Ventura é uma catapulta: antes de 2019 já o era, dentro do PSD já o era e, sentado na Assembleia da República, é-o ainda mais. Aproveita ao milésimo de segundo cada intervenção, lança números a cada frase e repete chavões plenário após plenário. Nas comunicações aos jornalistas é mais contido, mas nunca se o microfone e a câmara estiverem para si apontados: parece pesar pouco as palavras (coisa que até lhe valeu, a si e ao partido, uma condenação em Tribunal) e tampouco se importa com a sua veracidade. O que interessa a um líder, mais do que aquilo que comunica, é o que faz chegar às pessoas. Dizia George Orwell que a linguagem política é projetada para fazer com que as mentiras pareçam verdades: o fact-checking ousa travar o processo, mas Orwell é ainda atual.
Neste ano que acaba agora, André Ventura faltou à verdade, foi impreciso e tirou do contexto informações cerca de 50 vezes (no Facebook, no Twitter, em entrevistas, debates e na Assembleia da República). O número redondo vale ao líder do Chega o título de “Pinóquio” no registo do Polígrafo, mas a ele junta-se agora uma equipa, um grupo-parlamentar e um partido que cresce assente em “fake-news”. Elegemos as melhores e mais polémicas de 2022:
O ano tinha começado há dois dias quando Ventura foi à SIC Notícias, frente a Catarina Martins, acusar metade dos açoreanos de viveram “à conta dos outros que estão a trabalhar”. Em causa o Rendimento Social de Inserção (IRS) que, veremos, esteve presente no discurso de Ventura durante todo o ano. Nessa noite, o líder do Chega referiu-se em tom jocoso aos “coitadinhos que andam a receber o RSI” e apontou para o exemplo dos Açores onde “anda metade a viver à conta dos outros que estão a trabalhar”. A afirmação é, naturalmente, falsa, assim como aquela que Ventura proferiu sobre a sua condenação envolvendo os ataques à família Coxi, a quem ventura, no contexto da campanha para as eleições presidenciais de janeiro de 2021, apelidou de “bandidos” e “bandidagem“.
O recurso de Ventura e do Chega para o Tribunal da Relação de Lisboa visava tornar claro que não existiu qualquer discriminação. Mas a decisão nessa segunda instância foi no sentido oposto, sublinhando que o tribunal de primeira instância tinha reconhecido “a vertente discriminatória em função da cor da pele e da situação socioeconómica” dos queixosos e aceitando essa “opção” como válida, sendo mais uma vez falsa a declaração de Ventura.
O rol é longo e tem mais baixos do que altos para o líder da extrema-direita: Ventura repetiu ao longo do ano que políticos presos ganham 3.000 euros de subvenção mas bombeiro ferido em Pedrógão recebe apenas 290 euros (uma mentira desmontada pelo Polígrafo várias vezes), adulterou sondagens, faltou à verdade quanto ao índice de combate à corrupção e até quanto ao peso dos impostos nos salários.
Depois das eleições, não satisfeito com o resultado, Ventura disse que o Chega “teve votações acima de 20%” em “muitas zonas do Alentejo”: não houve, nem em distritos nem em concelhos, qualquer resultado acima de 20% dos votos. Ventura estava mais uma vez errado, mas não seria a última. Entre janeiro e outubro deste ano o líder faltou à verdade mais uma dúzia de vezes e, se somarmos os seus deputados aos cálculos, o Chega foi mesmo o partido menos incauto da AR: com uma ficha manchada, o líder chegou a sugerir que movimentos LGBT queriam “descriminalizar o sexo entre pessoas e animais”, que o Estado “virou completamente as costas” aos “retornados” depois do 25 de Abril e que “60% dos terrenos que não são limpos são terrenos do próprio Estado”. Todas estas afirmações vieram a verificar-se falsas, mas Ventura nunca voltou atrás no que disse.
Destaque para uma das poucas entrevistas dadas este ano por André Ventura, ao jornal Observador, em que o líder do Chega anunciou querer fiscalizar os gastos dos portugueses para que o cheque de 125 euros não fosse gasto em álcool e drogas, assegurar que os pais não gastavam o dinheiro atribuído aos filhos e controlar os desperdícios nos três setores essenciais do Estado: a saúde, a justiça e a administração interna. No raio-x do Polígrafo a André Ventura, deparamos com cinco falsidades e imprecisões, resultado de manipulação de dados e estatísticas, mas também de alguma originalidade: a título de exemplo, Ventura mencionou dados que não existem.
Mais recentemente, Ventura colecionou dois “pimenta na língua” por ter sugerido que os impostos dos portugueses pagaram a “destransição” de género de uma mulher norte-americana e por ter afirmado, numa sala com Romualda Fernandes, que o único deputado negro no Parlamento era do Chega. Se o seu percurso até agora não fosse ainda quanto baste, o líder do Chega fechou o ano a comprovar que mais vale uma mentira na mão do que duas a voar: a máxima pode não transmitir seriedade, mas certamente garante distinções.