Tudo começou com um artigo sobre assédio na academia, publicado numa editora internacional. Nas páginas do artigo intitulado como "The walls spoke when no one else would: Autoethnographic notes on sexual-power gatekeeping within avant-garde academia", três investigadoras - Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom - relatam abusos sexuais e morais no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

O capítulo em questão não menciona o nome dos alegados responsáveis pelas práticas de assédio, mas nele são retratadas duas personagens: "The Star Professor" (o professor estrela) e "The Apprentice" (o aprendiz). Segundo o jornal "Diário de Notícias", não é difícil perceber que os dois homens mencionados são, respetivamente, o sociólogo Boaventura Sousa Santos, diretor emérito do CES, e o antropólogo Bruno Sena Martins, investigador do quadro da instituição. Ambos se reconheceram nas descrições, mas têm recusado repetidamente as acusações de que são alvo.

Boaventura Sousa Santos anunciou, entretanto, que irá avançar com uma queixa-crime por difamação e, tal como esclareceu o CES na noite de ontem, os dois professores visados foram suspensos a pedido dos próprios dos cargos "de responsabilidade e/ou representação institucional" da instituição.

  • Assédio sexual na Universidade de Coimbra. Denúncia "sem nomes" é válida em processo legal?

    Dois professores do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra estão a ser acusados de assédio sexual. As alegações surgiram num artigo sobre assédio no meio académico. Os relatos do livro não referem nomes, quer dos acusados, quer das alegadas vítimas, mas os jornais apontam para Boaventura Sousa Santos e Bruno Sena Martins, que já se reconheceram como as "personagens" representadas. Mas será que esta denúncia "sem nomes" é válida num eventual processo legal apresentado pelas vítimas?

As três investigadoras que assinam o documento não prestaram mais declarações sobre o tema, mas a ponta do véu que levantaram fez surgir relatos de outras alegadas vítimas. Uma investigadora brasileira, que trabalhou no centro de estudos, acusa o seu orientador de doutoramento, Boaventura de Sousa Santos, de assédio sexual.

Durante uma reunião de trabalho, Sousa Santos tocou no joelho da investigadora, convidando-a a "aprofundar a relação" que tinham como forma de "pagamento" pelo seu apoio académico. Antes desse momento, também em contexto de trabalho, o académico "já tinha sido estranho", revelou a investigadora que garante ter regressado ao Brasil para terminar a tese no seu país e, assim, afastar-se da situação.

Mas como identificar uma situação de assédio sexual? E como agir perante a mesma? O Polígrafo falou com especialistas que lidam diariamente com esta realidade.

"Uma visão favorável do trabalho de alguém não deve estar ligada à participação num jantar"

"Esse senhor convidou-me para jantar, num lugar onde estávamos sozinhos. Começou a beber e convidou-me a ir ao seu departamento para buscar uns livros que me iria emprestar. Quando vou ao departamento desse senhor, ele mete-se em cima de mim", o relato surgiu pela voz de Moira Ivana Millán, ativista indígena argentina, e foi agora recuperado pela mesma a propósito da denúncia de outras investigadoras sobre abusos de Boaventura Sousa Santos.

Mas o que distingue um convite para jantar entre colegas de trabalho e um caso de assédio sexual? "A diferença entre aquilo que é uma manifestação de interesse romântico aceitável e o assédio sexual é uma linha fina e que muitas vezes não está perfeitamente delineada na lei e que tem de ser avaliada tendo em conta as circunstâncias do caso concreto", afirma Nuno Ferreira Morgado, sócio e co-coordenador da área de Direito Laboral da PLMJ. E acrescenta que no contexto laboral, "onde existe uma relação profissional, muitas vezes até de dependência hierárquica, manifestações de interesse romântico são mais passíveis de poder integrar o conceito de assédio".

Reportando-se ao caso concreto de um convite para jantar, o advogado garante que "uma visão favorável do trabalho de alguém não deve estar ligada à participação num jantar com um determinado profissional".

Tatiana Mendes, dirigente e técnica licenciada em psicologia na União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), entende que o mais importante para a distinção entre um comportamento de assédio e outros comportamentos é o "não consentimento, por não ser algo desejado". E explica: "Note-se que até uma declaração ou um convite pode constituir assédio, se a pessoa a quem se destina não o desejar e, ainda assim, a outra insistir, reiteradamente, contra a sua vontade… para um pas-de-deux são precisas duas pessoas ou mais, se esse for o caso, não é?"

Segundo a especialista formada em psicologia, "conseguimos perceber muito cedo, através da linguagem verbal e não verbal, o que não é consentido e se/quando as pessoas estão interessadas ou não em determinados atos". E lembra: "A forma como os estereótipos de género influenciam essa perceção é que pode esbater os limite. Para alcançar uma sociedade que garanta o pleno usufruto de direitos, teremos de trabalhar o consentimento, de forma explícita e desde cedo com as crianças."

A representante da UMAR entende que há comportamentos que ainda são "desculpabilizados por razões biológicas, são 'naturais nos homens', e outros há que são vistos até como desejáveis ou românticos". Os relatos que surgiram a partir do caso mediático do CES assentam como uma luva no entendimento da especialista. Uma das investigadoras a denunciar comportamentos inapropriados de Sousa Santos terá recebido a seguinte resposta depois de reportar o caso a "várias professoras": "'Ele é brilhante, mas infelizmente tem dessas coisas.'"

O apelo à autonomização do crime de assédio sexual

Marta Mendes, jurista da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e gestora do gabinete da associação em Braga, define o assédio sexual como todos os "comportamentos indesejados, de natureza verbal e física, que revestem este carácter de natureza sexual e que visam um fim - atingir a dignidade da vítima e a deterioração da sua integridade física e moral". A especialista aconselha a consulta da nota informativa da APAV sobre o tema, onde, por exemplo, são enumeradas as várias formas de vitimação. 

A jurista entende que o crime de importunação sexual, tal como está previsto no Código Penal, "poderá efetivamente não cobrir este âmbito do assédio sexual, e daí a APAV já ter emitido parecer nesse sentido em que a solução ideal seria a proposta de uma redação que abarcasse o que já temos na importunação sexual, mas introduzir-se também as novas condutas de assédio". Defende que a vantagem desta solução seria adequar-se melhor aos objetivos da prevenção geral, em que a finalidade é atingida, "chamando a atenção a toda a comunidade para esta mudança de paradigma no sentido da não aceitação de todos os atos de assédio e de importunação". 

Também a UMAR, através da dirigente e técnica licenciada em psicologia Tatiana Mendes apela à autonomização do crime de assédio sexual no código penal. "Apesar de se achar que o assédio sexual é previsto legalmente em Portugal pelo crime de importunação sexual, revisto em 2015, de modo a abranger os atos de assédio sexual, percebe-se que não tem sido suficiente para enquadrar todos os atos e deixa muitas dúvidas acerca do que pode ou não ser considerado, nomeadamente a subjetividade de quem julga, logo, influenciando negativamente a opinião pública", assinala a especialista.

O caminho a seguir para evitar o assédio sexual? "Um combate musculado" e o foco na vítima

"Os códigos de conduta não devem ser criados apenas porque a lei assim o exige. Devem ser devidamente divulgados, em linguagem acessível, ter verdadeiros mecanismos de reporte seguros e protetores da vítima, mas também das testemunhas", garante Marta Mendes.

A jurista da APAV considera essencial "prevenir, formar e capacitar as pessoas para este tema e para reconhecerem que este é um verdadeiro fenómeno e que independentemente do local onde possamos compreender a sua prática - pode acontecer a qualquer momento e em qualquer local, mesmo com muitas condutas preventivas".

Assim, o combate "tem de ser musculado, com a criação, divulgação dos códigos de conduta e de mecanismos muito seguros, protetores das vítimas, bem como das testemunhas, e que permitam a celeridade do processo". A especialista aconselha ainda a, sempre que possível, criar um protocolo e a possibilidade de as vítimas terem apoio através de uma outra entidade, para perceberem quais as opções jurídicas que têm".

Lembra ainda que é essencial a vítima manter um registo dos incidentes - "quando e onde ocorreu, o que foi dito ou feito, como se sentiu a vítima, haviam ou não pessoas envolvidas e potenciais testemunhas - nome e endereço destas pessoas". Além disso, "as evidências escritas devem sempre ser juntas para que efetivamente se prove a veracidade dos factos, porque depois o processo visa isso mesmo- a descoberta da verdade". Daí, segundo Marta Mendes, o apoio à vítima ser tão importante, "desde o primeiro momento".

Nuno Ferreira Morgado segue a mesma linha. "A própria lei obriga a ter políticas de combate ao assédio, é necessário ter regras claras dentro da empresa que explicitem e que de alguma forma concretizem os conceitos abertos que a lei tem, com conceitos concretos e práticas concretas". Além disso, aconselha a criação de canais para as pessoas poderem submeter queixas e garantir a confidencialidade das suas identidades, "que é fundamental". O advogado reforça ainda que "a formação frequente para aquilo que são as práticas aceitáveis no contexto da empresa" é muito desejável.

Tatiana Mendes assinala que as instituições e as empresas são parte da sociedade. "Se tivermos em conta os custos a nível social, da saúde e até económicos, estas devem contribuir explicitamente para a censura social do assédio sexual, comprometendo-se com a sua prevenção e eliminação", afirma. Lembra ainda que a "vítima/sobrevivente não é culpada pelo que lhe sucedeu", defendendo que exista "uma censura social do assédio sexual e de outras violências, bem como a existência de estruturas e mecanismos de denúncia e de apoio para garantir uma resposta adequada e a reparação dos direitos das vítimas, evitando a vitimação secundária.

A representante da UMAR, que trabalha na prevenção primária da violência em contexto escolar, entende ainda ser fundamental que a "escola pública assuma a sua responsabilidade na formação explícita e implícita da cidadania, nomeadamente ao desconstruir os estereótipos de género e outras construções sociais que legitimam as violências com as crianças e jovens, para se construir uma nova cultura de valores e de relações interpessoais".

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