Em confinamento com duas crianças, de 10 e 12 anos de idade, Elsa Costa e Silva assume agora três profissões. É mãe, docente e investigadora, todas elas a tempo inteiro. Adiou trabalhos planeados, ainda que o tempo parecesse misturar-se num espaço que “era sempre o mesmo”.

“Há mais gente em casa, mais refeições em casa, há mais louça suja, há mais casa suja. Senti muitas vezes que era difícil responder com qualidade a todas as solicitações”, confessa.

No Twitter, em abril de 2020, um editor de uma revista académica destacou que as submissões de artigos científicos escritos por homens tinham aumentado quase 50%. Estudos recentes confirmaram esse fenómeno: investigadoras, fechadas em casa com filhos sob tutela, começaram a ficar para trás em relação aos colegas homens. Mesmo que eles sejam os seus maridos.

Dois meses depois do início da quarentena, alguns editores de revistas académicas tinham começado a notar uma tendência, expondo-a nas redes sociais: as mulheres - que inevitavelmente assumem uma parcela maior das responsabilidades familiares - pareciam estar a submeter menos artigos. A par com outras áreas, a investigação e força de trabalho científica foram empurradas para dentro de casa, onde docentes do sexo masculino têm quatro vezes maior probabilidade do que as colegas mulheres de ter um parceiro envolvido nas responsabilidades domésticas.

Marisa Torres da Silva diz ser uma “privilegiada”. É investigadora e professora auxiliar na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Lisboa (FCSH). Quando a pandemia traçou um limite às movimentações, não se sentiu especialmente afetada. Confessa estar habituada a trabalhar a partir de casa, pelo que a transição foi quase nula quando grande parte dos portugueses vivia uma reviravolta em termos laborais. Tem dois filhos, de quatro e dois anos de idade, e sublinha que, se não fosse o apoio dos pais, teria que organizar os seus dias de maneira diferente. “Olhando para o meu ritmo de trabalho, e dos meus colegas professores e investigadores, muita coisa teria obrigatoriamente de ficar para trás. Não seria possível de outra forma”.

Para Elsa Silva, do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), não houve outra forma. O ritmo possível foi retomado depois do fim das aulas, ou seja, a partir de maio. Não obstante, houve trabalhos pensados que acabaram por ser adiados na agenda da investigadora. Outros foram cumpridos a custo. “Consegui manter os compromissos mais urgentes. Tenho colegas com filhos mais pequenos, ainda bebés, e para elas foi muito mais complicado”.

Um estudo da Universidade de Harvard, nos EUA, com dados relativos ao período entre dezembro de 2019 e maio de 2020, mostra que, em termos de pré-impressões, os homens aumentaram a produtividade em percentagens que chegaram aos 100%. No início da quarentena, a linha fixava-se nos 200 artigos. Semanas depois atingia os 400, numa linha que se manteve quase sempre superior aos períodos que antecederam o confinamento e que marca um aumento no fosso entre as publicações entre homens e mulheres.

Mães na investigação: “Faz-se, estritamente, o que é possível”.

A investigação entrou-lhes em casa com o fecho das universidades. Semanas depois, os filhos deixavam de sair para a escola. Uma comunhão de trabalho e família que deixou Elsa e Marisa numa situação vulnerável. “Senti muitas vezes que era difícil responder com qualidade a todas as solicitações. Elas [filhas] acabaram por 'sofrer' muitas vezes a falta de atenção que mereciam, por eu estar em reuniões, em aulas, em conferências e também cansada. E creio que, de repente, toda a gente percebeu que era fácil ter reuniões à distância, o que aumentou o número de reuniões que tínhamos relativamente ao período pré-pandemia”, explica Elsa Costa e Silva.

As oito horas de trabalho estenderam-se e o fim-de-semana deixou de significar lazer. “Era difícil quebrar a jornada de trabalho, porque o espaço era sempre o mesmo”, afirma. Enquanto essa jornada se dissolve com a maternidade, as horas são aproveitadas para fazer o melhor dos dois mundos. “Apesar de se querer fazer passar a ideia de que podemos estar com os filhos em casa e em teletrabalho simultaneamente, acho que não é possível fazer as duas coisas bem ao mesmo tempo. Faz-se, estritamente, o que é possível”.

O que é possível, no caso de Marisa Torres e Silva, é-o graças ao marido e aos pais. "Estou numa situação muito privilegiada. O meu marido faz muitas - melhor dizendo, a maior parte - das tarefas domésticas. Essa foi uma das vantagens que o teletrabalho trouxe, do meu ponto de vista. Ele já fazia muitas coisas antes da pandemia, havia uma verdadeira divisão de tarefas, mas estando ele também em teletrabalho passou a fazer muito mais do que eu”, salienta.

Esta é, ainda assim, uma tendência pouco comum junto das restantes investigadoras. Menos ainda junto de mulheres que trabalhavam a partir de casa, já antes da quarentena. Grande parte das lides domésticas é assegurada por elas: quando são mães, as responsabilidades duplicam. Isto sugere que mulheres investigadoras terão maior probabilidade de enfrentar uma intensificação das responsabilidades domésticas quando confinadas ao lar e, consequentemente, uma redução na produção científica. 

Essa hipótese foi, de resto, confirmada em algumas análises iniciais sobre o tema: um estudo que envolveu mulheres economistas demonstrou uma queda de 12% na produção de pré-relatórios submetidos em março de 2020 e uma redução de 20% em abril. Um outro veio confirmar as  suspeitas prévias de alguns editores: tópicos relacionados com a Covid-19 têm menor probabilidade de serem abordados por mulheres, o que pode, invariavelmente, contribuir para uma menor produção científica das mesmas.

Homens aumentaram a produtividade. Em alguns casos, em cerca de 50%.

Em sentido inverso, os autores do sexo masculino em repositórios de artigos científicos aumentaram substancialmente, face ao número de submissões protagonizadas por mulheres. Os editores de revistas periódicas relatam as mesmas tendências nos dados de submissão, mas este é um problema que varia conforme as diversas áreas de investigação.  

Em entrevista ao Polígrafo, Magda Nico, socióloga e docente no ISCTE, garante que é necessário olhar para estes estudos com algum cuidado, tentando assegurar ao máximo a qualidade da interpretação comparativa efetuada nos mesmos. “A academia tem a sua muito própria estratificação de género. Esta estratificação é quantitativa, no sentido em que existem mais homens do que mulheres nas profissões científicas e tecnológicas, de uma forma geral, mas também muito especialmente nos topos das carreiras. Mas é também qualitativa, no sentido em que a distribuição de homens e de mulheres pelos tipos de ciências - sociais por um lado, ditas exatas por outro - também não é equilibrada ou proporcional do ponto de vista do género”, explica a socióloga. 

No Twitter, um editor da CPS (Comparative Political Studies) começou a reparar nos números logo no início da pandemia. A revista, que publica 14 vezes por ano, terá recebido o mesmo número de submissões de mulheres em 2020 e 2019. Ainda assim, o número de submissões por parte de homens aumentou mais de 50%, de acordo com David Samuels.

Outras revistas denunciaram apenas uma queda no número de artigos assinados individualmente por mulheres, o que mostra que a estabilidade face a anos anteriores é garantida somente quando se trata de um trabalho de equipa. Mas quando homens e mulheres confinam são elas que assumem grande parte dos encargos não laborais. Algumas destas responsabilidades são determinadas pela biologia: se uma mulher decide amamentar, as horas disponíveis para o trabalho vão encolher. O mesmo acontece no período pós-parto, quando a recuperação física pode condicionar a prestação laboral.

“Os padrões de organização do trabalho doméstico entre casais heterossexuais são desiguais”.

“Ainda que seja de facto necessário ter em conta estas pré-existentes desigualdades de género na academia - menos mulheres, em menos lugares de topo, com progressões da carreira mais lentas ou tectos de vidro - e que seja impossível neste momento comprovar a tese de que a sobrecarga doméstica, o cuidado aos filhos, a organização e gestão do espaço doméstico, o cuidado a outros elementos da família mais vulneráveis ou doentes, tudo isso tem diretamente contribuído para o aparente menor número de publicações por parte das mulheres na ciência. Não há infelizmente nos estudos da família, do género e da conciliação trabalho-família evidências para crer o contrário”, afirma Magda Nico.

Além dos condicionamentos temporais, a disposição psicológica em período de confinamento pode colocar em causa a qualidade do trabalho. Marisa Torres da Silva confessa que viu a sua produtividade “afetada”.

“Psicologicamente tenho passado por altos e baixos. Há dias em que simplesmente não me consigo concentrar, porque estou mais preocupada, ou ansiosa, ou triste”. Mesmo em situação privilegiada, viu-se obrigada a adiar vários prazos. “E se eu tive de o fazer…”

A interseção de trabalho, escola e vida doméstica tem mais consequências para as mulheres quanto maior for o número de filhos. A experimentar o oposto dos colegas homens, Elsa Costa e Silva aponta uma média de três horas diárias, que sofrem um aumento durante o período de pandemia, destinadas às tarefas domésticas. Acrescem as preocupações com os almoços e lanches das filhas, “antes providenciados na escola ou pela sala de estudo”. 

“Sabemos que os padrões de organização do trabalho doméstico entre casais heterossexuais são desiguais e que, mesmo fora do contexto conjugal, são predominantemente as mulheres que mais apoio prestam a familiares idosos ou doentes. Isto é infelizmente válido para os setores mais qualificados onde incluímos a academia, mesmo que com contornos eventualmente menos marcados. A pandemia não terá certamente interrompido esta continuada desigualdade, tendo-a isso sim tornado mais evidente. Além disso, o trabalho intelectual, devido ao elevado e continuado nível de concentração que exige, viu abruptamente diminuídas as capacidades de conciliação da vida profissional e da vida privada, familiar ou doméstica. E é previsível que isso afete, continue a afetar, mais as mulheres do que os homens”, explica Magda Nico.

“Talvez venhamos a ser surpreendidos” - É cedo para assumir desigualdades?

Qualquer análise relativa a publicações deve esperar por 2021 ou 2022, ressalva Magda Nico. “Os artigos submetidos em 2020 representam muito trabalho - muito dele resiliente e criativo - por parte dos investigadoras e investigadores. Talvez venhamos a ser surpreendidos e verificar que afinal, entre os trabalhos submetidos para publicação em 2020 ou até em 2021 (realizados durante os confinamentos), e publicados no decorrer de 2021 ou 2022, uma grande ou a maior parte é assinado por mulheres”.  

Ainda assim, defende a necessidade, no futuro, em concursos para entrada ou progressão na carreira científica, de uma abordagem “mais qualitativa e flexívelna avaliação dos currículos. Segundo a socióloga, importa ter em conta o “impacto da pandemia na exequibilidade dos projetos”, “se o trabalho científico se fez em teletrabalho” e “se existem e quantos filhos menores ou outros dependentes”. Na sua perspetiva, “esta seria uma medida não diretamente de género, mas que humanizaria e dignificaria o trabalho intelectual e as suas circunstâncias”.

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