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“Não quero morrer!” Como o apelo de uma jovem despertou a consciência para a fibrose quística

Este artigo tem mais de um ano
No dia 5 de março, Constança Braddell lançou um apelo no Instagram sobre a doença que a assola desde que nasceu, há 24 anos. Sem acesso a um medicamente inovador - Kaftrio - que poderá prolongar a sua vida, denuncia que "o Infarmed está ciente da eficácia deste medicamento e continua em negociações intermináveis para aprovação do financiamento do mesmo". O que é a fibrose quística e quão eficaz é o Kaftrio?

Constança Braddell recorreu às redes sociais para expor a sua luta contra a doença que a acompanha há 24 anos, mas que só agora se manifestou com maior gravidade. “Desde setembro de 2020, a minha vida mudou drasticamente. Tenho vindo a morrer lentamente. Perdi 13 quilos no espaço de três meses e estou ligada a oxigénio 24/7, e a um ventilador não invasivo para dormir porque é a única maneira de eu conseguir continuar a respirar. Uma simples ida à casa de banho parece impossível”, descreveu em publicação no Instagram, onde pediu acesso a um medicamento inovador no tratamento da fibrose quística.

A fibrose quística – cujo nome advém do aspeto quístico e fibroso do pâncreas – é uma doença hereditária que se caracteriza pela disfunção das glândulas de secreção externa dos órgãos onde o gene tem uma maior expressão: glândulas sudoríparas, brônquios, intestinos, pâncreas, fígado, órgãos reprodutores, etc. Nestes pacientes, as secreções são mais espessas, acabando por criar obstruções no organismo. A doença afeta com maior frequência os pulmões e os intestinos, interferindo com a respiração e a digestão dos alimentos.

É causada por mutações no gene CFTR que tem como função produzir a proteína CFTR, a qual atua na superfície das células, de forma a regular a produção de muco nos pulmões e sucos digestivos no intestino. As mutações reduzem o número destas proteínas na superfície celular ou afetam o seu modo de funcionamento. O que resulta em bloqueios, inflamação, aumento do risco de infeções pulmonares e problemas de digestão e crescimento. Estima-se que haja cerca de 400 pessoas com fibrose quística em Portugal.

O Kaftrio, medicamento referido por Constança Braddell, contém duas substâncias ativas – elexacaftor e tezacaftor – que aumentam o número de proteínas CFTR na superfície celular. Uma outra substância, ivacaftor, melhora a atividade da proteína CFTR defeituosa. Estas substâncias tornam o muco nos pulmões e os sucos digestivos menos espessos, ajudando a aliviar os sintomas da doença.

O medicamento surgiu em 2019 e, de acordo com a Associação Nacional de Fibrose Quística (ANFQ), “demonstrou melhorar significativamente o prognóstico da fibrose quística, diminuindo as exacerbações pulmonares e o recurso a internamentos hospitalares, e melhorando a função respiratória e a qualidade de vida dos pacientes”. O fármaco foi aprovado pela Food and Drug Administration (FDA) dos EUA e pela Agência Europeia do Medicamento (EMA). No entanto, em Portugal ainda está a ser avaliado pela Comissão de Avaliação de Tecnologias de Saúde (CATS) do Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde.

Através de comunicado emitido no dia 5 de março, o Infarmed informou que, enquanto decorre a avaliação do Kaftrio, “existe a possibilidade de acesso ao medicamento, da iniciativa do hospital, através de Autorização de Utilização Especial (AUE), ao abrigo de um Programa de Acesso Precoce (PAP)”. Contudo, até ao dia 5 de março ainda não tinha sido submetido qualquer pedido por parte do hospital.

“Este medicamento é muito mais eficaz do que qualquer outro. Diminui muito a produção do muco, para além de abranger um maior número de doentes, cerca de 80 a 90%. Pára a evolução da doença. Defendemos que deve ser dado o mais precocemente possível para evitar que haja a deterioração clínica. Numa fase tardia, mesmo parando a evolução da doença, o doente já não terá qualidade de vida”, sublinha Herculano Castro Rocha, médico pediatra e presidente da ANFQ.

No dia 8 de março, o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (CHULN) emitiu também um comunicado a dar conta de “cinco pedidos de AUE de um tratamento inovador para doentes com fibrose quística“. Além dos cinco pedidos, o CHULN irá realizar também “uma avaliação rigorosa dos perfis clínicos de outros 25 doentes acompanhados no seu Centro de Referência para a Fibrose Quística, no sentido de aprofundar a análise dos critérios e indicações para tratamento com o fármaco modulador mais indicado para cada situação individual”.

Contactado pelo Polígrafo, Herculano Castro Rocha, médico pediatra e presidente da Associação Portuguesa da Fibrose Quística (APFQ), explica que vários dos medicamentos que se utilizavam na doença eram destinados para as respetivas consequências. Contudo, à medida que a investigação foi evoluindo, surgiram os denominados “modeladores da fibrose quística” que atuam “ao nível da célula, corrigindo o defeito genético“.

Este medicamento é muito mais eficaz do que qualquer outro. Diminui muito a produção do muco, para além de abranger um maior número de doentes, cerca de 80 a 90%. Pára a evolução da doença. Defendemos que deve ser dado o mais precocemente possível para evitar que haja a deterioração clínica. Numa fase tardia, mesmo parando a evolução da doença, o doente já não terá qualidade de vida”, sublinha.

Castro Rocha conta a experiência de uma das primeiras doentes que iniciou o tratamento através do Programa de Acesso Precoce. “Era uma miúda que dormia com um ventilador noturno e fazia oxigénio diurno. Agora, já não usa. Não conseguia subir escadas e neste momento sobe-as de um lance só. A prova de suor [um dos meios de diagnóstico para a fibrose quística] era alteradíssima e agora está normal. Isto significa que o medicamento está mesmo a atuar ao nível da célula“, enaltece.

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Atualização: A Agência Lusa informou hoje, dia 9 de março, que o Infarmed aprovou entretanto 14 pedidos de AUE do Kaftrio para o tratamento da fibrose quística, seis dos quais provenientes do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte.

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