capacidade de mudança, que resultam na ausência ou difusão de expectativas de futuro.

A prostituição “é a mais velha opressão do mundo”
Em conversa com o Polígrafo, Ana Sofia Fernandes, presidente da PpDM, destaca “duas ideias essenciais” a partir das conclusões do estudo. Primeira, “a prostituição como um sistema, no qual intervêm quatro grandes agentes: as pessoas em situação de prostituição, a grande maioria das quais são mulheres; os compradores de sexo, na sua grande maioria, homens; os proxenetas e traficantes; e a sociedade como um todo, nomeadamente o Estado que, através das políticas públicas e enquadramento legal, fornece o contexto de base a este sistema, e onde se incluem as e os profissionais das instituições que lidam diretamente com os demais intervenientes no sistema”.
Segunda, “a ideia de que a prostituição, enquanto fenómeno com uma fortíssima dimensão de género, constitui uma grosseira violação dos direitos humanos das mulheres que deve ser combatida protegendo as pessoas em situação de prostituição e abrindo-lhes horizontes de saída do sistema“.
“Proteger as pessoas em situação de prostituição implica saber quem são estas pessoas, como entraram no sistema e qual foi a sua trajetória. Implica também ouvir as e os profissionais que trabalham no terreno com estas mulheres. Implica, ainda, conhecer a forma como este sistema é retratado nos meios de comunicação social, dada a sua influência na forma como este fenómeno é percebido pela sociedade. O estudo que apresentamos é, justamente, um contributo para este conhecimento“, sublinha.
“A sua leitura não é fácil. As histórias de vida destas mulheres são frequentemente marcadas pela violência, pelos abusos, pela fragilidade social e económica e pela indiferença da sociedade que normaliza o que tantas vezes chama ‘a mais velha profissão do mundo'”, afirma Fernandes, para depois questionar: “Mas estes testemunhos contestam esta normalização, questionam a trivialização da prostituição como ‘um trabalho como outro qualquer‘ e interpelam-nos enquanto cidadãs e cidadãos: queremos mesmo viver numa sociedade que normaliza o acesso ao corpo das mulheres como se de uma qualquer mercadoria se tratasse?”
“Este estudo tem assim uma dupla função. É um contributo fundamental para a literatura científica sobre o tema e é também um contributo, que esperamos não menos decisivo, para uma estratégia de prevenção e apoio à saída deste sistema, com o objetivo último de abolir a prostituição enquanto aquilo que, de facto, é a mais velha opressão do mundo“, defende.
Violência, tráfico, exploração, mortalidade
A “legalização” desta indústria (na prática, uma legalização do lenocínio), nos termos em que tem sido proposta, teria algum efeito positivo? Prevê que existiriam menos pessoas na prostituição? Mais seguras, com melhor saúde, menos vulneráveis perante a violência e a exploração? “A ‘legalização’ seria inconstitucional. A Constituição exige do Estado a proteção da liberdade e de uma ‘autonomia para a dignidade’ das pessoas que se prostituem, a proteção (…) contra a necessidade de utilizar a sexualidade como modo de subsistência, proteção diretamente fundada no princípio da dignidade da pessoa humana, o cumprimento da sua tarefa fundamental em matéria de promoção da igualdade entre homens e mulheres, incluindo o cumprimento das suas obrigações relativamente à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e o cumprimento da Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem”, responde Fernandes.
“Além do mais, Portugal foi o primeiro país da União Europeia a ratificar a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, conhecida por Convenção de Istambul. Esta inclui a definição de ‘Violência de género exercida contra as mulheres’ como abrangendo toda a violência dirigida contra a mulher por ser mulher ou que afeta desproporcionalmente as mulheres“, prossegue. “Sabendo-se que a esmagadora maioria das pessoas na prostituição são mulheres, a prostituição constitui uma forma de violência sexual contra as mulheres e raparigas. A violência é endémica no comércio do sexo – por parte de proxenetas, donos de bordéis, traficantes e compradores de sexo. Ao nível internacional, um estudo revelou que 70-95% das mulheres relataram agressão física, 60-70% relataram violações e 68% cumprem os critérios para transtorno de stress pós-traumático. Os relatos das histórias de vida das mulheres que entrevistamos no nosso estudo corroboram esta evidência. O sistema de prostituição faz parte do continuum da violência contra as mulheres e raparigas”.
Mais, “a Organização Mundial da Saúde definiu em 1946 a saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas como a ausência de doença ou enfermidade. Ora, a taxa de mortalidade das pessoas em situação de prostituição são excepcionalmente altas em comparação com a/o trabalhador/a médio. O tráfico é endémico no comércio do sexo, 65% do tráfico na União Europeia é para fins de exploração sexual e 95% das pessoas sexualmente exploradas são mulheres”.
“Embora nem todas as mulheres exploradas no sistema de prostituição tenham sido traficadas, quase todas as mulheres traficadas na União Europeia estão no comércio do sexo“, indica Fernandes. “O tráfico não aconteceria sem a procura dos compradores de sexo. Os países que legalizaram o sistema de prostituição têm mais tráfico para fins de exploração sexual”.
Modelo de “desincentivo da compra de sexo”
Quais seriam as vantagens de um modelo abolicionista? Fernandes responde que “o modelo da igualdade – abolicionista – que defendemos tem quatro pilares: descriminalização das pessoas na prostituição, o que já acontece; recusa de qualquer tentativa de criminalizar, estigmatizar, perseguir ou assediar as pessoas na prostituição; serviços de apoio e estratégias de saída para as pessoas na prostituição; criminalização do proxenetismo e do tráfico humano, e desincentivo da compra de sexo; prevenção por via da educação sexual nas escolas, focada no consentimento e auto-determinação sexual e na refutação da mercadorização do corpo“.
“Portugal tem um modelo semi-abolicionista: as pessoas na prostituição não são criminalizadas, e o lenocínio e o tráfico são considerados crimes. Mas a compra de sexo não é desincentivada e faltam políticas públicas de apoio à saída do sistema de prostituição e de prevenção por via da educação sexual nas escolas. Ou seja, a dimensão de género está ausente do atual quadro legislativo”, lamenta a presidente da PpDM.
“Uma sociedade que defende a igualdade entre mulheres e homens não pode compactuar com o sistema de prostituição, não o pode legitimar nem regulamentar”, argumenta Fernandes. “Enquanto a prostituição existir e um homem possa comprar o consentimento sexual de uma mulher, nunca haverá igualdade entre mulheres e homens. Por uma sociedade livre entre iguais, é preciso abolir a prostituição“.
“Há uma grande diferença entre a abordagem proibicionista, que criminaliza todos os intervenientes no sistema de prostituição, incluindo as pessoas prostituídas, e a abordagem abolicionista, que visa apenas os compradores, proxenetas e traficantes”, ressalva. “Por outras palavras, aqueles que detêm o poder de escolha. Penalizar todos não combate as causas e a natureza de género do sistema de prostituição. A abolição implica ter em consideração a violência estrutural, económica, psicológica e física inerente à prostituição e as marcadas relações desiguais de poder entre mulheres e homens. Portanto, proteger as pessoas afetadas e criminalizar os seus autores, ou seja, os compradores de sexo. Abolição é propor alternativas concretas para as pessoas na prostituição e mudar mentalidades”.