A imunidade de grupo tem sido apontada, desde o início da pandemia, como um objetivo. Atingir a imunidade de grupo significa que uma grande percentagem da população está imunizada contra a doença – seja através da vacina ou por imunidade natural – e, por isso, deixa de haver disseminação da doença. A vacinação sempre foi um fator nas contas dos epidemiologistas.
A 22 de maio de 2021, o vice-almirante Gouveia e Melo, coordenador da task force para a vacinação, colocou como objetivo ter 70% da população com pelo menos uma dose da vacina contra a Covid-19 até ao dia 8 de agosto. Afirmou, no mesmo dia, que esta data poderá não corresponder à meta da imunidade de grupo. “Neste momento, não se sabe neste vírus se a pessoa que está imunizada pode ou não ser transportadora do vírus. Se não for transportadora do vírus, significa que atingimos a imunidade de grupo e o vírus começa a morrer na comunidade”, disse Gouveia e Melo. Entretanto, o vice-almirante admitiu a possibilidade de a data atrasar devido à escassez de vacinas.
As contas não são assim tão simples e o aparecimento das novas variantes – que são mais contagiosas – complica os cálculos. É também necessário distinguir “dois conceitos diferentes que, às vezes, têm sido utilizados de forma indistinta: uma coisa é cobertura vacinal, outra coisa é imunidade de grupo, não são exatamente a mesma coisa”, alerta Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP).
“Objetivamente nós não sabemos quando ou com que cobertura vacinal se atinge a imunidade de grupo. Nem na altura sabíamos, nem agora. Começamos a constatar que talvez não seja, de facto, eventualmente possível atingi-la”.
A imunidade de grupo acontece quando existe uma percentagem suficientemente grande de população que está imunizada contra a doença e que, por isso, não a transmite a quem não têm anticorpos. “Os que estão imunes acabam por proteger os restantes, formando uma espécie de barreira entre os casos e as pessoas suscetíveis”, acrescenta o médico de saúde pública. Por outro lado, a cobertura vacinal é a percentagem de população que recebeu a vacina contra a Covid-19. “Objetivamente nós não sabemos quando ou com que cobertura vacinal se atinge a imunidade de grupo. Nem na altura sabíamos, nem agora. Começamos a constatar que talvez não seja, de facto, eventualmente possível atingi-la”, afirma Mexia.
De onde surgiu a meta de 70% vacinados para atingir a imunidade de grupo?
A imunidade de grupo é calculada tendo por base o nível de transmissão de um vírus perante uma população sem qualquer defesa imunológica. Neste caso, referimo-nos à taxa de transmissão do novo coronavírus no momento em que chegou a Portugal. Este valor tem o nome de R0 – número básico de reprodução.
Manuel Carmo Gomes, professor de epidemiologia na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, recorda que tanto a faculdade onde leciona como o Instituto Nacional de Saúde Pública Dr. Ricardo Jorge (INSA) calcularam o R0 do SARS-CoV-2 no início da pandemia e chegaram à conclusão que rondava os 2,1 e os 2,5. Com este valor, a imunidade de grupo poderia ser alcançada perto dos 70% de pessoas imunizadas. Mas essa percentagem está agora desatualizada. “Com o aparecimento de variantes – primeiro a britânica [atualmente identificada como Alfa] que era 40 a 60% mais transmissível que a original e agora a Delta que é entre 50 e 70% mais transmissível que a britânica – se nós fizermos as contas, o R0 já não seria entre 2,1 e 2,5. Já estaria na zona dos 5,5, ou 6, ou talvez mais. Os britânicos estão a estimar o R0 já perto de 7″, afirma o professor.
Os cálculos podem ser refeitos com base nos novos dados, mas há também outras questões que vêm complicar as contas dos epidemiologistas. Uma delas é a eficácia das vacinas em produzir anticorpos para as novas formas do vírus. “Se temos uma variante que se transmite, em que a vacina não é tão eficiente, isso pode colocar em causa o controlo por esta via. Essa é a nossa preocupação”, afirma Ricardo Mexia lembrando o esforço das farmacêuticas em analisar a eficácia das vacinas já aprovadas para as novas variantes que surgem.
“Se temos uma variante que se transmite, em que a vacina não é tão eficiente, isso pode colocar em causa o controlo por esta via. Essa é a nossa preocupação”.
Mais uma vez distinguimos aqui a imunidade de grupo da cobertura vacinal: uma vez que a eficácia das vacinas não é total, será sempre necessário vacinar mais pessoas do que a percentagem necessária para atingir a imunidade de grupo. “Se as vacinas não são 100% eficazes e se, por exemplo, precisarmos de 85% das pessoas protegidas, nós temos de vacinar mais do que 85%. Isso vai-nos atirar para percentagens de vacinação necessárias para imunidade de grupo muito acima dos 70 ou 80%. Eu penso que, dificilmente, lá chegaremos com menos de 90% das pessoas vacinadas”, afirma Carmo Gomes.
“Se nós chegarmos à conclusão de que os dados e a ciência confirmam isso, nós vamos ter, obviamente, de descer a vacinação para idades pediátricas, abaixo dos 18 anos”, prossegue o professor. “Eu não estou a dizer que o vamos fazer, estou a dizer que é um assunto que está a ser discutido porque já percebemos que é provável que, para alcançar a imunidade de grupo, nós tenhamos de descer a essas idades”.
“Se nós chegarmos à conclusão de que os dados e a ciência confirmam isso, nós vamos ter, obviamente, de descer a vacinação para idades pediátricas, abaixo dos 18 anos”.
Incluir as crianças no plano de vacinação é uma discussão complexa, uma vez que envolve questões éticas. Uma delas prende-se com o risco muito reduzido das crianças desenvolverem doença grave. Desta forma, a administração da vacina nos mais novos não irá atuar como mecanismo para os defender da doença, mas será sim um ato que visa proteger a sociedade como um todo e evitar a propagação da Covid-19 na comunidade.
“Nós, como sociedade, teremos de discutir se estamos interessados em apontar como objetivo a imunidade de grupo e ter isso como estratégia de vacinação ou se, pelo contrário, queremos lidar com esta doença como lidamos, por exemplo, com uma gripe. Em que nós temos o vírus a circular todos os anos, protegemos as pessoas que são de alto risco para o vírus, focamos uma estratégia de vacinação nos mais idosos – eventualmente com revacinação – e deixar o vírus circular nas crianças onde sabemos que a probabilidade de doença grave é baixinha. Isto é uma discussão que a sociedade vai ter de fazer”, alerta Carmo Gomes.
Ao nível da propagação da doença, existem ainda dúvidas – como referiu o vice-almirante Gouveia e Melo – sobre a capacidade de transmissão das pessoas que foram inoculadas. Essas dúvidas influenciam também os cálculos dos epidemiologistas. “Nós ainda não sabemos qual é o grau de proteção que as vacinas dão contra infeções sem sintomas e capacidade de transmissão”, afirma Carmo Gomes. “Em relação à percentagem [de pessoas] que possam ser infetadas, temos uma ideia que anda entre os 10 e 20%. Mas nós não sabemos quais destas conseguem transmitir”.
“Nós ainda não sabemos qual é o grau de proteção que as vacinas dão contra infeções sem sintomas e capacidade de transmissão”.
Segundo a evidência científica, as pessoas infetadas que tinham sido vacinadas anteriormente apresentam uma menor carga viral no trato respiratório superior do que as pessoas infetadas que não foram inoculadas e permaneceram assintomáticas.
Se não atingirmos a imunidade de grupo?
Com a taxa de transmissão a subir devido ao aparecimento de novas variantes, a pergunta coloca-se: e se não foi possível atingir a imunidade de grupo? Ricardo Mexia admite que esta possibilidade está a ser posta em causa, mas sublinha a importância da vacinação para controlar a transmissão e a severidade da doença. “Não é possível ignorar que a redução quer da transmissão, quer da severidade da doença por via da vacinação é notória. Isso é um dado absolutamente fundamental”.
“Não é possível ignorar que a redução quer da transmissão, quer da severidade da doença por via da vacinação é notória. Isso é um dado absolutamente fundamental”.
O plano de vacinação em Portugal foi desenhado para proteger os grupos de risco, reduzir a mortalidade e evitar os internamentos. São também estes os objetivos das vacinas que foram aprovadas pelos reguladores internacionais. Desta forma, os primeiros a serem vacinados foram os profissionais de saúde e a população com mais de 80 anos. Progressivamente, a vacinação tem sido alargada a outras idades, dando preferência pessoas com comorbidades que possam tornar mais grave a manifestação da doença. A partir de 4 de julho, a vacinação será alargada a todos os que têm mais de 18 anos.
“O que nós pretendemos é vacinar o maior número de pessoas, porque essas pessoas têm muito menor probabilidade de morrer e têm uma redução da probabilidade de ter doença grave que implique internamento. Esse é o fator chave”, reforça o médico de saúde pública.
A confirmar-se que não é possível atingir a tão desejada imunidade de grupo, a população terá de aprender a viver com o novo coronavírus – como acontece com tantos outros vírus que circulam entre a comunidade. “Há um momento a partir do qual nós temos de conviver com a doença. Esse momento faz sentido quando já tivermos os diversos grupos populacionais cobertos com a vacina”, acrescenta Mexia. As questões sobre um reforço da vacina ou uma terceira dose serão colocadas depois.
Mesmo que a imunidade de grupo fique fora das possibilidades, a vacinação mantém um papel crucial no controlo da doença. “Mesmo que não consigamos alcançar a imunidade de grupo, nós criamos muitos obstáculos à propagação do vírus na população. Se nós tivermos todos os maiores de 18 anos vacinados a propagação da doença é muito mais lenta, deixamos de ter estas enormes epidemias, estas ondas”, afirma Carmo Gomes.