O saudosismo do Estado Novo e as mentiras sobre os “milhares de guardas florestais” que impediam os incêndios rurais na época
É comum nas redes sociais associarem-se os incêndios florestais ao saudosismo de Salazar e dos tempos de ditatoriais. Em agosto do ano passado, estava a ser difundido um gráfico da suposta evolução anual do número de ocorrências de incêndios florestais em Portugal Continental, a partir do qual se conclui que “até 1978 praticamente não havia incêndios”. Assim, garantia-se que estes são “uma conquista de Abril”. Mas não é bem assim.
Até 1979, o levantamento dos incêndios ocorridos “realizava-se somente quando estes atingiam áreas geridas pelo Estado“, ao passo que “a informação sobre o número de incêndios e a área ardida em áreas privadas era calculada por extrapolação, com todos os erros inerentes a este método”. Só a partir de 1980 é que “a informação estatística passou a ser tratada de forma mais científica“, pelo que a comparação direta entre os diferentes períodos (e métodos de recolha de informação) é enganadora.
Por outro lado, o gráfico apresenta dados somente a partir de 1968, não englobando os referidos incêndios florestais de grande dimensão em 1961 e 1966, entre outros exemplos.
Também em 2022, foi difundida uma narrativa complementar através da partilha de uma imagem antiga, do tempo do Estado Novo, com a seguinte legenda: “Quando as florestas portuguesas eram patrulhadas por cerca de 4.000 guardas-florestais distribuídos por 940 casas de guarda e 140 postos de vigia, a prevenção funcionava.”
O Polígrafo confirmou com o Ministério da Administração Interna que que a informação era falsa. Os dois últimos números faziam parte de um plano de povoamento florestal de 1939, não tendo sido estabelecida qualquer relação com o número de guardas-florestai. O número previsto na lei era, aliás, bastante inferior: apenas 877 guardas-florestais.
Fogo posto. É mesmo a causa de todos os incêndios florestais em Portugal?
Numa altura em que Portugal volta a debater-se com o drama dos fogos florestais, nas redes sociais proliferam também as críticas à gestão do Governo. No dia 7 de agosto, o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, revelou na comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias que mais de metade dos fogos que deflagraram até maio deste ano tiveram como causa a negligência.
A declaração foi desmentida num vídeo partilhado no Facebook, que alega que “3/3 dos incêndios são fogo posto. E toda a gente já o sabe. Exceto o ministro Carneiro”. Segundo o protagonista do vídeo, a fonte do desmentido é a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC).
De acordo com o 3.º relatório provisório de incêndios rurais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) no período de 1 de janeiro a 31 de julho foram registados 5.170 incêndios rurais. Destes, 4.016 foram investigados e têm o processo de averiguação de causas concluído (78% do número total de incêndios – responsáveis por 87% da área total ardida). A investigação resultou na determinação de causa para 2.934 incêndios.
“Até à data, as causas mais frequentes em 2023 são: Queimadas de sobrantes florestais ou agrícolas (20%) e Incendiarismo – Imputáveis (20%). Conjuntamente, as várias tipologias de queimas e queimadas representam 51% do total das causas apuradas. Os reacendimentos representam 4% do total das causas apuradas, um valor inferior face à média dos 10 anos anteriores (10%)”, indica o relatório. Ainda que existam muitos incêndios cuja causa não foi apurada, a percentagem está distante de se poder concluir que todos os fogos foram causados por fogo posto ou com intenção criminosa.
André Ventura, líder do Chega, utiliza como bandeira há vários anos os fogos postos. Por exemplo, em 2022, o Polígrafo verificou que Ventura fez uma associação enganosa entre incêndios provocados por “mão humana” (que incluem queimadas) e o agravamento da moldura penal a incendiários. Nesse ano, 23% dos incêndios foram atribuídos a “incendiarismo relacionado a indivíduos imputáveis”. Logo, a relação que Ventura criou entre “80% dos incêndios” que tiveram “mão humana” e a medida que propunha de “acabar com penas suspensas e liberdade condicional para os incendiários” era falaciosa.
As inúmeras publicações sobre os helicópteros Kamov e o que foi (e não foi) feito pelo Governo
Os seis helicópteros Kamov de combate a incêndios rurais foram adquiridos pelo Governo em 2006. Em 2022, o Polígrafo escrevia que desde 2018 todos esses helicópteros Kamov estão parados, à guarda da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), aguardando pelos resultados de uma auditoria que, assegurou o Ministério da Defesa Nacional na altura, tinha sido autorizada “recentemente”.
No que respeita à frota Kamov pertencente ao Estado, apenas três dos seis meios aéreos pesados estiveram operativos em 2017, tendo deixado de estar em 2018 por falta de manutenção e respetiva certificação pela Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC), como aponta um relatório do Tribunal de Contas de “Auditoria ao Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais“, publicado em 2021.
De facto, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 139/2018 determina, além da transferência dos três helicópteros ligeiros Ecureuil AS 350 B3, a transferência de seis helicópteros pesados Kamov 32A11BC da ANEPC para a Força Aérea Portuguesa. Mais, estabelece que a transferência deve ser realizada livre de ónus ou encargos, nomeadamente de natureza administrativa, financeira e jurídica.
Em resposta ao Polígrafo, em julho de 2022, o Ministério da Defesa Nacional (MDN) indicou, no entanto, que ainda não tinha sido possível concretizar a transferência dos aparelhos, que se encontravam “inoperacionais“, uma vez que subsistia um contencioso entre o Estado Português e a empresa a quem esteve entregue a operação e manutenção dos helicópteros, que obrigava à “remoção de alguns componentes dos aparelhos”.
Em setembro do mesmo ano, o Polígrafo veio, no entanto, desmentir que nada tenha sido feito relativamente aos helicópteros, como se alegava nas redes sociais. A transferência dos Kamov para a Força Aérea Portuguesa é a prova disso. Além do atraso relativo às peças removidas, também as sanções económicas aplicadas à Rússia atrasaram o processo de manutenção destas aeronaves, já que a Agência Europeia de Aviação deu ordem para que todas as licenças de voo dos helicópteros russos Kamov fossem suspensas. Na sequência dessa imposição, todas as aeronaves, à espera de manutenção ou contratadas para combater incêndios, ficaram inutilizáveis.
No mês seguinte, em outubro de 2022, a ministra da Defesa, Helena Carreiras, anunciou a doação dos Kamov à Ucrânia no âmbito do apoio ao esforço de guerra contra a Rússia. No entanto, como lembrou a CNN em maio passado, depois de sete meses os seis helicópteros Kamov continuam em Portugal e sem data para viajar para Kiev.
O Ministério da Defesa da Ucrânia confirmou que ainda estão a avaliar o estado dos helicópteros fechados desde 2018, sem condições para voar. A forma como será feita a transferência ainda está a ser avaliada pelo Governo liderado por Volodymyr Zelensky, não sendo sequer claro se os Kamov voltarão a voar na Ucrânia ou apenas usados para peças, algo que continua em estudo.