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Em 47 anos de democracia, apenas três mulheres foram candidatas à liderança dos principais partidos

Este artigo tem mais de um ano
Duas das quais foram vencedoras: Manuela Ferreira Leite no PSD e Assunção Cristas no CDS-PP. A única derrotada foi Maria José Nogueira Pinto no CDS-PP, em 1998, contra Paulo Portas. Quanto ao PS e ao PCP, zero candidatas, zero líderes. Como é que se explica tamanha desigualdade de género no acesso à liderança dos partidos? O Polígrafo falou com Ana Gomes, Margarida Balseiro Lopes e André Freire, em busca de respostas.

“O país está mal porque o Governo está esgotado, sem soluções para os problemas dos portugueses, está preso às fantasias que tem vindo a construir”, afirmou Manuela Ferreira Leite, a 20 de junho de 2008, ao discursar na abertura do XXXI Congresso Nacional do PSD, em Guimarães. Cerca de três semanas antes, Ferreira Leite tinha vencido as eleições diretas para a presidência do partido, tornando-se assim a primeira mulher de sempre a liderar um dos principais partidos da democracia portuguesa nascida em 1974-75.

“Recebida sem entusiasmo num pavilhão onde as clareiras dos lugares reservados aos delegados eram ampliadas pelo enorme ecrã por trás da tribuna, Manuela Ferreira Leite não cedeu no estilo”, descreveu o jornal “Público” (edição de 21 de junho de 2008). Seria o prenúncio de uma liderança histórica, mas breve. A divisão do partido, aliás, tinha ficado evidente nos resultados das eleições diretas: 37,9% dos votos expressos para Ferreira Leite, 31,06% para Pedro Passos Coelho, 29,6% para Pedro Santana Lopes e 0,68% para Patinha Antão.

Depois de ter vencido três homens candidatos à liderança do PSD em 2008, Ferreira Leite disputou as eleições legislativas de 2009 frente aos homens líderes do PS (José Sócrates), CDS-PP (Paulo Portas), BE (Francisco Louçã) e CDU (Jerónimo de Sousa). Quedou-se pela segunda posição, com 29,11% dos votos. Não evitou a reeleição de Sócrates como primeiro-ministro, mas contribuiu para a perda da maioria absoluta do PS. No rescaldo das eleições, porém, Ferreira Leite anunciou que não seria recandidata à presidência do PSD e acabou por ser sucedida por Passos Coelho em março de 2010.

No total, Ferreira Leite exerceu a liderança do PSD durante menos de dois anos. Foi um caso excepcional no partido: a única mulher líder e a única mulher candidata a líder, até hoje. Antes de Ferreira Leite, entre os partidos fundadores da democracia portuguesa (com representação na Assembleia Constituinte de 1975), apenas Maria José Nogueira Pinto foi candidata à liderança do CDS-PP em 1998, tendo sido derrotada por Paulo Portas. Depois de Ferreira Leite, apenas Assunção Cristas foi candidata à liderança do CDS-PP em 2016 e venceu, permanecendo no cargo durante menos de quatro anos.

Colocamos o enfoque no PSD e no CDS-PP porque são dois partidos em que as respetivas lideranças vão ser disputadas em breve, mas nos casos do PS e do PCP não há sequer uma mulher que tenha sido líder ou candidata a líder. Por seu lado, Catarina Martins é líder do BE desde 2012 (co-líder até 2014) e Inês Sousa Real é líder do PAN desde há poucos meses. No entanto, esses partidos só foram fundados em 1999 e 2009, respetivamente.

Entre os partidos fundadores da democracia portuguesa, sobretudo os três partidos que formaram ou integraram todos os Governos desde 1976 (exceptuando os de iniciativa presidencial), a desigualdade de género no acesso à liderança é evidente. Como é que se explica este fenómeno? Numa altura em que as lideranças do PSD e do CDS-PP vão ser disputadas exclusivamente por homens, mais uma vez, enquanto no PS e no PCP se aponta para um claro favoritismo de homens na sucessão dos atuais líderes…

 

“Não é por falta de mulheres capazes e disponíveis”

“Acho que há falta de entendimento no topo das lideranças dos partidos de que esta é uma questão de democracia, de qualidade da democracia. Há muitos líderes, que embora não o assumam, têm de facto uma postura misógina, não têm pachorra para mulheres. E há o efeito da old boys network que explica, por exemplo, mesmo com a lei da paridade, como a que existe hoje e tendo havido imensas mulheres candidatas, tenha determinado que muito poucas tenham sido eleitas, por exemplo, agora nas eleições autárquicas. E que até se tenha regredido em número de mulheres eleitas para as presidências das Câmaras Municipais”, salienta Ana Gomes, em declarações ao Polígrafo.

“Lembro-me que há muitos anos no PS, no tempo da direção de António José Seguro, de eu ter proposto numa Comissão Nacional do PS que se adotasse a lei da paridade. Nessa altura, isso falhou, por poucos votos, mas veio a ser adotada na lei da paridade e hoje está transcrita. E foi ela que determinou essa grande participação das mulheres como candidatas às autarquias. Mas, e isto não é por acaso, a lei não determina que um terço dos candidatos às posições de topo das listas, um terço ou um quarto, tenham de ser também de mulheres. Assim, apesar de existir um grande número de mulheres a concorrer, as que estão no topo da lista são muito poucas. E as que são eleitas no topo da lista ainda são menos. A lei da paridade tem ainda de ser reforçada, ao determinar que 40% dos candidatos aos lugares de topo têm de ser mulheres. Essa é o tipo de determinação que cabe, em última análise, aos líderes dos partidos políticos”, defende a militante do PS, candidata à Presidência da República em 2021.

“Hoje temos um Governo com muitas mulheres, a maioria secretárias de Estado e poucas ministras, já tivemos mais ministras percentualmente e tal não acontece por acaso, não é por falta de mulheres completamente capazes e disponíveis para assumir funções no Governo. Até porque funciona a old boys network“, realça.

“A mudança tem que vir do topo, não deve haver a ilusão de que vem da base. A mudança tem que vir dos dirigentes do topo dos partidos políticos que entendam que esta é uma qualidade essencial numa democracia”, afirma Ana Gomes.

No que concerne mais especificamente às lideranças dos partidos, Ana Gomes considera que a desigualdade de género “está relacionada com o sistema patriarcal que marca ainda as nossas sociedades. Além da falta de entendimento das lideranças políticas de que esta é uma questão de qualidade de uma democracia. É realmente anacrónico e retrógrado não dar expressão a uma representatividade de género mais equilibrada, em qualquer órgão de poder, desde os conselhos de administração de empresas até ao Governo e à composição do Governo a todos os níveis”, defende. “A mudança tem que vir do topo, não deve haver a ilusão de que vem da base. A mudança tem que vir dos dirigentes do topo dos partidos políticos que entendam que esta é uma qualidade essencial numa democracia“.

O funcionamento interno dos partidos também contribui para essa desigualdade? “Não tenho dúvida nenhuma. Quando entrei para o Parlamento Europeu, o primeiro relatório que fiz foi sobre a representatividade das mulheres nos partidos políticos e foi essa conclusão que retirei, quer ao nível nacional, quer europeu. O papel dos partidos políticos é fundamental, não há democracia sem partidos políticos. E se as lideranças dos partidos políticos não percebem que esta é uma questão essencial da qualidade da democracia, não fazem a diferença e perpetuam os esquemas de old boys network e de reflexos patriarcais“, responde a antiga diplomata.

Quanto a possíveis soluções, Ana Gomes aponta para a necessidade de “a lei da paridade ser complementada com uma provisão que determina que na composição das listas não tenha que haver apenas um equilíbrio paritário de 40/60, para qualquer um dos géneros, porque eu acho que esta é uma questão que se coloca hoje para as mulheres, mas pode, no futuro, colocar-se aos homens, como já se coloca em alguns países nórdicos. A questão da composição paritária é essencial para a política, tem que se determinar que a composição tem de ser paritária em todo o tipo de órgãos e, por exemplo, quando existem candidatos a eleições democráticas, seja ao nível do Governo local ou nacional, tem que haver um equilíbrio de género também”.

 

“Se quem ocupa grande parte dos lugares de relevo são homens…”

Na perspetiva de Margarida Balseiro Lopes, deputada do PSD e primeira mulher a liderar a JSD (entre 2018 e 2020), “o desequilíbrio persiste em muitas áreas, a política não é excepção. Se não fosse a lei da paridade ainda estaríamos pior”.

Questionada sobre o funcionamento interno dos partidos e eventual contribuição para a desigualdade de género na liderança e outros cargos dirigentes, Balseiro Lopes sublinha que “os partidos são o reflexo da sociedade. Não será surpreendente chegar à conclusão de que alguns dos obstáculos e discriminações não são claros nem evidentes. Nem assumidos ou até conscientes”.

“As lideranças serão tanto mais importantes quanto mais oportunidades criarem para que outras possam mostrar as suas capacidades. Ou seja, há homens que podem de facto potenciar lideranças no feminino”, diz Margarida Balseiro Lopes.

“As lideranças por si só não bastam. Pelo menos, na minha perspetiva. As lideranças serão tanto mais importantes quanto mais oportunidades criarem para que outras possam mostrar as suas capacidades. Ou seja, há homens que podem de facto potenciar lideranças no feminino. E as lideranças não se fazem apenas quando se preside“, afirma a deputada do PSD.

Potenciar no sentido de promover a cargos dirigentes e isso depois abrir o caminho para uma futura candidatura à liderança? É um círculo vicioso de homens que promovem homens e torna-se muito difícil a uma mulher furar esse círculo? “Precisamente. Se quem ocupa grande parte dos lugares de relevo são homens, será depois natural que são estas pessoas a estarem em condições de discutir lideranças“, responde Balseiro Lopes.

 

“A política de quotas tem funcionado bem para os parlamentares”

“A presença das mulheres na representação política tem sido deficitária ao longo do tempo e isso começou a mudar de forma mais profunda através das políticas implementadas. Naturalmente, no caso dos líderes partidários, é um cargo unipessoal e não há assim tantas. Mas temos mulheres em cargos de liderança, nomeadamente no BE, no PAN, entre outros. Para o número de pessoas que estão em causa, historicamente, a presença da liderança nos partidos não é assim tão má, mas, no fundo, ela também reflete o contexto geral, a sub-representação das mulheres na área da política“, considera André Freire, professor de Ciência Política no ISCTE-IUL.

“No entanto, tem sido feito um caminho de progressão, por exemplo, no Parlamento, que em muito se deve à chamada lei das quotas, exigência do número mínimo de mulheres. A situação de hoje pode eventualmente refletir o próprio contexto também. De qualquer maneira, acho que é notável, no sistema atual, já praticamente todos os partidos terem tido líderes mulheres, exceptuando-se o PCP e o PS, acho que isso é notável”, ressalva.

Quanto a possíveis soluções, André Freire destaca que “a política de quotas tem funcionado bem para os parlamentares, por exemplo. Para as lideranças dos partidos, a ideia é um pouco descabida. Pode fazer-se, com maior celeridade, continuar a implementar as quotas no Parlamento e em outros locais que vai proporcionar um contágio no resto do sistema político“.

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