Cristina Rodrigues já quis impedir a utilização de dinheiros públicos para financiamento direto ou indireto de atividades tauromáquicas, mas o Chega disse-lhe que não, na Assembleia da República. Quando a deputada não inscrita (ex-PAN) avançou com a tentativa de harmonizar a taxa de IVA aplicável aos serviços médico-veterinários, André Ventura ajudou-a, mas não foi suficiente. Na altura de criar o crime de ocultação de riqueza com vista à prevenção da corrupção e aumento da integridade pública, Ventura ausentou-se e, para garantir o direito dos trabalhadores à desconexão profissional, o líder do Chega absteve-se.
Diferentes fases de um jogo que parece até ter começado antes de a deputada se desvincular do PAN e que culminou na sua contratação como assessora parlamentar do Chega, anunciada ontem, 23 de março, pela própria, no Twitter. O desenlace causou surpresa generalizada, mas houve alguns sinais (e dados concretos, já lá vamos) de aproximação ao longo da XIV Legislatura.
O Polígrafo conta a história desde o início, ou seja, a partir das eleições legislativas de 2019, quando Rodrigues foi eleita deputada à Assembleia da República pelo PAN, depois de um resultado feliz para o partido animalista. Bastaram, ainda assim, alguns meses para a também advogada passar à condição de independente (ou não inscrita), acusando a direção do PAN de a silenciar e condicionar a sua “capacidade de trabalho”. E nem a mudança de líder – André Silva foi sucedido por Inês Sousa Real – fez cessar as hostilidades.
Twitter, máquina de propaganda
Em junho de 2020, Rodrigues torna-se deputada não inscrita. O seu trabalho é ainda pouco reconhecido e o seu nome permanece quase anónimo na esfera pública. Meio ano depois é criada uma conta no Twitter, que contou durante algum tempo com mais de 10 mil seguidores, e o objetivo de Rodrigues não poderia ser mais claro: Agilizar a comunicação entre eleitores e eleita. Ser reconhecida pelas propostas que defendia no Parlamento. Ser tida como acessível, próxima, à distância de um clique. Assim foi durante meses.
Com propostas que agradavam à esquerda e à direita, a ex-PAN juntou no seu círculo e comunidade bloquistas, comunistas, eleitores do PAN, socialistas, liberais e até militantes do Chega. A cada proposta, um novo aplauso. A cada tweet, centenas de aprovações e agradecimentos. Até quando deixou o cargo na Assembleia da República, lembrou o momento em que falou com Ferro Rodrigues, no dia em que se desvinculou do PAN, fazendo questão de publicar na sua conta o que lhe teria sido dito: “Este disse-me que agora cabia-me a mim demonstrar que era uma decisão positiva para a democracia. Espero que tenha sido. Foi uma honra servir-vos. Não serei candidata nestas eleições. Obrigada por tudo.” Com estas e outras partilhas, Rodrigues conquistou o espaço e o carinho que outros deputados não inscritos não tiveram.
Funções desempenhadas no IRA são as mesmas que terá no Chega
Às provocações, Cristina Rodrigues reagiu sempre com um “sorriso”. Até àquelas que sugeriam que se juntaria ao Chega, como uma “ariana” e “vegannazi“. Mas a verdade é que o passado da ex-deputada não é isento de controvérsia: Tal como agora fará, Rodrigues prestou, enquanto advogada, apoio jurídico ao grupo Intervenção e Resgate Animal (IRA). Em 2018, a Polícia Judiciária (PJ) investigou o grupo por suspeitas de crimes violentos e a reportagem transmitida à data pela TVI informava que os resgates de animais maltratados envolviam ativistas encapuzados e violência. A ligação a grupos de extrema-direita também foi posta a descoberto, com membros do IRA alegadamente envolvidos com a “Juve Leo” ou organizações de segurança privada.
Coberta pelo PAN, que declarou que Rodrigues “prestou esclarecimentos jurídicos a esta associação em nome individual, desconhecendo qualquer prática à margem da lei, tal como aliás o fez com tantas outras pessoas, associações e grupos informais”, como que passou entre os pingos da chuva e conseguiu anular essa ligação durante o tempo em que exerceu funções no Parlamento.
Quatro anos depois, o mesmo cargo, de prestação de serviços jurídicos, é agora assumido no partido Chega, liderado por Ventura, com quem Rodrigues não parece ter uma relação de desconfiança. O Polígrafo consultou os números, os votos na generalidade e as votações em concordância: Afinal, os dois caminhos vinham a cruzar-se há muito tempo.
Rodrigues foi a que mais votou a favor de propostas do Chega. E a que menos votou contra
Divulgado em 2021 e com dados que vão desde 25 de outubro de 2019 até à votação de 27 de outubro de 2021, o estudo “Proximidades e distâncias: análise da atividade parlamentar, 2015-2021“, do investigador Frederico Munõz, revela que foi Rodrigues quem mais apoiou o Chega nas suas iniciativas. Das 24 propostas contabilizadas desde que Rodrigues se tornou independente, a ex-PAN votou favoravelmente em 12 delas, seguida pelo Iniciativa Liberal e pelo CDS-PP, que aprovaram ambos 11, e pelo PAN, que aprovou uma dezena no total. O PSD só concordou com três iniciativas, o Bloco de Esquerda com duas e Joacine Katar Moreira, o PS e o PEV com uma. Resta o PCP com uma taxa de aprovação nula.
Rodrigues absteve-se ainda em 11 propostas e votou contra apenas uma. Assim, a taxa de reprovação da ex-deputada em relação ao partido de Ventura é a mais baixa de todos os grupos parlamentares (e deputados não iscritos), já que todos eles reprovaram pelo menos seis propostas do Chega. Importa notar, porém, que Rodrigues só se tornou deputada não inscrita quando Ventura já tinha apresentado seis propostas na Assembleia da República.
O Polígrafo consultou as votações do mês de novembro, em falta no estudo, e verificou que a ex-deputada do PAN votou favoravelmente três propostas do Chega nesse mês (ficando até sozinha ao lado de Ventura), tendo-se abstido apenas numa. Em suma, Rodrigues aprovou 15 iniciativas do partido de extrema-direita desde 25 de outubro de 2019. Tendo em conta que não esteve presente em todas, e somando as últimas quatro, a taxa de aprovação é de 53,6%.
Chega tinha 65,4% de taxa de aprovação em relação a Rodrigues até outubro de 2021
Se, por um lado, a deputada não inscrita aprovou várias das propostas do partido de Ventura, o então deputado único do Chega não se deixou ficar e viabilizou, até 27 de outubro de 2021, 17 de 26 propostas de Rodrigues (em novembro de 2021 votou favoravelmente mais duas vezes). Ventura fica apenas atrás do PAN, que aprovou 27 (esteve presente em 28), de Katar Moreira, que votou a favor de 25, do Bloco de Esquerda (23) e do Iniciativa Liberal (17). De entre os partidos que votaram contra propostas de Rodrigues, o Chega foi o que menos o fez, tendo rejeitado apenas três.
Das 3.746 votações decorridas até 27 de outubro de 2021, Rodrigues e o Chega alinharam-se 1.773 vezes. Ou seja, em 47,33% das propostas, Ventura e Rodrigues votaram de forma idêntica. Mas este número sem contexto pode ser enganador. A verdade é que também o PAN (1.747 vezes), o Bloco de Esquerda (1.673 vezes), o PEV (1.658 vezes) e o PCP (1.656) estiveram perto desse valor. O partido que mais se afastou foi o PS, que só em 1.128 vezes esteve ao lado do Chega nas votações. Ainda assim, é de notar que “a consideração apenas dos votos ‘idênticos’ desconsidera completamente a diferença entre votar contra e abstenção”.
Como o Chega namorou o eleitorado do PAN
Já quis aumentar as sanções nos maus-tratos a animais, mas teve um candidato que terá alegadamente morto um cão à paulada. Ventura responde pelo partido, mas é sozinho que vai agarrando franjas do eleitorado. Durante as eleições legislativas, foi com um gato, “António”, que conseguiu acalmar a hostilidade em relação a si próprio, mas a ligação dos animais domésticos ao líder do Chega começa muito antes.
Quando, em 2019, apresentou ao país a coelha que tinha comprado há sete anos, a reação geral foi de gozo, espanto, alguma admiração e, sobretudo, humanização de um candidato que propunha, à data, o fim da educação e saúde públicas. Havia quase que uma contradição entre aquilo que o líder do recém-formado Chega defendia publicamente e a forma como dava colo à coelha “Acácia”, que aliás tinha sido comprada como sendo um coelho.
“O animal de estimação evidencia normalmente esse lado mais pessoal do ator político. Tendencialmente, somos mais tolerantes com os erros e menos exigentes com a conduta dos amigos. Há, nessa medida, vantagens em associar um político a essa figura mais próxima”, afirmou Sofia Aureliano, especialista e coordenadora da Pós-Graduação em Comunicação e Marketing Político do ISCSP, ao Polígrafo, em janeiro deste ano.
Cerca de um ano depois, já no início de 2021, soube-se que Ventura tinha adoptado um gato vadio, cuja residência seria a sede do partido Chega, em Lisboa. “António” de batismo, o “chegato” (assim lhe chamou o canal de apoio ao partido) começou a aparecer sucessivamente com o líder em fotografias caseiras, todas elas registadas por Ventura e divulgadas na sua conta pessoal no Twitter (pode ver aqui, aqui, e aqui).
Este processo, nem demasiado óbvio nem deixado ao acaso, valeu a Ventura várias partilhas, “likes” e comentários. Mas será que podemos assumir que foram divulgações propositadas? “Se não são, deviam ser”, afirmou ao Polígrafo Sofia Aureliano. “Os políticos, assim como os titulares de outros cargos, têm de compreender que o exercício de funções e a visibilidade pública associada faz com que não possam ter (ou não devam ter) um registo pessoal, mesmo em plataformas desse género. Têm persona pública que têm a responsabilidade de preservar, com os constrangimentos e limitações que isso exige”.
“Efeito-Twitter” já se fez sentir
No Twitter, onde divulgou, “com toda a transparência”, que iria “trabalhar para o Chega”, Rodrigues foi perdendo seguidores a alta velocidade. Primeiro dezenas e, pela hora de fecho deste artigo, centenas. São menos de 10 mil os que ficam, sendo que haverá certamente um balanço que será feito gradualmente pelo eleitorado do Chega. Rodrigues garante que as suas funções são meramente “jurídicas” e que lhe foi “assegurada a possibilidade de continuar a trabalhar certos temas” que considera “prioritários”.
“Apenas vos quero dizer que continuo aqui, sempre disponível para ajudar no que me for possível”, fechou Rodrigues, numa mensagem que alcançou os muitos que já não acompanham o seu perfil.