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Diretiva europeia. Seguro de responsabilidade civil pode passar a ser obrigatório para trotinetas que não podem circular na via pública?

A transposição de uma diretiva europeia relativa à obrigatoriedade de seguro de responsabilidade civil automóvel gerou confusão sobre a sua aplicação prática, pela possível implicação em veículos de mobilidade pessoal, como bicicletas e trotinetas. Várias entidades apresentaram o seu entendimento sobre a situação, mas a dúvida mantém-se: afinal, há ou não veículos de micromobilidade que vão passar a ser obrigados a ter este seguro?
© Shutterstock

No início da semana passada, começaram a circular nas redes sociais diversas publicações relativas às novas regras para bicicletas e trotinetas elétricas. Em causa estava o início das fiscalizações da Polícia de Segurança Pública em cumprimento do Diretiva (UE) 2021/2118, de 20 de março, que completa a transposição da Diretiva (UE) 2021/2118, relativa ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Este diploma visa reforçar a proteção das vítimas de acidentes rodoviários, criando um mecanismo que assegura indemnizações aos lesados mesmo em situações de insolvência da seguradora responsável, e as novas regras aplicam-se à circulação de qualquer “veículo a motor destinado a circular sobre o solo, que não se desloque sobre carris, acionável por força mecânica, bem como aos seus reboques, ainda que não atrelados, desde que tenha uma velocidade máxima de projeto superior a 25 km/h ou um peso líquido máximo superior a 25 kg e uma velocidade máxima de projeto superior a 14 km/h“.

Com base nesta definição e uma vez que o DL não identifica os veículos a que se aplica e sim as características que possuem, a PSP concluiu que “existindo uma trotineta a motor ou velocípede a motor ou qualquer outro veículo a motor destinado a circular sobre o solo, que não se desloque sobre carris, acionável por uma força mecânica, assim como os seus reboques, ainda que não atrelados, que atinja uma velocidade máxima superior a 25km/h, ou que tenha um peso superior a 25 kg e atinja uma velocidade superior a 14km/h deve possuir seguro de responsabilidade civil”.

ANSR em desacordo

No entanto, dias depois, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) corrigiu esta versão, esclarecendo que, seguindo o Código da Estrada, os velocípedes não estão abrangidos e que as trotinetas e veículos equiparados com as características apontadas no diploma nem sequer podem circular na via pública.

“As trotinetas ou dispositivo de circulação com motor elétrico, autoequilibrado e automotor ou em meio de circulação análogo com motor, equipado com motor com potência máxima contínua superior a 0,25 kW ou que atinja uma velocidade máxima em patamar superior a 25 km/h, não estão autorizados a circular na via pública, dado que ainda não foi definido quer o seu regime de circulação quer as suas caraterísticas técnicas, que têm, ainda, de ser objeto de decreto regulamentar“, explicou.

Depois deste esclarecimento, a PSP anunciou que ia seguir as recomendações da ANSR, mas que ia solicitar mais informações à autoridade administrativa.

Veículos proibidos podem precisar de seguro

Quando se pensava que a questão estava resolvida, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) emitiu uma nota para alertar que os veículos que possuam as características referidas no diploma, mesmo proibidos de circular em via pública, podem precisar de seguro de responsabilidade civil:

“A definição exclui da obrigação do seguro automóvel a maior parte dos dispositivos de mobilidade pessoal atualmente em circulação em Portugal (bicicletas, trotinetas entre outros), desde que não excedam os limites de peso e velocidade fixados. Contudo, a ASF alerta que certos dispositivos com características mais robustas -nomeadamente algumas trotinetas elétricas e e-scooters de maior potência, frequentemente adquiridos através de plataformas online – podem enquadrar-se na nova definição legal de veículo e, por isso, estar sujeitos ao SORCA”.

Questionada pelo Polígrafo, a ASF explica que, mesmo proibidos de circular pelo Código da Estrada, na eventualidade destes veículos poderem ser utilizados num terreno privado ou de, por exemplo, serem furtados e circularem indevidamente na via pública, os danos que possam causar a terceiros deverão estar garantidos pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

Acrescenta ainda que a diretiva europeia transposta pelo novo diploma nacional define o conceito de circulação de veículo como “qualquer utilização de um veículo que esteja em conformidade com a função habitual desse veículo enquanto meio de transporte aquando do acidente, independentemente das características do veículo e independentemente do terreno em que o veículo automóvel seja utilizado, e quer se encontre estacionado ou em movimento;”.

“Importa também considerar que o Código da Estrada visa a regulação da circulação rodoviária, ou seja, do trânsito na via pública e nas vias equiparadas, enquanto o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel visa a proteção dos terceiros lesados pelo uso dos veículos sujeitos ao seguro, ainda que o veículo seja ilegal ou o seu uso seja ilegal”, destaca.

O Polígrafo solicitou esclarecimentos adicionais sobre a situação da ASNR, que remeteu para o esclarecimento anterior.

Insegurança jurídica e falta de regulamentação

Margarida Moura, jurista da DECO, considera que foi criada uma situação de absoluta “insegurança jurídica” para o consumidor e que esta discordância entre a autoridade fiscalizador, reguladora e administrativa deve-se precisamente à falta de clareza do legislador, que ignorou a realidade e a falta da regulamentação prevista no Código da Estrada.

Ao Polígrafo, a especialista refere que  o legislador comunitário entendeu que os veículos a motor mais pequenos, como as bicicletas, são menos suscetíveis de causarem danos significativos às pessoas, comparativamente a outros veículos maiores, como carros ou camiões, não havendo provas suficientes de produzirem danos à mesma escala.

No próprio texto original da diretiva pode ler-se o seguinte: “Seria desproporcionado, e não orientado para o futuro, incluí-los no âmbito de aplicação da Diretiva 2009/103/CE. Tal inclusão comprometeria igualmente a aceitação de veículos mais recentes, como as bicicletas elétricas que não são acionadas exclusivamente por uma força mecânica, e desencorajaria a inovação. (…) De acordo com os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, os requisitos a nível da União deverão, portanto, abranger apenas os veículos definidos como tal na Diretiva 2009/103/CE”.

“Como vai ser feita a fiscalização? Como se vai fiscalizar a velocidade máxima de projeto? Há anos que a DECO alertou para esta e outras questões, que uma transposição da Diretiva, tal como foi feita, iria levantar”, aponta.

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