
As câmaras de vídeo instaladas nos tabliers dos automóveis (“dash cams”) são um recurso utilizado por vários condutores para registar os detalhes de um eventual acidente. Tanto que horas de filmagens captadas por estes aparelhos - sobretudo em países onde a sua utilização é legal, como é o caso do Reino Unido - foram carregadas na Internet e estão disponíveis no Youtube.
No entanto, a legitimidade da utilização dessas câmaras está longe de ser consensual por poder colidir com o direito à imagem e à privacidade dos cidadãos. Nesse sentido, um leitor perguntou se as “dash cams” podem ser utilizadas em Portugal e sob que condições. O Polígrafo questionou a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) e três juristas sobre a legalidade da utilização das “dash cams” para filmar pessoas na rua, mas a resposta não foi consensual.
Num esclarecimento enviado por e-mail, a CNPD não deixa margem para dúvidas: “A lei portuguesa proíbe que câmaras incidam sobre a via pública ou propriedade de terceiros (artigo 19.º da Lei 58/2019)”. Segundo esta entidade administrativa, “o que está em causa é o tratamento de dados pessoais, isto é, a captação de imagem das pessoas ou das matrículas de veículos”, bem como “a proteção da privacidade, pois há o direito a circular sem que fique registado onde, quando, com quem a pessoa estava”.
Assim sendo, clarifica a CNPD, “se as dash cams captarem imagens que permitam identificar pessoas, direta ou indiretamente, elas não são admissíveis”, sobretudo tendo em conta que, neste caso, “não é exequível nem aplicável a recolha do consentimento” de quem é filmado.
“O que está em causa é o tratamento de dados pessoais, isto é, a captação de imagem das pessoas ou das matrículas de veículos”, bem como “a proteção da privacidade, pois há o direito a circular sem que fique registado onde, quando, com quem a pessoa estava”.
Esta posição é partilhada pela especialista em privacidade e proteção de dados Elsa Veloso, que defende não haver enquadramento legal para a utilização de dash cams, dado que “as pessoas não podem filmar outras sem o seu consentimento”. A jurista considera que esta prática, além de ser “manifestamente desproporcional” e “desnecessária”, “comprime de forma enorme direitos liberdades e garantias dos titulares dos dados, comprime o direito à imagem, que está consagrado na lei”.
Elsa Veloso lembra que “o direito à imagem está consagrado quer na Constituição da República Portuguesa quer no Código Civil” e que as exceções previstas na lei contemplam apenas “jornalistas” e “órgãos de polícia, devidamente mandatados e autorizados pelo Tribunal”
Para mais, a jurista sublinha que “não tem enquadramento legal para que essas gravações existam” e que a ilegalidade não reside em ter uma destas câmaras, mas sim em utilizá-las. “Se alguém instalar uma câmara mas não a usar, não a vamos lá retirar. Se alguém usa as câmaras para filmar tudo o que se passa à sua volta, vê as imagens, edita as imagens, e as publica não está autorizado. Não tem consentimento. Está a violar o Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD), a Constituição da República Portuguesa e o Código Civil, nomeadamente o direito à imagem”, conclui.
A jurista considera que esta prática, além de ser “manifestamente desproporcional” e “desnecessária”, “comprime de forma enorme direitos liberdades e garantias dos titulares dos dados, comprime o direito à imagem, que está consagrado na lei”.
Visão diferente tem outro especialista em proteção de dados entrevistado pelo Polígrafo, Diogo Duarte. Segundo o jurista, “a utilização de dash cams não é ilegal em si mesma”, desde que quem as capte cumpra “as obrigações jurídicas previstas no RGPD”.
Para Diogo Duarte, “filmar pessoas na rua pode ter a sua utilidade nos casos em que haja um acidente envolvendo peões”. Por exemplo, quando “uma pessoa atravessa uma estrada longe da passadeira e provoca um acidente”. No entanto, vinca, “em todo o caso tem sempre que existir um fundamento de licitude”. Ora, uma vez que “o consentimento é altamente impraticável”, o “interesse legítimo” do condutor pode servir para justificar a legalidade da utilização destas imagens, mesmo que não haja autorização do visado para ser filmado. Ainda assim, recorda, este fundamento “só é passível de ser invocado se a pessoa realizar uma Avaliação do Interesse Legítimo, que é uma condição que o RGPD impõe para, no fundo, validar o interesse legítimo”.
Em conclusão, o Diogo Duarte explica que “a multiplicidade das obrigações previstas RGPD - que vão desde o direito de informação, ao armazenamento seguro das imagens, e respeito pelos prazos de conservação - implica que, operacionalmente, muitos dos casos se tornem ilegais pelo não cumprimento da legislação, mas não porque o processo seja ilícito à partida”.
Para Diogo Duarte, “filmar pessoas na rua pode ter a sua utilidade nos casos em que haja um acidente envolvendo peões”. Por exemplo, quando “uma pessoa atravessa uma estrada longe da passadeira e provoca um acidente”. No entanto, vinca, “em todo o caso tem sempre que existir um fundamento de licitude”.
No mesmo sentido, o advogado especialista em Tecnologia Daniel Reis defende que a licitude da utilização destas câmaras está dependente do motivo da gravação e de como as imagens vão ser utilizadas, dado que o RGPD “não se aplica a atividades puramente domésticas”. No entanto, se o motivo das gravações estiver ligada a um “sistema comercial”, a situação pode ser diferente. “Se eu filmar e não fizer nada com as imagens ou se gravar os vídeos e fizer montagens para mim, não tenho nenhum problema. Parte da dificuldade é que a mesma atividade pode ter uma natureza puramente doméstica ou pode estar enquadrada numa atividade profissional. Se for profissional é regulada pelo RGPD, se for pessoal não”, explana.
Daniel Reis defende ainda que a licitude da utilização das “dash cams” deve ser visto “caso a caso”, visto que “seguir uma pessoa para ver os movimentos dela e usar uma dash cam para gravar esses movimentos” é diferente de “andar por Lisboa, da Avenida da Liberdade até Telheiras, e apanhar nas gravações pessoas e carros”. No primeiro caso, o advogado considera que não há “um tema de privacidade”. ao contrário do que acontece no segundo caso.
Noutro plano, quanto ao destino das imagens, o advogado salvaguarda que, caso as informações recolhidas nas filmagens sejam partilhadas “num sítio público para dizer mal da pessoa gravada” o autor das gravações pode “correr um risco”.
O advogado especialista em Tecnologia Daniel Reis defende que a licitude da utilização destas câmaras está dependente do motivo da gravação e de como as imagens vão ser utilizadas, dado que o RGPD “não se aplica a atividades puramente domésticas”.
Diferenças à parte, há uma perspetiva comum a todos os especialistas consultados pelo Polígrafo: a de que não há legislação específica para regulamentar a utilização destes aparelhos.
