O rasto da carreira política de João Galamba é traçado pelas pegadas das polémicas em que se envolveu ao longo dos anos. Foi um apparatchik disciplinado do então Primeiro-Ministro José Sócrates na blogosfera e na comunicação social e isso valeu-lhe a ascensão no Partido Socialista – José Sócrates que, relembre-se, viria a deixar cair já durante o consulado de António Costa, quando afirmou que se sentia “envergonhado” com o comportamento do ex-Primeiro-Ministro entretanto caído em desgraça, no que foi visto como um sinal de ingratidão relativamente a alguém que foi nuclear no seu processo de afirmação política.
Já no Governo, nunca se preocupou especialmente com a discrição, acumulando incidentes atrás de incidentes, comprando guerras com jornalistas ou insultando utilizadores do Twitter. Apesar da agitação permanente, António Costa, sempre avesso a remodelações, foi-o segurando. Até hoje, quando a corda finalmente rebentou.
Fique com os principais casos que contribuíram para o desgaste contínuo de Galamba, o homem que no início desta noite de terça-feira, 2, anunciou publicamente a sua demissão.
Afinal havia outra: falou-se numa reunião secreta com a ex-CEO da TAP – na realidade foram duas
No dia 6 de abril, o Ministério das Infraestruturas garantiu que foi a TAP que quis participar na reunião “secreta” prévia à audição parlamentar de Christine Ourmières-Widener, e não o contrário, como indicara a ex-CEO da empresa na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à TAP. Mas na conferência de imprensa do último sábado, 29, o mesmo João Galamba contou que, afinal, foi ele quem aconselhou disse a ex-CEO da TAP a participar: “Eu disse, olhe, eu tenho um pedido do Grupo Parlamentar [do PS] – que me tinha chegado, julgo que no dia 13, portanto três dias antes desta reunião de dia 16 com a CEO -, eu disse, olhe, tenho um pedido do Grupo Parlamentar [do PS] para uma reunião preparatória, não faz muito sentido eu ir à reunião preparatória porque não sou eu que vou falar da TAP na reunião preparatória, quem vai falar da TAP na reunião preparatória é a senhora CEO. E portanto, não sei, se quiser participar, já tive informação de que havia interesse em falar consigo, se quiser participar, pode participar.”
A nova versão do sucedido colide frontalmente com a versão descrita no comunicado que o Ministério das Infraestruturas, liderado por Galamba, enviou às redações no dia 6 de abril.
“Foi da TAP que partiu o interesse em que a sua presidente executiva participasse numa reunião com o Grupo Parlamentar do PS e membros do Governo um dia antes de Christine Ourmières-Widener ser ouvida pelos deputados da Comissão de Economia. Essa é a garantia dada pelo Ministério das Infraestruturas, liderado por João Galamba, que, com esta declaração, contraria a CEO da companhia aérea, que esta quarta-feira [dia 5 de abril] disse aos deputados que compareceu na reunião por iniciativa do Ministério das Infraestruturas“, reportou o jornal “Expresso” nesse dia.
De acordo com o mesmo comunicado, “o ministro das Infraestruturas não se opôs à participação da TAP na reunião, agendada pela Área Governativa dos Assuntos Parlamentares para o dia 17 de janeiro, tendo o seu gabinete procedido em conformidade”.
Chamem a polícia – ou melhor, os serviços secretos
No mesmo dia (28 de abril) em que foi conhecida a exoneração do adjunto do ministro das Infraestruturas, Frederico Pinheiro, a SIC e o “Expresso” noticiaram que os Serviços de Informações de Segurança (SIS) tinham sido incumbidos de recuperar o computador de trabalho que aquele ex-membro do gabinete decidira levar para casa minutos depois de João Galamba lhe ter comunicado o “despedimento” (Frederico Pinheiro referiu à TSF que o fez por recear não voltar a ter acesso a informações pessoais e de trabalho, algumas importantes para a sua defesa neste caso).
O Polígrafo contactou Jorge Bacelar Gouveia, constitucionalista e antigo presidente do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa (entre 2004 e 2008), que classificou como “completamente ilegal” a intervenção do SIS neste episódio. Para o demonstrar, remete para os dois pontos do artigo 4.º da Lei Quadro (30/84) do Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP):
“Artigo 4.º
(Delimitação do âmbito de actuação)
1 – Os funcionários ou agentes, civis ou militares, dos serviços de informações previstos na presente lei não podem exercer poderes, praticar actos ou desenvolver actividades do âmbito ou competência específica dos tribunais ou das entidades com funções policiais.
2 – É expressamente proibido aos funcionários e agentes, civis ou militares, dos serviços de informações proceder à detenção de qualquer indivíduo ou instruir processos penais.”
Bacelar Gouveia sublinhou, assim, que uma eventual recolha do computador somente podia ser concretizada por alguma força policial, designadamente a Polícia Judiciária, mas adverte também que a “exoneração apenas tem efeitos a partir da publicação em ‘Diário da República’”, pelo que, à data dos factos (quarta-feira, dia 26), Frederico Pinheiro “ainda não estava formalmente exonerado”.
Independentemente do objeto da intervenção, este especialista referiu que “conforme os artigos 17.º da Lei Quadro e 4.º da Lei 9/2007, referente à orgânica do SIRP, apenas o primeiro-ministro ou o ministro da Presidência, caso haja delegação de competências, poderiam dar alguma instrução ao SIS, e nunca outro membro do Governo”, o que confere um cunho de ilegalidade não apenas ao âmbito da ação como à cadeia de comando que a determinou.
O caso do alegado “swing” profissional das mulheres de Medina e de Galamba
A revelação de que Laura Abreu Cavaco, mulher de João Galamba, estava a “coordenar” o Departamento de Serviços Financeiros do Ministério das Finanças, liderado por Fernando Medina, motivou uma série de publicações nas redes sociais que apontavam (com sarcasmo) para uma prática de “swing”: é que Stéphanie Sá Silva, casada com o ministro das Finanças, supostamente trabalhava sob a tutela de… João Galamba.
Sobre a nomeação da mulher de Galamba, Medina proferiu a seguinte explicação: “A doutora Laura Cravo não foi nomeada pelo Governo, nem pré-nomeada pelo Governo. É quadro de uma instituição da Administração Pública e está ao abrigo do regime de mobilidade. É quadro da CMVM [Comissão do Mercado de Valores Mobiliários] e não vai ser nomeada para a direção do Departamento dos Serviços Financeiros do Ministério das Finanças.”
Quanto a Stéphanie Sá Silva, a verdade é que a mulher de Fernando Medina trabalhou durante quatro anos como diretora jurídica da TAP, empresa tutelada pelo Ministério das Infraestruturas, mas deixou o cargo em março do ano passado, quando a pasta ainda pertencia a Pedro Nuno Santos. O anúncio foi, aliás, feito pela própria nas redes sociais, depois de Medina tomar posse como ministro das Finanças.
Na realidade, Sá Silva trabalha presentemente na firma de advocacia DLA Piper, como sócia, especializada no setor da aviação. Em suma, a primeira parte da alegação – “A mulher de Medina tem como patrão Galamba” – era errada, não tinha sustentação factual – mas apesar de não ter sustentação foi mais uma polémica a chamuscar o ex-ministro das Infraestruturas.
O programa da RTP que não passava de “estrume” e “coisa asquerosa”
Os excessos linguísticos de João Galamba no espaço público são conhecidos. Em maio de 2021, o então secretário de Estado do Ambiente e da Energia “estrume” e “coisa asquerosa” ao programa da RTP Sexta às Nove: “Lamento, estrume só mesmo essa coisa asquerosa que quer ser considerada ‘um programa de informação’. Mas se gosta desse caso psicanalítico em busca da sua expiação moral, bom proveito.”
Apesar de ter sido apagada logo depois de ter sido noticiada, a publicação foi repudiada pela RTP. Através de uma nota publicada na página oficial de Facebook do programa, a Direção de Informação da RTP considerou que as palavras proferidas por Galamba “atentam contra o bom nome da RTP e da sua jornalista Sandra Felgueiras e desrespeitam a liberdade de Informação”.
Na sequência desta declaração pública do membro do Governo, quer o CDS quer o PSD pediram a demissão de João Galamba, que acabou por se manter no cargo.
O momento “vai para o caralho e desaparece”
No dia 6 junho de 2022, o então secretário de Estado Adjunto e da Energia via o seu nome entre os trending topics do dia no Twitter. Tudo porque aparentemente esqueceu o conselho de António Costa segundo o qual os governantes “nem à mesa do café podem deixar de se lembrar que são membros do Governo“. Galamba insultou, através de uma mensagem privada, um utilizador do Twitter com quem já discutira publicamente. Na origem do desentendimento estavam as consequências da guerra na Ucrânia.
A troca de acusações entre João Galamba e o titular de uma conta de Twitter entretanto apagada começara por volta das 17h30 de domingo, dia 5 de junho, quando o Secretário de Estado Adjunto e da Energia apelidou o utilizador em causa e a sua conta na plataforma de “uma coisa deveras lamentável“. O tweet original refletia sobre o preço dos combustíveis: “Quando a gasolina chegar perto dos três euros e a inflação perto dos 9%, quantos terão a capacidade de assumir que tudo o que pensavam sobre o conflito na Ucrânia estava errado e que a liderança europeia falhou de forma espetacular em defender os nossos interesses?”
Numa troca de mensagens entre Galamba e o autor do tweet, só as do Secretário de Estado continuavam disponíveis: “Portanto, agora és uma vergonha e apoias o Putin. Ouve lá, quando vais dormir não sentes aqueles vergonha?”; “E, já agora, se não sentires vergonha e não te sentires uma coisa deveras lamentável, não me levas a mal, mas não apareces daqui [SIC], por favor”; “Para ser claro: quem hesita na Ucrânia, fica claro onde está. E onde está não é recomendável”; “Não te preocupes. Diria apenas que nada do que dizes faz sentido e que o que dizes é idiota. Só isso, nada mais”; E depois esperaria que o bom senso imperasse e que nada do que dizes seria tido em conta. Eu acredito muito na racionalidade e espero, também, que as insanidades que tens escrito sejam ignoradas. Só isso, nada mais”; “Sai mesmo daqui, por favor. Dás mau nome a esquerda e, muito sinceramente, não tenho disponibilidade para tamanha inanidade”; “És mesmo pro fascista. Já vi que não percebes isso. Mas é mesmo isso que tu és.”

João Galamba foi obrigado a confirmar as acusações feitas posteriormente, com recurso a prints de mensagens privadas enviadas pelo secretário de Estado no pós-discussão: “Olha, o meu pai foi torturado por fascistas da Pide e, se lesse esta pouca vergonha, só te diria: vai para a puta que te pariu fascista de merda. Desaparece. Tenho nojo de tudo o que escreves. Não me voltes a dirigir a palavra. És mesmo uma vergonha fascista. Vai para o caralho e desaparece. Tenho desprezo por toda esta esquerda pró-Putin. Vai para o caralho e desaparece fascista. Nojo.”
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Nota editorial: minutos depois da publicação deste texto – realizada depois da divulgação pública do comunicado de João Galamba em que este anuncia a sua demissão – o Primeiro-Ministro António Costa anunciou ao país que não aceitou o pedido de demissão do ministro das Infraestruturas.