Quando um ministro tem que ser demitido
“Situações extremas em que o primeiro-ministro não pode deixar de propor a demissão de um ministro, como sejam os casos de falta de lealdade para consigo, de comportamentos reveladores de ausência de sentido de Estado, (…) de indícios de corrupção, prevaricação ou de outras violações graves da ética política.”
Num capítulo em que Cavaco Silva explica como deve ser avaliado o trabalho realizado por cada ministro, ressalvando neste âmbito que “o primeiro-ministro não pode (…) criticar o trabalho de um seu ministro em frente de quem quer que seja”, acaba por concluir que há “situações extremas” que vão além da “avaliação do exercício de funções” e obrigam à demissão.
Desde os “comportamentos reveladores de ausência de sentido de Estado” até aos “indícios de corrupção, prevaricação ou de outras violações graves da ética política“, Cavaco Silva indica os motivos para a exoneração de ministros. “Não o fazendo, a credibilidade e a autoridade política e moral do primeiro-ministro ficam duramente feridas e a coesão do Governo e a qualidade da sua ação serão postas em causa”, adverte.
Contudo, não aplicou esse princípio em alguns casos, sobretudo no último Governo (1991-1995) que liderou. A 25 de novembro de 1994, por exemplo, no jornal “O Independente” revelou-se em manchete: “Defesa vendeu material de guerra ao MPLA. Lista negra. É um documento secreto que compromete o Ministério da Defesa. O Governo, através das Oficinas Gerais de Material Aeronáutico (OGMA), vendeu helicópteros de guerra ao MPLA. Fez 263 operações de manutenção militar (…) em Angola. Tudo em 1993, quando a guerra voltou, Portugal era mediador e havia embargo. Nogueira não conseguiu dar explicações.”
O visado, Fernando Nogueira, exercia o cargo de ministro da Defesa Nacional desde 1991. Estava com Cavaco Silva desde o seu primeiro Governo, em 1985, tendo assumido diversas pastas ao longo dos anos – ministro Adjunto e para os Assuntos Parlamentares, ministro da Presidência, ministro da Justiça. Em 1991, Nogueira já tinha sido alvo de uma capa do jornal “O Independente”, sobre uma casa que tinha adquirido e estaria em “situação de privilégio fiscal“. A mesma casa que, segundo o mesmo jornal (também em destaque na capa, uma semana antes), tinha sido comprada em 1986 com a ajuda de um “empréstimo de 3.500 contos” do PSD.
“O escândalo das OGMA prosseguiu por várias semanas e virou conflito institucional: Mário Soares viu no caso a prova de que Portugal violava o dever de neutralidade em Angola”, recorda-se no livro “O Independente – A Máquina de Triturar Políticos” (Matéria-Prima, 2015). Mas Nogueira não se demitiu (nem foi demitido) e, aliás, cerca de quatro meses depois, quando já tinha sucedido a Cavaco Silva na liderança do PSD, foi proposto para o cargo de vice-primeiro-ministro. Ou seja, promoção em vez de demissão.
No entanto, “o Presidente da República [Mário Soares] recusou a promoção. O escândalo das OGMA foi uma das razões invocadas. Por essa altura, a história já trazia na bagagem mais um episódio, igualmente escaldante: em janeiro de 1995, ‘O Independente’ descobriu que as OGMA também tinham reparado helicópteros da Força Aérea indonésia. Nem mais nem menos do que o país que tinha sido elevado à categoria de inimigo nacional n.º 1 depois do massacre de timorenses no cemitério de Santa Cruz”, descreve-se no referido livro.
Dicas para uma remodelação com sucesso
“É fundamental que os convites sejam resolvidos num espaço de tempo muito curto, no máximo um dia, de modo a que a remodelação não caia na praça pública antes de ser apresentada ao Presidente da República e por forma a preservar a dignidade dos ministros cessantes.”
Nas páginas 39 a 42, Cavaco Silva enumera um conjunto de princípios que devem reger uma “remodelação ministerial”, processo que “requer coragem e sangue-frio” e “exige preparação e execução meticulosas nos seus diferentes passos: escolha das pessoas a convidar, formulação dos convites, conversa com os ministros cessantes, proposta ao Presidente da República e divulgação pública. Só um primeiro-ministro provido de autoridade política e moral consegue fazê-la com sucesso”.
O antigo primeiro-ministro ressalva que “apanhar a comunicação social de surpresa com o seu anúncio é um ideal difícil de alcançar”, mas não deixa de escrever que “como as remodelações não se pré-anunciam, fazem-se, o primeiro-ministro, perante pressões mediáticas ou partidárias, tem de negá-las e afirmar a confiança nos ministros até ao dia em que elas sejam concretizadas”.
Tais princípios aqui resumidos no essencial, porém, não terão gerado os resultados pretendidos em 1990, quando “toda a história secreta da remodelação” do Governo de Cavaco Silva apareceu exposta na primeira página do jornal “O Independente” (edição de 5 de janeiro de 1990).
Sob o título “O Caça Ministros”, o jornal revelou então que “Eurico de Melo foi desautorizado duas vezes. Demitiu-se. Está ofendido com Cavaco. Queria sair sozinho. Fernando Nogueira tomou conta da crise. Em três dias alucinantes, sucederam-se os convites. Cadilhe está irado mas Beleza tem lugar prometido. Pimenta recusou o Ambiente. Saiba toda a intriga, o relato das conversas com os ministros e os nomes dos novos secretários de Estado”.
O folhetim em torno dessa remodelação pré-anunciada já tinha sido iniciado na capa da edição de 22 de dezembro de 1989, quando “O Independente” reportou “divisões no Governo e demissões no PSD. Estalou a crise no PSD. Dias Loureiro ofereceu-se para ‘bode expiatório’. Eurico de Melo não quer a remodelação que António Capucho exigiu e Pinto Leite também reclama. Carlos Brito e Brochado Coelho puseram os cargos à disposição. Duas tendências em confronto depois da derrota”.
A maioria absoluta que mantinha no Parlamento não evitou esta “crise no PSD”, provocada pela perda de 36 presidências de câmaras municipais nas eleições autárquicas de 17 de dezembro de 1989. Há mais exemplos de remodelações atribuladas, ao longo dos anos, em que os princípios defendidos agora por Cavaco Silva ou não foram respeitados, ou não garantiram os resultados pretendidos. Num editorial d’”O Independente”, em versão de jornalista, meados de 1992, Paulo Portas sublinhou que Cavaco Silva tanto promovia um ministro como o demitia “como quem despede uma criada“.
Entre outros exemplos, no final de 1993, o mesmo Portas traçou um paralelismo entre Cavaco Silva e Marcello Caetano na forma como promoviam secretários de Estado a ministros que, entretanto, também se poderia aplicar às últimas remodelações do Governo de António Costa. Fazemos questão de transcrever:
“A remodelação de Cavaco Silva lembra claramente a última remodelação de Marcello Caetano. […] Nos seus últimos Governos, já só tinha o tutano do marcellismo. Cavaco Silva escolhe cada vez mais no caroço do sistema, deixando sem sumo nem sabor os seus Governos. Só e triste, Marcello Caetano usou muito a táctica de promover secretários a ministros – solução que, a prazo, cria muitos problemas. […] Cavaco Silva não podia ter copiado melhor o pior período do marcellismo. Já não tem figuras para convidar. Isolado e desconfiado, responde à crise com reservistas. […] Sobem os frágeis, voltam os típicos, trocam os fiéis. Não dá mais nem se pode fazer menos.”
Procurar informação sobre a integridade do escolhido
“A fim de reduzir os riscos de erros na escolha, que têm sempre custos para o Governo e para o país, o primeiro-ministro deve, de forma discreta, procurar obter o máximo de informação pessoal, profissional e sobre a integridade de cada um deles.”
Neste âmbito, embora seja justo reconhecer que muitos casos só foram conhecidos posteriormente, a informação recolhida pelo então primeiro-ministro Cavaco Silva terá sido manifestamente insuficiente. Desde logo em torno de José Oliveira e Costa, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais nos seus dois primeiros Governos, figura central do “escândalo do BPN” que também envolveria Arlindo de Carvalho, outro escolhido por Cavaco Silva para desempenhar o cargo de ministro da Saúde entre 1990 e 1993.
Embora não tenha chegado a ser acusado, Manuel Dias Loureiro (ministro dos Assuntos Parlamentares e ministro da Administração Interna) também foi apanhado em negócios suspeitos na esfera do BPN.
Quanto a Domingos Duarte Lima, não foi governante, mas liderou o Grupo Parlamentar do PSD entre 1991 e 1994 – e Cavaco Silva escreve no livro que “não menos importante do que o homem ou mulher de confiança no partido é a palavra do primeiro-ministro na escolha do líder da sua bancada parlamentar“.
Está a cumprir pena de prisão, na sequência de condenação por crime de burla num caso também relacionado com o BPN. Por entre outros processos, Duarte Lima também está acusado de ter cometido um homicídio no Brasil.
Dever de prestação de contas no Parlamento
“Não deve furtar-se aos debates parlamentares, à prestação de contas e ao confronto sério de ideias e opiniões, e deve instruir os membros do Executivo para que sejam rigorosos no cumprimento da obrigação de responder às perguntas e pedidos de esclarecimento dos deputados, de fornecer-lhes informação e de manifestarem abertura para comparecer no plenário ou em comissões parlamentares.”
No manual sobre a “Arte de Governar”, Cavaco Silva considera que “o primeiro-ministro deve ser exemplar no respeito pelas competências dos outros órgãos de soberania, em particular da Assembleia da República, à qual cabe, nos termos constitucionais, o poder de fiscalização do Governo”. Como tal, “ele próprio não deve furtar-se aos debates parlamentares, à prestação de contas e ao confronto sério de ideias e opiniões”. Sugere assim a ideia de que terá mantido sempre uma presença frequente no Parlamento quando era primeiro-ministro, o que está muito distante da realidade.
É verdade que o debate sobre o “Estado da Nação” foi introduzido em 1993 (na fase final da governação de Cavaco Silva), mas tinha (e continua a ter) uma periodicidade anual. Em 1996, já com António Guterres instalado no Palacete de São Bento, foi criado o formato de debate mensal com o primeiro-ministro no Parlamento. E em 2007, estando José Sócrates na cadeira de primeiro-ministro, esses debates passaram a ter uma periodicidade quinzenal.
Esse formato de periodicidade quinzenal acabaria por ser interrompido em 2020, mediante um acordo entre o PS de António Costa e o PSD de Rui Rio, mas entretanto deverá ser retomado ainda em 2023.
Ora, tal como lembrou recentemente Francisco Louçã, antigo deputado e fundador do Bloco de Esquerda, “Cavaco Silva não ia ao Parlamento discutir com os parlamentares. Ia lá uma vez por ano no debate do ‘Estado da Nação’ e no debate do Orçamento. Não havia debates regulares“. Mesmo descontando o exagero retórico de Louçã, o facto é que a presença de Cavaco Silva no Parlamento não era frequente.
A título de comparação, o primeiro-ministro do Reino Unido marca presença todas as quartas-feiras na Câmara dos Comuns (câmara baixa do Parlamento) para responder a perguntas colocadas pelos respetivos membros/deputados.
Respeito pelas decisões do Tribunal de Contas
“O primeiro-ministro deve instruir os ministros para que sejam rigorosos no respeito pelas decisões do Tribunal Constitucional (…) e do Tribunal de Contas, que tem por missão fiscalizar a legalidade e a regularidade das receitas e das despesas públicas, independentemente de com elas concordarem ou discordarem.”
Na perspetiva do autor do livro, “são entidades independentes com poder legal para condicionar a ação do Governo”. Na antiga pele de primeiro-ministro, porém, o mesmo Cavaco Silva classificou em tempos o Tribunal de Contas como uma “força de bloqueio”.
No XVI Congresso Nacional do PSD, em 1992, Cavaco Silva apresentou a moção da Comissão Política Nacional. Segundo reportou a RTP na altura, “um texto que propõe orientações claras para apreciar os atos e os comportamentos do Presidente [da República], frisou o líder do PSD. Depois, o capítulo dos órgãos fiscalizadores do Estado, uma matéria nova, mas sobre a qual o partido deve lançar um debate público alargado, disse Cavaco Silva. Não está em causa a autonomia desses órgãos, mas as competências do Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas, Procuradoria-Geral da República e Provedor de Justiça têm natureza fiscalizadora e não têm carácter político. A fiscalização política do Governo cabe ao Parlamento, acrescentou o líder social-democrata”.
“No Congresso do PSD (…) volta a apontar ao Presidente da República, à oposição, mas também aos órgãos fiscalizadores do Estado, como o Tribunal de Contas, as ‘forças de bloqueio'”, informou a RTP, remetendo para seguinte citação de Cavaco Silva: “Todos aqueles setores ou políticos que, frontal ou encapotadamente, querem impedir a legislação reformadora e querem bloquear a modernização do país, fazem discursos sobre reformas, mas depois tentam impedir o Governo de as concretizar.”
“Há claramente quem, de forma sistemática, procure fazer um condicionamento político desses órgãos, vendo nas suas decisões ou iniciativas fonte de oposição, instrumento de contrapoder, crítica ao Governo, crítica às decisões que legitimamente dele emanam”, ouve-se ainda Cavaco Silva declarar no referido Congresso Nacional do PSD.
Conhecimentos técnicos indispensáveis dos ministros
“Será importante, na maioria dos Ministérios, que os respetivos titulares possuam os conhecimentos técnicos indispensáveis para lidar com as matérias que lhes digam diretamente respeito.”
Entre as páginas 17 e 18 do livro, Cavaco Silva defende que os ministros devem ter “os conhecimentos técnicos indispensáveis para lidar com as matérias” da pasta que assumem e, nesse sentido, faz questão de advertir: “o que, em regra, não pode ser substituído por assessores de gabinete que, muitas vezes, não estarão ao lado dos ministros para os aconselhar sobre o que fazer ou dizer.”
Na composição dos três Governos liderados por Cavaco Silva entre 1985 e 1995, porém, identificam-se vários casos de ministros que, no momento da nomeação, não dispunham de qualquer formação académica ou experiência profissional diretamente relacionadas com a pasta que lhes foi incumbida pelo então primeiro-ministro Cavaco Silva.
A título de exemplo, pelo Ministério da Defesa Nacional passaram nomes como os de Leonardo Ribeiro de Almeida (formado em Direito), Eurico de Melo (formado em Engenharia Química), Carlos Brito (formado em Engenharia Civil) ou Fernando Nogueira (formado em Direito) que nem o Curso de Defesa Nacional no IDN tinham frequentado.
Com a pasta da Educação sobressai o caso de António Couto dos Santos, formado em Engenharia Química. Após uma série de cargos em sucessivos Governos – adjunto do secretário de Estado do Ambiente (1983-1984), adjunto do ministro da Qualidade de Vida (1984-1985), secretário de Estado da Juventude (1985-1987), ministro Adjunto do primeiro-ministro e da Juventude (1987-1991) e ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares (1991-1992) -, acabou por assumir as funções de ministro da Educação (1992-1993) sem qualquer formação ou experiência para aquele posto em específico.
Pedro Pires de Miranda, ministro dos Negócios Estrangeiros (1985-1987)
Formado em Engenharia Civil, experiência no setor petrolífero
Leonardo Ribeiro de Almeida, ministro da Defesa Nacional (1985-1987)
Formado em Direito, experiência em cargos políticos (nomeadamente o de Presidente da Assembleia da República)
Eurico de Melo, ministro da Defesa Nacional (1987-1990)
Formado em Engenharia Química, experiência em cargos políticos
José Silveira Godinho, ministro da Administração Interna (1987-1990)
Formado em Finanças
Carlos Brito, ministro da Defesa Nacional (1990)
Formado em Engenharia Civil
Fernando Nogueira, ministro da Defesa Nacional (1990-1991, 1991-1995)
Formado em Direito, experiência como advogado e em cargos políticos
Arlindo de Carvalho, ministro da Saúde (1990-1991, 1991-1993)
Formado em Sociologia
Pedro Santana Lopes, secretário de Estado da Cultura (1990-1994)
Formado em Direito, experiência em cargos políticos
Manuel Dias Loureiro, ministro da Administração Interna (1991-1995)
Formado em Direito, experiência em cargos políticos
António Couto dos Santos, ministro da Educação (1992-1993)
Formado em Engenharia Química, experiência em cargos políticos
José Falcão e Cunha, ministro do Emprego e da Segurança Social (1993-1995)
Formado em Engenharia Civil
Teresa Gouveia, ministra do Ambiente e Recursos Naturais (1993-1995)
Formada em História, experiência profissional no setor da Cultura
António Duarte Silva, ministro da Agricultura (1994-1995)
Formado em Engenharia Mecânica, experiência como administrador dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo
Por sua vez, entre 1993 e 1995, Teresa Gouveia exerceu o cargo de ministra do Ambiente e Recursos Naturais. Licenciada em História, começou por trabalhar como bibliotecária do Instituto Italiano de Cultura e transitou depois para a Secretaria de Estado da Cultura, nas funções de técnica superior.
Em 1985, quando estava a desempenhar o cargo de diretora-geral do Ministério da Cultura, foi nomeada como secretária de Estado da Cultura no primeiro Governo liderado por Cavaco Silva. A par da atividade política, Gouveia tinha uma carreira focada no setor da Cultura. Não por acaso, em quase todas as respetivas notas biográficas indica-se que é “gestora cultural” e “política”.
Daí a surpresa de ter sido nomeada para o cargo de secretária de Estado do Ambiente em 1991, no terceiro Governo de Cavaco Silva, tendo na altura que cessar as funções de administradora da Bertrand Livreiros. Posteriormente, em 1993, foi mesmo promovida a ministra do Ambiente e Recursos Naturais. Sem qualquer formação ou experiência reconhecida nesse setor em específico.
Outro exemplo dá pelo nome de Pedro Santana Lopes que foi precisamente o sucessor de Gouveia no cargo de secretário de Estado da Cultura, em 1990, altura em que a pasta tinha perdido o estatuto de Ministério (desde 1985) e voltara à tutela direta da Presidência do Conselho de Ministros. Formado em Direito e dedicado sobretudo à atividade política desde muito jovem (aos 23 anos foi assessor jurídico do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro), o facto é que não tinha qualquer formação ou experiência no setor da Cultura.
Como reagir às críticas do Presidente da República
“Deve evitar responder em público às suas críticas [do Presidente da República] à política do Governo que considere injustas ou erradas e reservar-se para manifestar o seu desacordo na seguinte reunião de quinta-feira ou através de um telefonema pessoal.”
No que concerne ao relacionamento entre os Palacete de São Bento e o Palácio de Belém, Cavaco Silva entende que “embora o primeiro-ministro saiba que o Presidente da República não dispõe de autoridade executiva e não pode publicamente apresentar alternativas políticas ao programa e à ação política do Governo em funções”, ainda assim não deve responder em público às suas críticas.
Em contraponto, o primeiro-ministro deve “reservar-se para manifestar o seu desacordo na seguinte reunião de quinta-feira ou através de um telefonema pessoal, podendo então sublinhar o risco de o Presidente ser utilizado como ‘arma de arremesso’ na luta entre partidos”.
Mas terá Cavaco Silva respeitado essa norma quando ele próprio liderou o Governo (1985-1995), em coabitação com Mário Soares então instalado no Palácio de Belém (1986-1996)?
No dia 28 de março de 1995, o “Telejornal” da RTP1 noticiou (com base numa entrevista de Cavaco Silva ao jornal “Público”) que “o primeiro-ministro [Cavaco Silva] não esconde as críticas diretas ao Presidente da República e dá uma sugestão a Mário Soares: ‘Porque não voltar ao PS e candidatar-se a primeiro-ministro? Assim já poderia conduzir politicamente o país e coordenar a ação dos ministros.'”
“Soares leu a entrevista e parece não ter gostado“, destacou-se na peça da RTP1, embora mostrando o próprio Soares a simplesmente dizer: “Não faço comentários, como sabem.”
A referida entrevista surgiu numa altura em que Cavaco Silva já tinha abandonado a liderança do PSD (sucedido por Fernando Nogueira) e preparava-se para cessar as funções de primeiro-ministro (após uma década no cargo), a cerca de sete meses das eleições legislativas e subsequente término de mandato.
No entanto, o facto é que há mais exemplos de críticas diretas ao Presidente da República, sobretudo ao longo do segundo mandato de Soares no Palácio de Belém, quando também se intensificaram as críticas (e até iniciativas) em sentido oposto.
Ao discursar no encerramento do XVI Congresso Nacional do PSD, a 15 de novembro de 1992, no “Pavilhão Rosa Mota” (assim rebaptizado no ano anterior), Porto, Cavaco Silva criticou a utilização indevida da Presidência da República como “caixa de ressonância de interesses corporativos“. Também já tinha criticado Soares no discurso de abertura, dois dias antes.
“A reunião magna de 1992 serviu para preparar as eleições autárquicas do ano seguinte, mas foram as duras críticas ao então Presidente da República, Mário Soares – cuja recandidatura a Belém tinha sido apoiada pelo PSD -, que fizeram correr tinta. No discurso de abertura do Congresso, o então líder social-democrata pediu a Mário Soares um comportamento semelhante ao dos outros chefes de Estado da Europa. ‘Respeitamos as competências dos outros órgãos, mas ninguém nos peça que fiquemos calados quando tentam interferir nas competências do Governo‘, disse então Cavaco Silva, que criticou todos os que pretendiam ‘transformar uma magistratura de influência numa magistratura de interferência'”, lembrou a Agência Lusa.
“As reações não se fizeram tardar e o PS, em declarações à Agência Lusa pelo então presidente do partido e líder parlamentar, Almeida Santos, mostrou-se ‘indignado’ com o discurso de Cavaco Silva, acusando-o de ‘não respeitar as regras da democracia’. Já a Presidência da República não quis comentar estas declarações do primeiro-ministro, mas soube-se então que este discurso ‘não caiu bem’ no Palácio de Belém, o que não impediu Cavaco Silva de insistir nas mesmas críticas no dia seguinte“, sublinhou.
Entre outros exemplos sobressai ainda o célebre “Deixem-nos trabalhar, deixem-nos trabalhar!”
Data de julho de 1993, quando Cavaco Silva discursou no âmbito de um comício de apresentação dos candidatos do PSD às Câmaras Municipais da Área Metropolitana de Lisboa. “O líder do PSD foi além da política autárquica. Ergueu a voz contra os que, no seu entender, criam obstáculos à governação“, reportou a RTP na altura.
“Entretenham-se nos Palácios, nos almoços, na intriga e na criação de factos políticos… Mas deixem-nos trabalhar, deixem-nos trabalhar para desenvolver Portugal”, vociferou Cavaco Silva – em referência implícita a Soares – que assim, comprova-se mais uma vez, não se “reservou para manifestar o seu desacordo na seguinte reunião (…) ou através de um telefonema pessoal”.