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Caso SEF. O que mudou na acusação do Ministério Público?

Este artigo tem mais de um ano
Os três inspetores do Serviços de Estrangeiros e Fronteiras acusados da morte de Ihor Homeniuk no aeroporto de Lisboa, em março de 2020, chegaram a julgamento acusados do crime de homicídio qualificado, arriscando a pena máxima de prisão, 25 anos. No entanto, nas últimas sessões, o Ministério Público deixou cair a acusação inicial e pediu, para os três agentes, a condenação entre 8 e 16 anos, pelo crime de ofensas corporais graves, agravado pelo resultado morte. Mas o que distingue os dois crimes? E quais as diferenças nas molduras penais?

Ihor Homeniuk morreu a 12 de março no Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa. Tinha desembarcado há dois dias, vindo da Turquia com um visto de turista. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) terá impedido a entrada do cidadão ucraniano em território português e decidido que teria de regressar ao país de origem no voo seguinte.

As autoridades terão tentado por duas vezes que o homem de 40 anos embarcasse no avião e, perante a sua recusa, o cidadão ucraniano terá sido encaminhado para uma sala de assistência médica nas instalações do Aeroporto Humberto Delgado. Foi nesse espaço que terá sido amarrado e agredido violentamente por três inspetores do SEF, acabando por morrer.

O julgamento do caso teve início no dia 2 de fevereiro de 2021. A acusação defende que os inspetores Bruno Valadares Sousa, Duarte ​​​​​​​Laja e Luís Filipe Silva trataram Ihor Homeniuk de forma desumana, provocando-lhe graves lesões corporais e psicológicas até à morte. Os três arguidos encontram-se em prisão domiciliária desde o final de março de 2020.

Apesar de terem chegado a julgamento acusados pelo crime de homicídio qualificado, os inspetores do SEF poderão agora ser condenados pelo crime de ofensas corporais graves, agravado pelo resultado morte. A conversão da acusação para o crime menos grave já tinha sido admitida pelo coletivo de juízes, mas foi na última sessão em tribunal, no dia 12 de abril, que a procuradora do Ministério Público (MP), Leonor Machado, admitiu a insuficiência de provas relativas à intenção de matar dos três arguidos. Ainda assim, foi pedida uma pena “nunca inferior a 13 anos de prisão” para dois dos agentes e de 8 anos para o terceiro.

Ao Polígrafo, Paula Ribeiro de Faria, professora de Direito Penal na Universidade Católica do Porto e investigadora na área do Direito Criminal, começa por destacar a gravidade do crime de homicídio qualificado, que consta da acusação inicial deste processo. “Trata-se de um crime intencional, em que a morte é causada em circunstâncias objetivamente muito graves, por exemplo, porque o homicida tinha uma relação particular com a vítima, e que é extremamente censurável”.

No Código Penal (CP), este crime encontra-se previsto no artigo 132º que admite uma pena de prisão entre os 12 e os 25 anos, ou seja, contempla a possibilidade de condenação na pena máxima de prisão em Portugal.

Nas alíneas d) e m) do artigo do artigo supracitado estão descritas circunstâncias que, no caso da morte de Homeniuk, se enquadram no âmbito da “censurabilidade ou perversidade” exigidas no caso da condenação por homicídio qualificado.

“Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima”, lê-se na alínea d). De facto, o Ministério Público considerou que Ihor Homeniuk sofreu tortura até à morte cuja causa foi definida por asfixia lenta provocada por várias fraturas nas costelas. No ponto m) está definido que “ser funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade” é também uma das circunstâncias de especial gravidade associadas à imputação do crime.

Já em relação ao crime de ofensa à integridade física grave qualificada, agravada pelo resultado, que foi agora estabelecido pelo tribunal e MP como alternativa ao homicídio qualificado na acusação dos três arguidos, Paula Ribeiro de Faria entende que este é também “um crime totalmente doloso”, estando previsto nos artigos 145º e 147º do CP.

“Uma das hipóteses incluídas nas ofensas corporais graves é a ofensa à integridade física com perigo para a vida. É uma situação em que o autor do facto causa ofensas à integridade física (graves ou simples) a outra pessoa, mas age com a intenção de criar um perigo para a vida dessa pessoa. Não a quer matar, só quer colocar a vida dela em perigo, ou pelo menos admite que ela venha a morrer”, esclarece a penalista. No caso de Ihor Homeniuk, “os agentes quiseram agredi-lo, bater-lhe, sabiam que estavam a colocar a vida dele em perigo“, acrescenta.
Espaços fechados nos aeroportos recebem migrantes, todos os dias, por tempo indeterminado. Mas o que acontece nos centros de instalação temporária aí deve permanecer, ignorado ou silenciado no exterior? O Polígrafo ouviu os relatos dos que esperam indefinidamente por quem está lá dentro e os testemunhos de quem sai ao fim de horas sem comer ou beber. Denunciam práticas de racismo, xenofobia e coação.
O crime de ofensa à integridade física grave, prevista no artigo 144º do CP é punido com pena de prisão de dois a dez anos. No entanto, quando classificado enquanto ofensa qualificada, sendo este o caso, pode ser aplicada uma pena de prisão entre os três e os 12 anos.
Resta analisar a agravação pelo resultado do artigo 147º do CP. Segundo explica a professora de Direito Penal, este tipo de crime decorre de “situações em que a morte decorre de uma violação de deveres de cuidado na prática das ofensas corporais dolosas previstas nos crimes de ofensas corporais, neste caso, graves”.
“Os agentes quiseram ferir, agredir, maltratar a vítima, mas fizeram-no de tal forma descuidada que mataram negligentemente aquela pessoa. A forma como agrediram, a forma como executaram as ofensas, tornou previsível a morte. A morte é negligente, mas decorre da forma como foram praticadas as ofensas corporais dolosas“, indica a investigadora.
Tal como se indica no nº1 do artigo 147º, “se das ofensas previstas nos artigos 143.º a 146.º resultar a morte da vítima, o agente é punido com a pena aplicável ao crime respetivo agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo”. Assim, aos 12 anos de pena máxima prevista para o crime de ofensa à integridade física qualificada acrescem no máximo quatro anos, perfazendo um total de 16 anos, a pena máxima de prisão proposta pelo MP a dois dos arguidos acusados da morte de Homeniuk no aeroporto de Lisboa.
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