A obesidade é uma doença crónica multifatorial que tem um impacto considerável na saúde. Está associada a mais de 200 complicações médicas, entre as quais diabetes, doença cardiovasculares, incontinência urinária, artrite e depressão. Mas será também um fator de risco para o cancro?
A doença oncológica é uma das principais causas de morte em Portugal. Em 2022, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), 48,9% das mortes estavam associadas a doenças do aparelho circulatório e tumores malignos.
Os níveis de obesidade entre as populações dos países ocidentais têm aumentado nas últimas décadas. Em Portugal, 67,6% da população adulta tem excesso de peso e estima-se que 28,7% esteja em situação de obesidade. Também nas crianças, 31,9% tem excesso de peso e 13,5% são obesas, segundo dados do mais recente COSI Portugal – Childhood Obesity Surveillance Initiative (2022).
A endocrinologista Paula Freitas, presidente da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM), e a médica, nutricionista e investigadora Paula Ravasco explicam a relação entre o excesso de peso e o risco de desenvolver cancro.
Obesidade aumenta o risco de desenvolver cancro?
Paula Freitas e Paula Ravasco explicam que “há evidência científica robusta” que mostra um maior risco de desenvolver determinados tipos de cancro em populações com obesidade.
Várias organizações internacionais identificam a obesidade como um fator de risco para a doença oncológica. Um estudo desenvolvido por um grupo de trabalho da Agência Internacional para a Investigação sobre Cancro analisou mais de mil estudos e encontrou evidência robusta de que existe uma relação entre a gordura corporal e o risco de formação de vários tipos de tumor.
Segundo o Centro norte-americano para o Controlo e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla inglesa), “ter excesso de peso ou obesidade está associado a um maior risco de desenvolver 13 tipos de cancro”. Estes tipos de doença oncológica “correspondem a 40% de todos os cancros diagnosticados nos Estados Unidos todos os anos”.
O 13 tipos de cancro associados à obesidade são:
- Esófago
- Mama (pós-menopausa)
- Cólon e reto
- Útero/Endométrio
- Vesícula biliar
- Estômago (parte superior)
- Rins
- Fígado
- Ovários
- Pâncreas
- Tiroide
- Meningioma (tipo de cancro cerebral)
- Mieloma múltiplo
O cancro da mama (pós-menopausa) é o tipo de tumor mais associado a obesidade nas mulheres norte-americanas, enquanto o cancro colorretal é o mais comum entre homens obesos, revela ainda o CDC.
Também o Serviço Nacional de Saúde (SNS) explica que “a obesidade está associada ao cancro devido à multiplicação desordenada e descontrolada das células alteradas”, acrescentado que “uma alimentação saudável é fundamental para a manutenção de um bom estado de saúde e qualidade de vida”.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta que, nas próximas décadas, a obesidade poderá tornar-se o principal fator de risco para cancros preveníveis em alguns países da Europa, ultrapassando “o tabagismo como o principal fator de risco”.
Como a obesidade aumenta o risco de cancro?
As células de gordura – também conhecidas como tecido adiposo – podem libertar hormonas de crescimento, produzir hormonas sexuais ou aumentar o nível de inflamação no corpo. Estes fatores vão aumentar o risco de aparecimento de tumores em vários órgãos.
Paula Ravasco esclarece que “a gordura acumulada não é inerte”, mas sim “ativa” e, por isso, os tecidos adiposos podem “influenciar a produção de citocinas pró-inflamatórias, que se associam a uma inflamação de baixo grau” e “aumentam o risco de desenvolver vários tipos de cancro”.
No mesmo sentido, Paula Freitas refere que a inflamação está na base de tudo: “Sempre que há obesidade, há adipócitos disfuncionais que fazem com que haja maior produção de citocinas e adipocinas”, acrescenta a endocrinologista.
Sabe-se também que o tecido adiposo produz quantidades excessivas de estrogénio, uma hormona sexual conhecida por aumentar o risco de doença oncológica. Tumores como o da mama, do endométrio, dos ovários, entre outros, são hormono-dependentes, ou seja, são motivados pelo excesso de hormonas (como estrogénio).
Problemas na produção de insulina são outro mecanismo que poderá aumentar o risco de desenvolver cancro em pessoas com obesidade. “Sempre que há excesso de peso há insulino-resistência”, afirma Paula Freitas, o que leva o “pâncreas a produzir mais insulina para ultrapassar” essa situação.
O hiperinsulinismo (produção excessiva de insulina) “estimula a proliferação de células”, o que potencia o crescimento do tumor, acrescenta a endocrinologista. Elevados níveis de insulina podem aumentar o risco de desenvolver cancro colorretal, da tiroide, da mama, dos ovários, do endométrio ou da próstata, avança o Instituto norte-americano para o Cancro (NCI, na sigla inglesa).
Paula Ravasco sublinha que, além do impacto metabólico, o excesso de peso tem também um impacto mecânico em alguns órgãos. “Se uma pessoa tem muito tecido adiposo na região abdominal, esta gordura vai envolver os órgãos – incluindo o pâncreas – o que interfere com a capacidade normal de produzir determinadas hormonas”, explica a nutricionista.
O NCI identifica ainda que a obesidade poderá estar associada a doença de refluxo gastroesofágico – um fator de risco para o adenocarcinoma esofágico -, poderá comprometer a imunidade tumoral e potenciar alterações na estrutura do tecido que envolve os tumores em desenvolvimento.
Obesidade interfere nos tratamentos oncológicos?
O excesso de peso poderá também “interferir na toxicidade de alguns tratamentos oncológicos”, responde Paula Ravasco. Estudos mostram que a quimioterapia poderá ter um “aumento de toxicidade” quando o paciente é obeso.
“Nos doentes com excesso de peso ou obesidade a quimioterapia torna-se mais tóxica, [os pacientes] sofrem mais sintomas, mas tem menos efeitos no controlo da doença, quando comparado com pacientes que não têm excesso de peso e fizeram o mesmo tratamento”, afirma a nutricionista.
O estado pró-inflamatório, associado ao excesso de peso, poderá ainda “interferir na resposta do corpo quando é submetido à quimioterapia”, acrescenta a Paula Ravasco.
Depois do diagnóstico, é aconselhado perder peso?
Quando já existe o tumor, o mais importante é estabilizar a doença oncológica. “O que está padronizado atualmente é que, quando há o diagnóstico de cancro ou quando o paciente é referenciado para tratamentos, não é uma boa altura para perder peso”, afirma Paula Ravasco.
Nesta fase, é preciso garantir que o organismo tem formas para combater a doença que se está a desenvolver. Os próprios tratamentos oncológicos podem levar a uma “perda de peso ou a outros problemas alimentares (como dificuldade de ingestão), o que já contribuirá para que [o paciente] perca peso”, acrescenta a nutricionista.
Também Paula Freitas reconhece que, numa fase inicial do processo, a perda de peso pode não ser a prioridade. “Em cada momento existem prioridades. Numa primeira instância, a prioridade poderá ser estabilizar o cancro e, depois, começa-se o tratamento para a obesidade”, afirma a endocrinologista, reconhecendo que, “quando as pessoas têm um peso saudável, muitas vezes, têm melhores desfechos do tratamento”.
“Depende do cancro, do estadiamento e também dos tratamentos que existem para esse tipo de cancro. Se o paciente tem um prognóstico com um desfecho desfavorável, a perda de peso não se coloca. Se estivermos a falar de um cancro com uma alta sobrevida, podemos iniciar o tratamento da obesidade depois [do cancro] estar estabilizado”, afirma.
O NCI informa que o excesso de peso “pode agravar vários aspetos da sobrevivência ao cancro”, nomeadamente a “qualidade de vida, a recorrência do cancro, a progressão do cancro, o prognóstico (sobrevivência) e o risco de certos cancros primários secundários”.
Para prevenir o aparecimento de cancro, a OMS recomenda “manter um peso saudável”, adotar “uma dieta saudável e com bastantes frutos e legumes” e “fazer exercício regularmente”. Além disso, deve-se adotar hábitos de vida saudáveis, tais como: “evitar o consumo de tabaco”, “limitar o consumo de álcool”, “praticar sexo seguro” e “reduzir a exposição a radiação ultravioleta”.
Este artigo foi desenvolvido no âmbito do “Vital”, um projeto editorial do Viral Check e do Polígrafo que conta com o apoio da Fundação Champalimaud.
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