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“Letra de médico” tem os meses contados. Código obriga a que prescrições sejam legíveis

Este artigo tem mais de um ano
É provável que o leitor já não veja uma receita em papel há anos. É mais provável ainda que já nem se recorde da letra do seu médico de família, que tantas vezes lhe provocou dores de cabeça para que a conseguisse entender. Se essas dores o fizeram voltar ao consultório, lembrar-se-á de ter questionado: "Como é que o farmacêutico consegue ler 'Paracetamol'?" E a dosagem? O que fazer quando não a compreende? Conheça os seus direitos e saiba o que fazer no caso de ainda lhe ser prescrita uma velha e boa receita em papel.

Em julho do ano passado, o Governo decidiu prolongar por mais 12 meses as receitas médicas em papel, que continuam a ser uma fonte de queixas e problemas para os utentes. Nesse mês, quando o prazo para a prescrição deste tipo de receitas terminou, o Ministério da Saúde decidiu que, “considerando a atual situação pandémica, a portaria que possibilita a prescrição excecional de medicamentos por via manual irá ser prorrogada até dia 30 de junho de 2022“.

Mas não foi apenas a pandemia que esteve em causa. Muitos médicos, já em idade avançada, demonstraram incapacidades na adaptação aos meios eletrónicos, e assim puderam prolongar a sua atividade por mais uns meses e assegurar uma boa prestação de serviço. Ou será que não? Afinal, já devíamos estar livres das receitas em papel há mais tempo? O que dizem os números? E a lei? A “letra de médico” funcionou durante muitos anos como um estatuto, mas pode estar prestes a terminar.

O Polígrafo consultou o Código Deontológico da Ordem dos Médicos, publicado em Diário da República, e verifica-se que no seu artigo 99.º estão dispostos os requisitos mínimos das prescrições, ou seja, aqueles que devem ser efetivamente cumpridos pelos médicos.

Dessa forma, é previsto que “as prescrições de terapêuticas e de exames de diagnóstico devem obedecer, salvo disposição legal em contrário, aos seguintes requisitos mínimos: a) Devem ser claras, redigidas de forma legível, conterem informação que permita o contacto imediato do médico em caso de dúvida e devem apresentar de forma inequívoca o nome e o número da cédula profissional do médico prescritor; b) Ser redigidas em língua portuguesa, manuscritas a tinta com letra bem legível ou impressas de forma bem percetível, sem abreviaturas não consagradas e devidamente datadas e validadas com assinatura, quando for o caso”.

“[Devem] ser redigidas em língua portuguesa, manuscritas a tinta com letra bem legível ou impressas de forma bem percetível, sem abreviaturas não consagradas e devidamente datadas e validadas com assinatura, quando for o caso”.

Quanto às doses, que se configuram tantas vezes como um problema para os utentes, que não as compreendem, o Código esclarece que estas sevem ser “expressas de harmonia com o sistema decimal, devendo as doses menos habituais serem convenientemente assinaladas, designadamente através da simultânea menção por extenso e por algarismos, por sublinhado ou por qualquer outra forma julgada adequada”.

As receitas, que “devem ser acompanhadas de instruções claras sobre a dose, o horário de administração e a finalidade dos fármacos prescritos”, vêem as suas obrigatoriedades alargadas aos relatórios médicos, nomeadamente os referentes a exames especializados, que “devem ser redigidos com clareza e respeitar o estabelecido nas alíneas a) e b)” acima mencionadas.

Ainda que se configure como uma obrigatoriedade, não está prevista no mesmo Código nenhuma sanção para os profissionais que não cumpram estes requisitos. E o que é certo é que a desmaterialização eletrónica da receita veio facilitar aos utentes e aos farmacêuticos uma comunicação muito mais fluída e livre de enganos.

Questionada pelo Polígrafo sobre o número de queixas recebidas neste sentido, a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) confessa que, “apesar de receber as reclamações que são apresentadas pelos utentes nos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde, não possui um indicador específico que permita identificar as reclamações recebidas por referência a problemas resultantes da ‘letra dos profissionais de saúde'”.

Ainda assim, ao Polígrafo, a Ordem dos Farmacêuticos arrisca mesmo dizer que, por parte dos profissionais nela inscritos, não é atualmente feita “nenhuma” queixa , já que “o problema foi mitigado com a desmaterialização eletrónica da receita (ou “receita sem papel”), em vigor desde 2015″.

Atualmente, o facto é que o “número de receitas manuais que os utentes apresentam nas farmácias é residual“. Confirma-se. Desde o seu arranque, em 2015, e de acordo com os dados dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, foram prescritas milhões de receitas por ano. Na estreia, últimos quatro meses de 2015, foram prescritas 122.178 receitas sem papel e 63.268.990 receitas com papel. Estes números viraram em 2016, quando o número de receitas sem papel atingiu as 119.608.713, sendo que as receitas em papel cifraram-se nos 121.200.955.

Salto para 2017, primeiro ano em que o número de receitas sem papel (215.826.893) ultrapassou o número de receitas com papel (11.979.395). A partir de 2018 o número das receitas com papel caiu consideravelmente e em 2019 eram já 97,28% as receitas sem papel, uma percentagem que aumentou para 97,36% em 2020, 98,30% em 2021 e 98,55% nos primeiros dois meses de 2022.

A Ordem dos Farmacêuticos arrisca mesmo dizer que, por parte dos profissionais nela inscritos, não é atualmente feita “nenhuma” queixa , já que “o problema foi mitigado com a desmaterialização eletrónica da receita (ou “receita sem papel”), em vigor desde 2015”.

Quanto a queixas de utentes, casos de venda de outros medicamentos que não os medicados ou ainda erros na dosagem, a Ordem dos Farmacêuticos assegura que “desde a introdução da receita eletrónica que o problema tem vindo a ser ultrapassado, não existindo atualmente qualquer queixa ou processo em curso relacionado com a legibilidade da receita médica”.

Mas o que é que acontece quando um farmacêutico não compreende o que foi escrito pelo médico?

“É dever do farmacêutico esclarecer com o utente e/ou médico prescritor todas as dúvidas relacionadas com a receita médica”, explica fonte oficial da Ordem. A receita médica, continua, “apresenta sempre o contacto do médico prescritor ou do centro prescritor, pelo que é muito frequente, e até recomendável, que os farmacêuticos contactem os clínicos e esclareçam todas as dúvidas relacionadas com a terapêutica prescrita ao utente”.

Esta é “uma prática frequente nas farmácias”, não apenas motivada pela “dificuldade na interpretação da receita, mas sobretudo para esclarecer dúvidas, propor pequenos ajustes nas dosagens, alternativas terapêuticas ou alertar para eventuais contraindicações”.

A mesma fonte acrescenta ainda que “todos os referenciais e manuais de boas práticas recomendam o contacto com o médico para esclarecimento deste tipo de dúvidas” e que “as relações institucionais entre as duas Ordens e/ou com outras organizações setoriais (ANF, APMCGF, p.ex.) têm ajudado a sensibilizar os respetivos profissionais para o problema”.

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