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O tiroteio imaginário, o fantasma do aborto e a “açorda” familiar: assim mentem os líderes políticos

Na véspera de se conhecerem os resultados das escolhas dos portugueses para o próximo Governo, o Polígrafo faz o balanço das mentiras mais inimagináveis e de algumas gafes da campanha. Dos "fantasmas" aos tiroteios imaginários, passando por casos de família ou pelo gato "António" vítima de ataque dos "apanhados do clima", estas são algumas das mentiras que fazem parte do “menu” político destas legislativas.

Da casa a 400 euros na Avenida Roma para a TV: nem a avozinha escapou

Da comissão parlamentar de inquérito ao BES aos debates sobre temas económicos, são frequentes os elogios a Mortágua pela sua preparação, rigor e competência. Mas quando a política profissional se cruza com assuntos privados e familiares, a coordenadora bloquista parece ter tendência a escorregar. Foi assim nesta campanha, primeiro com o tema da “famosa” avó que se sentiu “sobressaltada”, e depois com a história do pai que foi “condenado pela PIDE a prisão perpétua“.

Num debate frente a Luís Montenegro, a sucessora de Catarina Martins quis contar a história de vários idosos que foram expulsos através de uma lei “aprovada pelo PSD” em que bastava um senhorio, uma carta e a vontade de aumentar as rendas anteriores a 1990. A narrativa poderia funcionar, mas a meio do discurso Mortágua acabaria por introduzir um elemento que lhe sairia caro: a avó.

“Vi o sobressalto da minha avó ao receber cartas do senhorio, porque não sabia o que é que lhe ia acontecer, e essa foi uma responsabilidade do PSD, que esvaziou as cidades”, disse.

Ninguém pode comprovar ou negar que a avó de Mariana Mortágua se tenha sentido efetivamente “sobressaltada”, mas a bloquista foi pouco esclarecedora: afinal, a avó da coordenadora do BE não teria em 2012 menos de 65 anos e, segundo a lei, essa atualização das rendas visava apenas os menores de 65 anos.

O alvoroço tomou conta das redes sociais e a “história da avozinha” foi tema nos espaços de comentário nas televisões e rádios. Mais recentemente, a revista Sábado acabou com algumas dúvidas: é que a avó da bloquista tinha, à data dos factos, 78 anos, muito acima do limite para poder ser despejada. Esta “famosa avó” paga, ainda hoje, uma renda antiga que ronda os 400 euros na Avenida de Roma, em Lisboa.

E quanto ao pai? Uma “açorda” como aquela que foi cozinhar no programa “Dois às 10”

A filha de Camilo Mortágua quis dizer que, quando as coisas “estão mais difíceis”, “é bom lembrar” quem fez política na clandestinidade, dando o pai como exemplo. “O meu pai fez política na clandestinidade, foi condenado a prisão perpétua pela PIDE, viveu fora deste país, emigrou quando tinha 17 anos e só pôde voltar a Portugal no 25 de Abril e sentou-se na Avenida da Liberdade”, disse a líder do Bloco de Esquerda.

Mas como pôde Camilo ser “condenado a prisão perpétua” se esta foi abolida muito antes do período do “Estado Novo”? A proposta de uma nova reforma penal – que visava o fim de todas as penas de carácter vitalício – partiu do ministro Lopo Vaz de Sampaio e Melo e traduziu-se na Lei de 14 de Junho de 1884, aprovada por decreto nesse mesmo dia.

Camilo Mortágua poderá ter sido sujeito a “medidas de segurança” que durante o “Estado Novo” eram “aplicadas aos opositores políticos” e prorrogadas indefinidamente, mas não, nunca foi condenado à prisão perpétua.

A vítima de tiroteios imaginários e o gato “António” atingido pelos “apanhados do clima”

O líder do Chega proclama que vai “limpar Portugal”, mas por vezes parece ver manchas de sujidade em paredes imaculadas, como quem só vê pregos à frente quando pega num martelo. De tiroteios imaginários a ataques dos “apanhados do clima” ao gato-mascote do partido, a campanha eleitoral foi fértil em efabulações do candidato que só quer “uma oportunidade” para “mudar Portugal”.

Em plena campanha, André Ventura alegou que a caravana do Chega foi alvo de um tiroteio em Famalicão. “Vamos permitir que os mesmos de sempre atuem com total impunidade?”, escreveu André Ventura no X. Problema? Não houve armas envolvidas e tudo não passou de um tiroteio… imaginário.

Sem que fosse necessário esperar muito, a acusação do líder do Chega foi desmentida pelo Comando Distrital da PSP de Braga.

Em comunicado, a autoridade disse que, no vídeo publicado pelo partido como suposta prova, “é audível um som semelhante ao disparo de uma arma de fogo, que se repete por quatro vezes” durante a passagem da caravana, que é seguido por várias viaturas ligeiras na avenida Rebelo Mesquita, em Vila Nova de Famalicão, mas que o ruído eram “‘rateres’ produzidos por um motociclo que seguia na caravana”.

André Ventura não se conformou e atirou os produtos de limpeza às autoridades. Como? “Depois de ter sido ponderado o contexto em que aquelas imagens são feitas”, não ficou “claro” como algodão que fossem mesmo rateres, por isso o líder do Chega decidiu que iria apresentar queixa na PJ para investigação do que aconteceu.

E, falando em “limpar Portugal”, o que está a precisar realmente de uma limpeza é a sede do Chega e, imagine-se, o gato “António”. Esta sexta-feira, dia 8 de março, Ventura jogou com um novo trunfo: o gato “António” que foi “vítima dos ataques cobardes dos ativistas”. Num post feito no Instagram, o líder do Chega afirmou que os jovens “deviam ter vergonha de dizer que defendem a natureza e o ambiente”.

Mas que ataque tão violento foi este? Um arremesso de tinta verde à sede do partido. Disse Ventura que “foi novamente vandalizada esta noite, agora pelos apanhados do clima”.

Aborto: o fantasma que assustou mais do que a tinta verde

A campanha da AD até parecia estar a correr bem, com as prestações nos debates positivamente avaliadas e uma subida nas sondagens que colocava a coligação à frente do PS, mas a meio do percurso surgiram algumas vozes desafinadas que interromperam a harmonia do discurso equilibrado e sem elevar muito o tom de Montenegro.

Se o embaraço de possíveis intervenções de Gonçalo da Câmara Pereira (PPM) na campanha já tinha sido prevenido – não fossem as mulheres fugir ao voto por a coligação ser integrada por um “português macho latino“-, o mesmo não se pode dizer do “fantasma” da lei do aborto ressuscitado por Paulo Núncio.

As declarações do vice-presidente do CDS-PP, Paulo Núncio, candidato a deputado por Lisboa nas listas da AD às eleições legislativas, mancharam mais do que a tinta verde atirada a Luís Montenegro no dia 28 de fevereiro. É que considerar uma alteração à lei do aborto através de um novo referendo não cai bem e os adversários de Montenegro aproveitaram a deixa. Estarão os direitos das mulheres – nomeadamente no que ao aborto diz respeito – em causa?

Nuno Melo apressou-se a negar. Instado a comentar “a necessidade de se voltar a fazer um referendo sobre o aborto”, o líder do CDS-PP foi taxativo: “O Paulo Núncio não disse nada disso.”

Mas o problema é que disse. No evento da “Federação Portuguesa pela Vida”, Núncio afirmou: “É certo que, depois de a liberalização do aborto ter sido aprovada por referendo, embora não vinculativo, mas com significado político, é muito difícil reverter a lei apenas no Parlamento. Eu acho que a única forma de nós revertermos a liberalização da lei do aborto, passará por um referendo, por um novo referendo, para conseguirmos ganhar, como ganhámos em 1998.”

Montenegro escusou-se a desmentir o que toda a gente viu e ouviu; o líder do PSD disse antes que se tratou exclusivamente de uma “opinião” de natureza “pessoal” que, aliás, não tinha “nada a ver” com o que defende a coligação que junta PSD, CDS-PP e PPM, sacudindo assim qualquer responsabilidade. Problema: na apresentação do evento, o moderador começou logo por referir que os intervenientes “vêm em representação dos seus partidos e, portanto, as perguntas não serão pessoais”.

Já na reta final da campanha, o líder da AD procurou seduzir o público feminino, não fossem elas arredar pé rumo à esquerda. Assim, às mulheres do partido, deixou uma promessa no dia 6 de março: “Igualdade de oportunidades, um tratamento que as valorize e que não as condicione.”

Passos Coelho, o campeão das redes sociais: afinal, mais imigrantes significam menos segurança?

E do fantasma do aborto, passamos à aparição de Pedro Passos Coelho na campanha eleitoral da AD. Quase poderíamos dizer que estávamos a ver um qualquer filme intitulado “Regresso ao Passado”. Mas não. Não regressámos ao passado, estamos em 2024, e o ex-Primeiro-Ministro ainda parece encher a alma dos sociais-democratas, mesmo que, do outro lado da barricada, se faça uso da “má memória” que esta figura traz aos pensionistas.

A aparição foi tão polémica que na noite e dia seguinte ao discurso não se falava de outra coisa: Passos, Passos, e mais Passos. É que o ex-Primeiro-Ministro deu “passos” em direção a André Ventura e disse aquilo que Luís Montenegro e Nuno Melo não se atreviam a dizer.

Perante uma plateia entusiasta, Passos Coelho recordou um alerta que tinha feito em 2016 (quando ainda liderava o PSD), sobre a imigração em Portugal. “Nós precisamos de ter um país aberto à imigração, mas cuidado que precisamos também de ter um país seguro”, declarou.

O Governo do PS liderado por António Costa “fez ouvidos moucos” a esse aviso e, “na verdade, hoje as pessoas sentem uma insegurança que é resultado de investimento e de prioridade que se deu a essas matérias”. A reação foi imediata nas redes sociais: Mais imigração é sinónimo de mais criminalidade?

O artigo do Polígrafo, que desmente esta associação, tornou-se campeão de retweets no X: é que a tendência no que diz respeito à criminalidade até tem sido de diminuição.

De acordo com o último Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), referente ao ano de 2022, “analisando a evolução da criminalidade, desde o ano 2006, num ciclo de 17 anos, verifica-se que os valores registados atualmente, apesar de representarem acréscimos, são consideravelmente inferiores, observando-se uma tendência de descida, tanto na criminalidade geral como na criminalidade violenta e grave. Atualmente a criminalidade violenta e grave representa 3,9% de toda a criminalidade participada”.

Quanto ao “sentimento” de insegurança de que fala Passos Coelho, poderá ter alguma sustentação no “Barómetro APAV/Intercampus” sobre “Perceção de Criminalidade e Insegurança” divulgado em maio de 2023. Nesse inquérito de opinião (baseado em 600 entrevistas) indica-se que o “sentimento de insegurança” aumentou ligeiramente em comparação com o anterior inquérito, realizado em 2017.

No entanto, o facto de as pessoas se sentirem mais inseguras não é sinónimo de maior criminalidade.

Apelo falhado. Pedro Nuno Santos a Primeiro-Ministro. Perdão, Luís Montenegro!

“Cruzes canhoto”. Foi assim que Nuno Melo reagiu após se aperceber do que tinha acabado de dizer num comício em que a AD contou com o apoio de Durão Barroso, em Santa Maria da Feira.

No seu discurso, Nuno Melo pediu “uma grande vitória”. Para Luís Montenegro? Não, “uma vitória robusta que permita ao Pedro Nuno Santos ser Primeiro-Ministro sem depender muito dos outros”.

Após apelar ao voto no adversário, o líder do CDS-PP parou por menos de um segundo e corrigiu: “Eu disse isto? Enganei-me. Deus me livre, cruzes canhoto, estava a correr tão bem.”

Pedro Nuno e a Habitação: muita teoria, pouca prática

Aquele que se quer mostrar “fazedor” e que apela frequentemente a “mais ação” foi ministro das Infraestruturas e da Habitação entre 2019 e 2022. Puxando dos galões, Pedro Nuno Santos repetiu num debate contra Rui Rocha uma mentira já proferida por António Costa: a de que “em 2015, não havia nada sobre habitação” e que esse “era um problema de que ninguém falava”.

Sendo verdade que os socialistas incluíram essa “nova geração de políticas de habitação” no seu programa eleitoral em 2015, é falso – tanto à esquerda quanto à direita – que mais ninguém falava sobre este problema.

E o que fez Pedro Nuno Santos? No programa de Governo de 2019 (ano em que começou o mandato enquanto Ministro das Infraestruturas e da Habitação, que viria a terminar de forma abrupta em 2022 na sequência do polémico caso Alexandra Reis), a medida de 2017 que garantia a erradicação de todas as carências habitacionais até ao 50.º aniversário do 25 de Abril passou a funcionar apenas como analgésico para a crise habitacional. A promessa de Costa de “erradicar as principais carências habitacionais identificadas no Levantamento Nacional de Necessidades de Realojamento Habitacional de 2018” já não seria cumprida na íntegra, mas a data limite manteve-se.

No âmbito do PRR, o Governo conseguiu um financiamento substancial, de 2.700 milhões de euros, “para aumentar a oferta pública de habitação”. No entanto, o certo é que até setembro de 2023, dos 26 mil fogos que deveriam ser entregues até abril de 2024, apenas 1.400 estavam concluídos.

Mais, de acordo com os dados inscritos nos “Censos 2021“, disponíveis na página do Instituto Nacional de Estatística (INE), entre 2016 e 2021 foram construídos 61.335 edifícios. Acontece que este foi o segundo período em que menos edifícios se construíram no último século, apenas superado pelo período de 2011 a 2015 em que se construíram apenas 49.449 edifícios.

Antes do período em que Pedro Nuno Santos deteve a pasta da habitação fez-se ainda menos, é certo, mas desengane-se o candidato a Primeiro-Ministro sobre a sua veia de “fazedor”. É que ainda que se tenha evoluído entre 2016 e 2021, como nos dizem os Censos, a diferença é tão residual que não se pode considerar que Pedro Nuno tenha mudado grande coisa.

Bruno Fialho: o “negacionista” que não quer doutrinar crianças a “mudar de sexo aos 14 anos”

Destaca-se ainda, no meio de todos estes falsos, gafes e tropeções, a convicção de Bruno Fialho que parece ainda não ter esquecido a pandemia. No debate que juntou os partidos que lutam por um lugar numa cadeira do Parlamento, o líder do ADN lembrou a “mortalidade excessiva em Portugal e na Europa” num discurso negacionista em relação às vacinas.

Mas os dados não suportam a associação que o líder do ADN faz. É que o Eurostat revela, de facto, que todos os países europeus registaram em julho de 2022 um excesso de mortalidade face ao período entre 2016 e 2019, com exceção da Letónia. No entanto, o epidemiologista Manuel Carmo Gomes garantiu ao Polígrafo que não existe base científica “absolutamente nenhuma” que sustente essa alegada correlação entre a mortalidade excessiva na União Europeia e a vacinação contra a Covid-19. Estranho é, na opinião do epidemiologista, “as pessoas fingirem esquecer que tivemos praticamente toda a população europeia infetada pelo vírus”.

Confrontado pelo Polígrafo, Bruno Fialho disse ter comparado “sermos infetados por um vírus que se multiplica rapidamente dentro do nosso organismo e chega a todo o lado com uma vacina que leva uma molécula do vírus e que depois dá origem a uma proteína do vírus”.

No entanto, explicou Manuel Carmo Gomes que “este vírus deixa sequelas” que “invade praticamente todos os órgãos: não só o sistema respiratório, que é o mais óbvio, mas também o gastrointestinal, o renal e o neurológico.”

E quanto a crianças mudarem de sexo aos 14 anos? O Polígrafo esclarece o líder do ADN. A questão da mudança de sexo está inscrita na Lei n.º 38/2018, que atribui aos cidadãos o “direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa”.

Este direito é atribuído apenas a “pessoas de nacionalidade portuguesa e com idade compreendida entre os 16 e os 18 anos” que “podem requerer o procedimento de mudança da menção do sexo no registo civil e da consequente alteração de nome próprio, através dos seus representantes legais”.

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