O ano começara há 13 dias quando o partido que ainda não sonhava sentar 50 deputados na Assembleia da República se reunía para o seu sexto congresso, desta vez em Lisboa, o local perfeito para o tema que dominou as intervenções: a imigração. O Chega de André Ventura, à data com vários problemas internos e queixas sobre a liderança, apresentou e aprovou na capital o programa com que se apresentou às eleições legislativas antecipadas de 10 de março. No documento, um dos capítulos já era inteiramente dedicado a um problema emergente: “Como garantir fronteiras controladas?”
As intervenções de André Ventura, e sobretudo de Filipe Melo, em Lisboa foram muitas vezes mentirosas. Sobre imigrantes em Braga, o líder do partido chegou a dizer que eram já “30% da população“, um número falso (eram 3,3% no distrito e 6,6% no concelho) que nunca foi corrigido. Já Melo, o deputado que em 2020 escreveu no Facebook, sobre a colega de partido Cibelli Pinheiro de Almeida, que não ia ser “uma brasileira” a “mandar nos destinos de um partido nacionalista”, mentiu sobre o número de estrangeiros em Portugal, a sua relação com a Segurança Social e ainda com o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Como o seu líder, nunca se retratou.
Lisboa foi apenas o início de um problema em crescendo. Quando, em março, Ventura garantiu mais 49 deputados no Parlamento, inclusive um brasileiro, o discurso não podia alterar-se. Foram dezenas as vezes em que, sozinho, o líder do terceiro maior partido na Assembleia da República criou uma narrativa insustentada em torno da imigração. Muito raramente tocou nos problemas reais do fenómeno, mas frequentemente recorreu a vídeos falsos, números errados e até a manipulações claras de conteúdo. Menos na televisão e mais nas redes sociais, um dos terrenos férteis para o discurso racista e xenófobo, Ventura fez história, mas uma que já lhe é comum: como em 2022, o político leva mais uma vez o troféu da “Mentira Nacional do Ano”. Estes são todos os dados que mostram o porquê de o merecer.
Imigrantes na população prisional
André Ventura: “Sabemos que 20% da atual população prisional também são estrangeiros”
De acordo com o último Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), referente a 2023, a população prisional diminuiu em 190 reclusos no ano de 2023, o que corresponde a uma redução de 1,5%. Em linha com os números das últimas décadas, a grande maioria da população prisional continua a ser de nacionalidade portuguesa (83,3%) e do sexo masculino (92,6%).
Os reclusos estrangeiros correspondem a apenas 16,7% do total da população prisional. E quase metade desses reclusos são provenientes de Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), ou seja, não fazem parte das novas rotas de imigração para Portugal. Outro elemento a ter em conta é que na área penal registou-se a execução de 52.428 penas, incidindo sobre 46.233 pessoas, das quais apenas 11,1% tinham nacionalidade estrangeira. Ou ao nível das penas e medidas fiscalizadas por vigilância eletrónica em que, também de acordo com o RASI de 2023, 92% dos vigiados tinham nacionalidade portuguesa.
Imigrantes e a Segurança Social
André Ventura: “[Devemos] garantir que Portugal não se torna um chamariz de imigração pelos apoios sociais ou pelos subsídios”
Segundo o “Relatório Estatístico Anual de 2023” do Observatório das Migrações, seguindo “a tendência da última década, em Portugal, a relação entre as contribuições dos estrangeiros e as suas contrapartidas do sistema de Segurança Social português – as prestações sociais de que beneficiam -, nos anos de referência deste relatório, continua a traduzir um saldo financeiro bastante positivo com os estrangeiros residentes no país”.
Saldo financeiro que atingiu o valor de 1.604,2 milhões de euros em 2022. Esse valor resulta do facto de, nesse ano, as contribuições dos estrangeiros para a Segurança Social terem ascendido a 1.861 milhões de euros. Por outro lado, os “gastos do sistema com prestações sociais de que os contribuintes estrangeiros beneficiam” resultaram num valor bastante inferior: apenas 256,8 milhões de euros em 2022. Uma relação que é, portanto, “bastante favorável e positiva em Portugal”, destaca-se no relatório.
SNS para estrangeiros
André Ventura: “Os imigrantes chegam e têm acesso a tudo”
Segundo a informação disponibilizada no site da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), “são beneficiários do Serviço Nacional de Saúde (SNS) todos os cidadãos portugueses, bem como todos os cidadãos com residência permanente ou em situação de estada ou residência temporárias em Portugal, que sejam nacionais de Estados-Membros da União Europeia ou equiparados, nacionais de países terceiros ou apátridas, requerentes de proteção internacional e migrantes, com ou sem a respetiva situação legalizada, nos termos do regime jurídico aplicável”.
Porém, o acesso ao SNS de indivíduos que não possuam “uma autorização de permanência ou residência” ou estiverem “em situação irregular” acarreta custos, “sendo-lhes exigido o pagamento dos cuidados recebidos segundo as tabelas em vigor”.
Crescimento de imigrantes e aumento do crime grave
André Ventura: “Estamos a aumentar a criminalidade, porque as pessoas depois não têm nada, vão viver para a rua ou para casas com 20 pessoas…”
De acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2023, “analisando a evolução da criminalidade, desde o ano 2006, num ciclo de 18 anos, verifica-se que os valores registados atualmente representam acréscimos, observando-se contudo uma tendência de descida, tanto na criminalidade geral como na criminalidade violenta e grave. Atualmente a criminalidade violenta e grave representa 3,8% de toda a criminalidade participada”.
Como se pode ver no gráfico acima, embora a criminalidade tenha aumentado ligeiramente no último ano, o que é certo é que esse crescimento só é significativo se forem tidos em conta os dois anos de pandemia, em que houve quebras na criminalidade. De resto, os números de 2023 estão longe dos registados noutros anos, sobretudo quando olhamos para a criminalidade violenta e grave.
Imigrantes e as violações
André Ventura: “Muitos destes crimes sexuais [violações] são cometidos por imigrantes”
Segundo os números da Direção-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais, 80% dos reclusos presos por violação eram portugueses, em 2023. É ainda importante notar que, em termos de violência doméstica, os reclusos presos pelo crime em 2023 só representavam 8% do total, sendo os restantes portugueses e, na sua maioria, homens com 21 ou mais anos.
Mais interessante ainda é perceber que a percentagem de estrangeiros presos por crimes de violação (todos homens) está relativamente estável desde 2010, primeiro ano com dados disponíveis. Eram, nessa altura, 18,4% da população prisional relacionada com o crime. Isto apesar de o número de imigrantes a residir em Portugal ter aumentado substancialmente desde 2010, quando os estrangeiros homens eram 224 mil. São agora 554 mil, ou seja, um aumento de… 147%.
Outros dados importantes e que escaparam a Ventura: os crimes de violação caíram 4,8% em 2023 face a 2022, segundo o RASI de 2023; e continuam a ser perpetrados por pessoas conhecedoras da vítima (só em 25% dos casos não havia qualquer relação entre vítima e criminoso). A narrativa de André Ventura é, assim, duplamente falsa, uma vez que não encontra sustentação nos dados oficiais. Contactado pelo Polígrafo, o Chega não esclareceu sobre a fonte dos números.
Vídeos e imagens falsas sobre imigrantes
É uma das grandes armas de Ventura, que quase sempre se recusa a eliminar os vídeos falsos que partilha em todas as redes sociais. Ao longo do ano, foram vários os que chegaram ao Polígrafo (pode ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). As principais vítimas do líder do Chega são os muçulmanos e os brasileiros mas, quanto ao discurso xenófobo, André Ventura não é propriamente discriminatório: ataca tudo e todos e crê que só assim o país pode evoluir. No seu partido, acredita-se até que os cães estão a ser banidos dos espaços verdes ou que os imigrantes os estão a consumir. Como Trump, também Ventura recorre a provas infundadas e muitas vezes até criadas dentro da sua família política.
Em junho deste ano, quando confrontado por um imigrante durante uma iniciativa da campanha eleitoral, Ventura não debitou dados nem tentou silenciar Iqbal: disse até compreender a sua situação e prometeu não se esquecer dela, pretendendo apenas que aquele imigrante “e todos” cumpram “as regras”. Nas redes sociais, mais seguro e só, a história foi outra: o seu partido manipulou deliberadamente um vídeo para descredibilizar o discurso de Iqbal, o homem com quem Ventura acabara de se cruzar, com o objetivo de provar que este foi “instrumentalizado para mentir”. A montagem está disponível até hoje. À data, e numa mensagem para os jornalistas que o confrontaram com a manipulação, Ventura voltou a 2017. Nessa altura, ainda no PSD, o líder do Chega terá acompanhado demasiado perto a campanha de Donald Trump. Tanto que lhe pegou o jeito: o “enemy of the American people” tornou-se no “inimigos do povo”, um apelido que Ventura espera que os jornais não esqueçam: “Vocês ontem foram os inimigos do povo, os inimigos das pessoas, ao partilhar uma peça mentirosa, falsa, a manipular as pessoas.” Sobre a sua mentira, sobre todas as outras, nem uma palavra.