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As explosões de Sócrates, a angústia de Salgado e a aflição de Santos Silva: os interrogatórios e as escutas às três figuras principais da Operação Marquês

Arranca hoje o julgamento mais marcante da história da democracia portuguesa. Entre os protagonistas que se sentarão no banco dos réus, um trio destaca-se dos restantes: José Sócrates - o suposto corrompido -, Ricardo Salgado - o alegado corruptor - e Carlos Santos Silva, que o Ministério Público garante ter sido durante vários anos o "testa de ferro" do ex-Primeiro-Ministro

O dia que José Sócrates tentou evitar por todos os meios tardou, mas chegou, sob a forma de uma manhã histórica para a democracia nacional – aquela em que um ex-Primeiro-Ministro será julgado por atos praticados durante o período de governação.

Durante os próximos anos – será, segundo os especialistas, um julgamento longo -, Sócrates responderá por um total de 22 crimes: 3 de corrupção, 6 de fraude fiscal e 13 de branqueamento de capitais.

A seu lado, no banco dos réus, estará Carlos Santos Silva, que terá a complicada tarefa de convencer a juíza Susana Seca de que a amizade profunda por José Sócrates o levou a comprar – e posteriormente a emprestar-lhe – uma casa milionária em Paris, a pagar-lhe férias faustosas e a custear-lhe um nível de vida apenas ao alcance dos muito ricos. Responde por 23 crimes: 2 de corrupção, 7 de fraude fiscal e 14 de branqueamento.

A completar o trio mais visível estará o ex-banqueiro Ricardo Salgado, pronunciado por 11 crimes, dos quais três de corrupção e oito de branqueamento. Salgado alega duas coisas: inocência e inconsciência. A primeira refere-se ao passado, que diz não ser criminoso; a segunda refere-se ao presente: o ex-Dono Disto Tudo desenvolveu doença de Parkinson e os seus advogados alegam que já não está capaz de se defender.

De seguida, veja o que nos trouxe aqui: as escutas e os interrogatórios judiciais a estas três figuras. Os seus bastidores são descritos ao detalhe no livro “A Sangue Frio“, da autoria do diretor do Polígrafo, Fernando Esteves.

A gaguez de Santos Silva e as fúrias de José Sócrates

No Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), Rosário Teixeira não tem tempo a perder com esterilidades inconsequentes. Quer saber tudo sobre o trânsito de centenas de milhares de euros em dinheiro vivo entre Carlos Santos Silva e José Sócrates, sobre os alegados empréstimos milionários que terão financiado a vida faustosa do socialista em Paris. Carlos Santos Silva, o interrogado, nitidamente agitado, gagueja, atrapalha-se e, entre sorrisos nervosos, tenta responder como pode.

– Havia… portanto… essa minha disponibilidade, digamos, até final de 2014, de um montante dessa ordem de grandeza, dos 500 mil euros e… portanto… se eu já tinha manifestado… digamos… esta minha disponibilidade até ao fim de 2014…

Rosário tenta fixar datas – pode ser útil mais à frente na investigação.

– …ai disse-lhe que até ao final de 2014 o podia ajudar?

– Sim. E com um montante desta ordem de grandeza.

– Qual ordem de grandeza?

– Eu falei nisso. Já ultrapassou, aliás.

– 20 mil? Não estou a perceber.

– 500 mil. Já ultrapassou, que eu já tenho registados 510 nos meus apontamentos.

O procurador do Ministério Público mostra interesse pelos apontamentos. Sem efeito: Santos Silva destruiu-os. Não há, pois, qualquer registo das somas que emprestou a José Sócrates. E isso é um grande, um enorme problema, a que se acrescenta outro, provavelmente ainda mais relevante: Rosário Teixeira está a experimentar sérias dificuldades em acreditar no que escuta. Neste momento já está bem claro na sua cabeça que há ali muitas coisas por explicar – uma convicção que, juntamente com Carlos Alexandre, reforça no interrogatório a José Sócrates realizado logo na sequência da sua detenção no aeroporto de Lisboa:

– Sabe de onde vinham essas posses [de Carlos Santos Silva]? Pode dizer alguma coisa a respeito disso?

A pergunta do juiz mais famoso do sistema judicial português não surpreende o ex-primeiro-ministro, mas a resposta é evasiva. Sentado na cadeira, com os olhos castanhos intensamente fixados nos de Carlos Alexandre, José Sócrates ensaia uma resposta.

O procurador do Ministério Público mostra interesse pelos apontamentos. Sem efeito: Santos Silva destruiu-os. Não há, pois, qualquer registo das somas que emprestou a José Sócrates. E isso é um grande, um enorme problema.

– Eu, a única coisa que conhecia, para ser completamente aberto e honesto como devo ser… não apenas responder com verdade, mas com franqueza, era que o engenheiro Carlos Santos Silva era um homem com posses, ligado desde sempre a empresas na área da consultadoria dos projetos na área da construção civil (…) Eu vivo do meu trabalho e sempre vivi. Nunca tive meios de fortuna e vivi sempre com a ajuda da minha mãe e a primeira consequência que eu queria tirar daqui é que lamento que algumas dificuldades financeiras que eu tenho possam ser aproveitadas contra mim e contra a minha honestidade. Lamento muito que isso seja feito. Quero contestar que o Carlos Santos Silva me tenha entregue através de outras pessoas as quantias que aqui estão porque são exageradíssimas. Mas devo dizer-lhe que é verdade que o Carlos Santos Silva de onde a onde me emprestava dinheiro. É mesmo assim. Porque eu tenho pouco e sei que ele é um homem de posses e de vez em quando pedia-lhe dinheiro.

– Dinheiro esse que devolveu…

– Não, não, é que ainda não devolvi nada…

– Não devolveu nada…

– Não devolvi nada, mas… não devolvi nada, não… vamos lá ver… algumas coisas fui devolvendo ao longo da vida, mas sei que tenho para com ele uma dívida que procurarei pagar. No final de 2012, 2013, tive dificuldades financeiras porque tenho várias… foi uma grande ajuda e eu já pensei até, para ser honesto… aliás, o que tenho pensado para devolver  dinheiro que o Carlos me emprestou… em penhorar de novo a minha casa. A minha mãe tem insistido para que eu não o fizesse porque ela também tem intenções de me fazer uma doação de casa que ela tem, enfim, mas é uma coisa em que ando a pensar. Mas é verdade que ao longo destes últimos anos tenho passado pelas dificuldades financeiras que, pela leitura que faço daqui, os senhores bem conhecem.

Sim, claro que conhecem. Há muito que Rosário Teixeira investiga a relação financeira pouco ortodoxa entre os dois amigos. E agora tem uma oportunidade única para a clarificar. Alexandre lança uma casca de banana para os pés de Sócrates…

– Se pudesse quantificar esses empréstimos, como diz, do senhor engenheiro Silva, computaria isso mais ou menos em que termos?

… e o ex-PM escorrega…

– Pois, isso é muito difícil de dizer, mas eu tenho uma ideia… quer dizer… mas nada que se pareça…

– … está bem, mas que ideia é que tem?

– Que ideia é que tenho…

– Grosso modo…

Para Sócrates tudo aquilo é mesquinho: o juiz, o procurador, as dúvidas, as interrogações sobre o vil metal. Há uma muralha imensa que o separa das pessoas que tem à frente. Mas tem de prosseguir.

– … grosso modo… sabe, senhor juiz, eu quero responder a tudo, não quero que fique nenhuma pergunta por responder, mas eu posso dizer-lhe o seguinte… quer dizer, eu fui confrontado com isto ontem…

– Eu sei, eu sei…

– … e talvez eu pudesse responder… porque eu próprio tenho de fazer…

Para Sócrates tudo aquilo é mesquinho: o juiz, o procurador, as dúvidas, as interrogações sobre o vil metal. Há uma muralha imensa que o separa das pessoas que tem à frente.

Sócrates está confuso, quer ganhar tempo­ – tempo que Alexandre não quer dar-lhe. Tem de o fazer falar,  de o obrigar a fazer já, agora, neste instante, uma viagem pelo seu passado recente sem que saia do lugar.

– … mas tem um apanhado dessas importâncias que lhe foram entregues?

– Quer dizer, tenho uma ideia, mas eu gostaria de eu próprio verificar com os meus papéis, com as minhas faturações, para confirmar porque há aqui muitas coisa que, desculpe, isto não é verdadeiro! Mas eu não sei dizer o que não é verdadeiro e o que é verdadeiro.

Pois. E é essa incapacidade o seu problema maior naquele instante. Porque Rosário e Alexandre não acreditam na virgindade plácida exibida por Sócrates, esmagado por uma circunstância e um cenário que há escassos dias seriam de uma irrealidade profunda.

A dupla tem à sua frente, em cima da mesa despida da sala em que decorre o interrogatório, indícios que considera incontestáveis. Todos apontam no mesmo sentido: que no início de 2011 Santos Silva e José Sócrates decidiram implementar um plano cujo objectivo último era fazer chegar ao ex-PM em forma de dinheiro vivo elevadas quantias pecuniárias alegadamente resultantes de atos de corrupção de  Sócrates no exercício de funções públicas.

(…)

Pai, o problema é que… se não dá para falar destas merdas ao telemóvel porque é que não fazes aquilo em pessoa?”

Agosto de 2012

Carlos Santos Silva adquire um apartamento de luxo em Paris situado na Avenue President Wilson, nº 15. Preço: cerca de 2,8 milhões de euros. Apenas um mês depois, Sócrates que tinha ido viver para a capital francesa na sequência da derrota eleitoral contra Pedro Passos Coelho, deixa a sua casa do bairro 16 e muda-se para o imóvel, que habita entre Setembro de 2012 e Julho de 2013, altura em que, já depois de um investimento de 73.698 euros na compra de mobiliário, se decide que a casa precisa de umas obras. Mas o que parece ser uma decisão pacífica revelar-se-á um autêntico inferno por causa dos atrasos constantes do gabinete de arquitetura contratado (e ao qual seria pago um total de 480 mil euros).

Sofia Fava, ex-mulher de Sócrates, é obrigada a ir morar com Duda, o filho de ambos, para um aparthotel, deixando as suas roupas e restantes pertences na President Wilson. Por causa disso, as suas conversas com Sócrates tornam-se cada vez mais azedas. A sua ex-mulher não percebe porque demoram tanto as obras, está farta da rotina do hotel – e já não aguenta as reclamações de Duda que, face à impotência exibida pela mãe, decide ligar ao pai.

Quinta-feira, 12 de Dezembro de 2013

São 17h48 quando o telefone de José Sócrates toca. Do outro lado da linha está Duda. Que não tem coisas agradáveis para lhe dizer.

– Pai, o problema é que… se não dá para falar destas merdas ao telemóvel porque é que não fazes aquilo em pessoa? Pai, já estou farto de estar a viver num…

Sócrates tenta pôr um pouco de água na fervura.

– Eu sei, eu sei. Mas agora está quase.

Eduardo insiste. Tem dúvidas sobre as intenções do pai relativamente ao futuro da casa.

– Porque depois, o que é que vai acontecer lá?

O ex-PM é apanhado de surpresa.

– O que é que vai acontecer?? Então, vocês mudam-se para lá, pá! Não estou a perceber… qual é a tua pergunta? A casa está quase pronta!

Eduardo está longe de acreditar nisso.

– Pai, está quase pronta para ser vendida… Ou pelo menos foi isso que tu me disseste. Mas já ouvi tantas teorias diferentes, não sei… pronto, não posso falar coisas assim ao telemóvel, por isso não vou falar.

Sócrates irrita-se. Está farto de tanta pressão. Anda há meses a tentar, sem sucesso, resolver o assunto. Se há culpados, ele não é seguramente um deles. Não vai deixar que o continuem a massacrar.

– Desculpa lá, mas o que é que eu te disse?; que ia ser vendida? Quem é que te disse isso?? Desculpa lá, não percebo! Já te disse que vocês vão para lá assim que estiver pronto, pá! Mas o que é que eu tenho de dizer mais, pá?! O que é que eu tenho de dizer mais???? Já pedi desculpa, pensei que aquilo demorasse menos. Passa-me aí à mãe, por favor…

Sofia Fava pega no telefone. Mais calmo, Sócrates pede-lhe para ir ver pessoalmente a evolução da obra. Ela resiste.

– Eu vou lá ver, mas o dono da obra é que devia ir lá ver porque não vai ser só mais uma semana. Aquilo está exatamente como estava quando tu lá estiveste.

– O dono da obra já falou para lá! Eu próprio falei, está bem? O que eu teço é para ires lá ver amanhã, se faz favor. Eu contava ir aí esta semana mas estou doente. Ninguém compreende isso também? Estou doente, pá! Tenho estado com febre.

– Mas não és tu quem tem de vir.

– Sou eu que tenho de lá ir, sou eu, pá. Aqui têm feito o que puderam. Eu tenho de ir lá também. Mas infelizmente não posso, por isso estou a pedir: vai lá tu e tem uma conversa com ele dizendo que tem de ter isso pronto antes de tu te vires embora. Queres que marque lá com o arquiteto para amanhã?

Sofia resiste de novo…

– Eu acho que o dono é que devia falar com o arquiteto, não sou eu.

… e Sócrates explode definitivamente.

– Já falou!!!!! Porra!!!!! Quantas vezes é que eu tenho de te dizer?????!!!!!

– Não é falar, é ir lá.

– Não posso ir lá! (…) Tu não sabes o que são obras? As coisas nunca são de acordo como planeado!

A chamada termina tensa. Sócrates tem de resolver aquilo de uma vez por todas, de exigir a Carlos Santos Silva que encoste o arquiteto à parede, que o ameace, que faça o que quiser, mas que acabe com aquele pesadelo. São 18h03 quando marca o número do amigo.

– Tenho lá a malta à beira de um ataque de nervos com aquela merda [casa em Paris].

Carlos sente-se incapaz de resolver o assunto, não consegue falar com o arquiteto, que não lhe atende as chamadas, mas que vai atender. E atende mesmo, uma vez que passadas duas horas Santos Silva liga de volta a Sócrates, com a garantia de que até dia “18 ou 20” a obra estaria pronta.

Há muito que os dois amigos falavam sobre a remodelação do apartamento. Numa das conversas telefónicas mais valorizadas pelo Ministério Público no âmbito da Operação Marquês, a dupla discute detalhes sobre o chão. Santos Silva quer orientações.

– Olha, lá o senhor…

– … sim…

– Aquela cor que… tu… que foi escolhida para o chão, na opinião dele devia ser um bocadinho mais clara.

– Está bem.

– Aquilo que tu escolheste é muito escuro. O que é que lhe digo?

– Está bem, então… que faça.

– Mas ele tem de decidir como é que tu queres não é?

– Sim. Mas que faça rápido, não é?

– Sim, sim, sim, ok…

– Porra. Foda-se! Já estamos no…

– Vou ligar-lhe.

– Pois, diz-lhe já, pá!

– Ele já pôs a dúvida há dois ou três dias, eu é que não…

– Eh pá, está bem, mas então responde já, que eu quero lá ir…

– Então fica a outra cor e ele que te faça isso.

– Sim, que faça o que ele quer, mas que faça depressa.

– Está bem. Está tranquilo.

– Mas não e muito mais claro, pois não?

– Não. Ele até mandou uma foto.

– Está bom.

– Ok, vou já tratar disso.

No interrogatório a José Sócrates aquando da detenção, o juiz Carlos Alexandre confrontou-o com o áudio deste diálogo…

– Senhor engenheiro, não posso deduzir desta conversa que aquilo que lhe é pedido não é uma sugestão, é um consentimento?

… mas Sócrates valeu-se da retórica, uma das suas qualidades mais unânimes.

– Não. Não, não pode. Porque… o que me é pedido é a minha concordância para uma alteração de uma sugestão que eu próprio tinha dado. E talvez ele até pensasse que… que eu tenho melhor gosto. E é muito importante que se perceba o seguinte: há muitas pessoas que por gentileza… referem… o verbo… poder, em vez de dever. Este é talvez um dos casos. Quando o engenheiro Carlos Santos Silva me pergunta se pode alterar, no fundo o que ele está a perguntar é se deve alterar. É uma forma de nos dirigirmos às pessoas, muitas vezes por gentileza. Perguntamos: “Posso alterar?” no sentido seguinte: “Achas que devo alterá-lo? Estou a fazer mal ao dar-lhe autorização para essa alteração?”

A explicação não comoveu Carlos Alexandre, que na sequência do interrogatório escreveu o que se segue: “Apesar de estar registado em nome de Carlos Silva, o referido apartamento sempre foi, na realidade, apenas ocupado por José Pinto de Sousa, que ocasionalmente o decidia emprestar a terceiros, que decidiu a realização das obras no mesmo e escolheu as alterações a serem feitas e que decidiu ainda colocar o mesmo em venda, quando a imprensa portuguesa começou a suscitar suspeitas sobre as suas relações com o Carlos Silva.”

*******

 

Ricardo Salgado: Estou chocado (…), nunca vi tanta mentira junta.

 

 

 

Quarta-feira, 18 de Janeiro de 2017

Pelas 10 da manhã Ricardo Salgado entra no edifício do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), em Lisboa. Vestido com um fato negro e uma gravata castanha, prepara-se para ser questionado durante várias horas por Rosário Teixeira e Paulo Silva, a dupla que tem dedicado nos últimos anos a promover uma espécie de striptease empresarial e financeiro da sua vida, provocando sucessivas ondas de choque na sociedade portuguesa, espantada com a lascívia quase pornográfica com que à mesa do ex-líder do BES se falava de milhões como se estivessem em causa poucos tostões.

(…)

Sentado a cerca de um metro e meio de Salgado, Rosário Teixeira não tem tempo a perder.  Olha para o ecrã do seu portátil e durante 31 minutos passa à leitura da indiciação contra aquele que já foi o homem mais poderoso do país. À medida que Rosário avança, Ricardo Salgado alterna entre o choque, a surpresa, o espanto e o horror. Passa a mão pelo cabelo. Tira os óculos para esfregar os olhos, em aparente desespero. É muita coisa junta. É a OPA da Sonae à PT. É o “saco azul” do GES. São os pagamentos a Carlos Santos Silva. São as transferências milionárias para Zeinal Bava. São os dinheiros para Henrique Granadeiro. É a relação com Hélder Bataglia e José Sócrates. É…

A dada altura, Salgado deixa de tomar notas do que o procurador vai dizendo. Parece exausto. Põe os cotovelos em cima da mesa e entrelaça as mãos, encobrindo a zona da boca e do nariz. Até que Rosário termina e chega a sua hora de falar. Inspira, expira e, claramente envolto numa nebulosa emocional, dá início ao depoimento mais dramático da sua vida.

– Sr. procurador, devo dizer que estou profundamente chocado, profundissimamente chocado com tudo isto. Nunca vi tanta mentira junta. Peço desculpa por o estar a afirmar, mas julgo que o sr. procurador já me conhece há algum tempo e sabe que nunca deixei de responder às questões, mesmo quando estava com a faculdade de o poder fazer. Eu vou argumentar na medida do meu conhecimento, uma vez que se tratam de operações que já vêm de longa data. Acredito que estou em condições de reverter a totalidade das acusações que estão aqui implícitas.

Confirma-se: Salgado não se refugiará no silêncio. Mas não consegue prosseguir sem uma condição prévia…

– O que lhe ia pedir era um copinho de água porque de facto este choque que sofri merece…

Os trabalhos são interrompidos por alguns minutos, para que, juntamente com os seus advogados Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squilacci, o ex-banqueiro analise a indiciação com mais detalhe. Ao regressar, pede para fazer um statement inicial, como já fizera na comissão de inquérito ao BES.

– Posso ter cometido erros de julgamento, mas não erros de princípios. Não são verdadeiras as afirmações de qualquer tipo de relação de influência no primeiro-ministro da altura, engenheiro José Sócrates, em relação a qualquer operação que fosse. Nunca falei com o José Sócrates sobre a história da PT, sequer. E muito menos procurar entregar valores a um primeiro-ministro, portanto, subornos, directa ou indirectamente, por qualquer outra forma. Também gostava de referir que ilícitos praticados em relação a administradores da PT por mim ou pelo grupo não foram cometidos.

“Sr. procurador, devo dizer que estou profundamente chocado, profundissimamente chocado com tudo isto. Nunca vi tanta mentira junta. Peço desculpa por o estar a afirmar, mas julgo que o sr. procurador já me conhece há algum tempo e sabe que nunca deixei de responder às questões, mesmo quando estava com a faculdade de o poder fazer.”

Não é essa a convicção de Rosário Teixeira, claro. O procurador do Ministério Público (MP) conhece Ricardo Salgado há muito. Já o apanhou a fugir aos impostos. Já lhe ordenou buscas a casa e ao escritório. Já o interrogou noutros processos. E em todos encontrou respostas feitas de múltiplas incoerências. Não quer protagonizar uma  crucificação masoquista de Salgado, até porque não é esse o seu estilo. Mas leva algumas certezas gravadas no disco rígido do seu portátil.

Uma delas diz respeito à polémica OPA falhada da Sonae à PT. Rosário Teixeira acredita que o ex-líder do BES esteve no centro de todas as conspirações para frustrar as expectativas de Belmiro de Azevedo. Não lhe faltavam motivos: o BES era o terceiro maior acionista da empresa e controlava a sua administração. Sabia-se que era Salgado quem escolhia as lideranças da empresa. Era o dono sem que o fosse. Miguel Horta e Costa, o CEO entre abril de 2002 e abril de 2006, era seu amigo. Henrique Granadeiro, que viria igualmente a liderar a operadora, também. Na mente de Rosário, a estratégia de Salgado para deitar Belmiro ao tapete assentava em quatro linhas centrais:

– Apoiar a administração da PT na oposição à OPA;

– Persuadir os restantes accionistas a votarem contra a ofensiva da Sonae e financiar accionistas contrários à OPA para que reforçassem a sua participação;

– Financiar novos acionistas com o objectivo de reforçar o voto contra. Aconteceu com Joe Berardo e com a Ongoing;

– Se tudo isto falhasse, garantir que José Sócrates bloquearia, através da golden share estatal ou a partir das acções da CGD (que detinha 5,1% da empresa) uma eventual vitória da Sonae. Tudo em nome do “interesse nacional” que alegadamente representaria possuir os centros de decisão em mãos portuguesas.

Na realidade, o medo de Salgado era simples: sabia que a probabilidade de Belmiro de Azevedo vender aos espanhóis da Telefónica os 50% que a PT detinha na operadora brasileira Vivo por cerca de 2 mil milhões de euros era forte. E o GES queria continuar a crescer no Brasil.

Terá sido então que, de acordo com o MP, Ricardo Salgado e José Sócrates combinaram o pagamento de uma quantia através de Hélder Bataglia a dois alegados testas-de-ferro de José Sócrates: o seu primo  José Paulo Pinto de Sousa e o amigo de sempre, Carlos Santos Silva.

O primeiro alegado pagamento terá acontecido em maio de 2006, apenas três meses depois do fracasso da operação. O valor? Seis milhões de euros. Rosário crê que possui indícios fortes, mas quer dar a oportunidade a Salgado para se explicar.

– Em primeiro lugar ia-lhe pedir para nos falar dessa questão da OPA sobre a PT. Como é que teve conhecimento dela?

– Senhor procurador, posso-lhe dizer que este aspecto da OPA à PT é o mais fácil para mim de explicar. Não era necessária nenhuma intervenção política (…) se quisermos fazer um esforço de memória é muito fácil relembrar as informações que saíram na época logo que foi conhecida a OPA, em fevereiro de 2006, em que imediatamente saíram duas afirmações que explicam muita coisa. A primeira é que a OPA não passa e isso era opinião dos media de economia. A segunda é do Paulo Azevedo, que vem referir que a participação da PT no Brasil não é estratégica e diz de caras que a operação no Brasil é para ser cedida.

– Em nenhum momento foi visualizada a possibilidade de a OPA ter sucesso?

– Não. Os acionistas portugueses privados representavam no total cerca de 14% do capital da PT. Os acionistas alinhados, vamos assim dizer. Era o BES, que tinha 8,6%, era a Ongoing, que tinha 3%, era o Berardo, que tinha 2%, eram os minoritários representados por um advogado, que tinham 1%. Portanto estavam ali 14%.

A força de Salgado não se esgotava nos “alinhados”. Carlos Slim,  magnata mexicano das telecomunicações, com grandes interesses no Brasil estava longe de desejar a entrada em força da armada espanhola no mercado brasileiro. Na antecâmara da OPA, veio a Portugal e almoçou com Salgado no hotel Tivoli. Terá sido nesse momento que comunicou ao então líder do BES que os cerca de 4% de capital que representava na PT estavam com ele para o que desse e viesse.

– Com Carlos Slim o grupo alinhado dos portugueses ia a 18%. Nós sabíamos que as assembleias gerais da PT normalmente tinham dificuldade em ter 50% do capital representado. Isto mostra que o grosso dos acionistas da PT estavam no exterior. Portanto, dizer que o BES manipulou essa operação toda em seu benefício é esquecerem-se que os grandes investidores institucionais sempre estiveram a acompanhar muito de perto a PT e logo por acaso alguns desses investidores também eram investidores no BES.

Rosário não está satisfeito com a explicação ensaiada. Quer mais.

– Mas [junto] desses investidores internacionais, é ou não verdade que foi feita quase uma espécie de road show pela administração da PT?

– Mas ó senhor procurador, isso faz parte das regras do jogo… Isso era o papel do Zeinal Bava, que tinha uma excelente relação com os investidores institucionais internacionais.

– E a posição da administração da PT contra a OPA não foi uma decisão que o senhor tivesse apoiado?

– Senhor procurador, eu gostava de tentar… eu hoje em dia não sei se consigo convencer as pessoas da bondade do meu comportamento e do comportamento do Grupo. Nós defendíamos os centros de decisão em Portugal. Eu tinha tido a oportunidade de vender o controlo do BES quando o Santander comprou o grupo do António Champalimaud. E eu disse que não podia vender o controlo de uma instituição a outro banco espanhol. O nosso principio era de defesa dos centros de decisão em Portugal. Portanto estava contra a OPA porque sabíamos que a Telefónica ia comprar a Vivo.

Na assembleia geral apareceu 66% do capital, bem mais do que o costume. Para chumbar a OPA bastavam 22,2%. Resultado final: 46% dos acionistas presentes chumbaram a operação. Salgado venceu Belmiro por knock out, mas agora, mais de uma década depois, Rosário Teixeira não se intimida com a aparente blindagem argumentativa do ex-banqueiro. Exige mais minúcia.

– É ou não verdade que com investidores como o Berardo, a Visabeira, a Ongoing…

“Senhor procurador, eu gostava de tentar… eu hoje em dia não sei se consigo convencer as pessoas da bondade do meu comportamento e do comportamento do Grupo. Nós defendíamos os centros de decisão em Portugal.”

– …A Visabeira julgo que nessa altura ainda não tinha uma participação. Julgo, não tenho a certeza.

– Entrou durante o ano de 2006. Quando chega à assembleia geral já está no capital.

É esse o ponto de Rosário: está no capital, sim, mas financiada pelo BES – e o mesmo aconteceu com Berardo e Nuno Vasconcellos, líder da Ongoing. Salgado tenta desconstruir a narrativa do MP.

– A Ongoing tinha 3% (…) O Nuno Vasconcellos pertence a uma família… para já, o pai do Nuno Vasconcellos, o Luís Vasconcellos, era o braço direito do Francisco Balsemão no grupo Impresa. E o Vasconcellos é Rocha dos Santos do lado da mãe. Eram os antigos donos da Sociedade Nacional de Sabões e portanto tinham capitais e foram investir os capitais (…) Isto para dizer que tinham recursos próprios que lhe permitiam estar nesse posicionamento em relação à PT. Em relação ao Berardo, ele era nosso cliente muito antes disso e o principal financiamento do Berardo foi orientado para as ações do BCP, que na altura tinham bastante valor. Peço-lhe que acredite: nós tínhamos a certeza que a OPA ia ser chumbada. Nunca falei com o José Sócrates a pedir o que quer que fosse.

Paulo Silva e Rosário Teixeira insistem no tema PT, mas Salgado parece mais interessado em começar a falar de Hélder Bataglia. Sabe o que lhe fez o ex-amigo. Quer deixar bem claro que, à denúncia dos seus supostos pecados, não juntará uma confissão – e que substituirá a sua morte anunciada por uma ressurreição laboriosamente  arquitectada. Mas por enquanto Ricardo Salgado tem de guardar na gaveta a ira contra Bataglia – quem manda no curso do interrogatório é Rosário. E o procurador quer ir por outro caminho.

Nunca houve o risco de a OPA poder ter sucesso?

– Também não posso fazer essa afirmação categoricamente (…) Se a entidade que lançou a OPA tivesse aumentado o preço eu não poderia responder pelos outros que iriam subscrever ou não.

“Em relação ao Berardo, ele era nosso cliente muito antes disso e o principal financiamento do Berardo foi orientado para as ações do BCP, que na altura tinham bastante valor. Peço-lhe que acredite: nós tínhamos a certeza que a OPA ia ser chumbada. Nunca falei com o José Sócrates a pedir o que quer que fosse.”

(…)

Ricardo Salgado está impaciente. Quer começar a falar sobre Bataglia. Faz uma terceira tentativa. Será desta? Aparentemente sim.

– Houve dois grandes culpados da catástrofe do GES em Angola. Um foi o sr. Álvaro Sobrinho, o outro foi o sr. Hélder Bataglia. Mas no início o sr. Hélder Bataglia era um homem genial, genial.

Fora Bataglia quem, em nome do GES, coordenara a operação internacional de financiamento da economia angolana depois da guerra civil que dizimou o país. A partir de então, o empresário tornou-se um príncipe em Luanda.

– O prestígio do Hélder Bataglia subiu vertiginosamente: era praticamente o one man show. O seu  prestígio era tal que conseguiu com toda a facilidade obter a licença bancária para o BESA.

“Houve dois grandes culpados da catástrofe do GES em Angola. Um foi o sr. Álvaro Sobrinho, o outro foi o sr. Hélder Bataglia. Mas no início o sr. Hélder Bataglia era um homem genial, genial.”

A partir do momento em que começou a operar em Angola, o BESA não parou de crescer. E Bataglia achava que tinha de ser premiado por isso. Paralelamente, exigia cada vez mais dinheiro a Salgado, alegadamente para expandir os negócios da Escom na exploração de petróleo em Angola.

– Os pagamentos ao Hélder Bataglia eram feitos com esta finalidade: obtenção de poços de petróleo. De repente, eu devo dizer-lhe que descobrir depois do colapso que por trás das nossas costas estava a passar-se um filme de terror em que os recursos eram desviados para outras finalidades… Eu nunca na minha vida pensei que isso pudesse acontecer!

Rosário Teixeira não acredita na aparente fragilidade do seu interlocutor. No momento em que falam, Salgado é pouco mais que um náufrago de braço esticado, mas à data dos acontecimentos era ele o comandante do navio. Conhecia todas as rotas, todos os mapas, todos os destinos. Não será, pois, o procurador quem, num exercício de inspiração apostólica, dará a mão ao ex-Dono Disto Tudo.

– Porque é que pagaram sem verificar se isso [os negócios do petróleo] tinha ido avante ou não?

Salgado solta uma gargalhada tímida.

– Porque é que pagámos? A sua questão é perfeitamente correta. Nós estávamos convencidos de que as coisas estavam a acontecer. Só em 2009 comecei a ter um cheirinho de que a coisa estava a complicar-se. Só um cheirinho. Para nós, esses fundos estavam a ser orientados para essas operações concretas.

“Os pagamentos ao Hélder Bataglia eram feitos com esta finalidade: obtenção de poços de petróleo. De repente, eu devo dizer-lhe que descobrir depois do colapso que por trás das nossas costas estava a passar-se um filme de terror em que os recursos eram desviados para outras finalidades… Eu nunca na minha vida pensei que isso pudesse acontecer!”

Em 2005 Ricardo Salgado acordou com Bataglia o pagamento de vários milhões de euros de compensação até 2010. Deixou-o cinco anos de mão estendida, adiando consecutivamente as transferências repetidamente solicitadas. No interrogatório a que fora sujeito alguns dias antes, Bataglia acusou o ex-líder do BES de protelar deliberadamente o pagamento para o ter permanentemente na mão. Paulo Silva quer conhecer melhor a história, uma vez que esta é fulcral no afastamento gradual entre as duas figuras.

– Em novembro de 2010, quando cumprem com o pagamento deste contrato de 2005, quem é que deu ordem para pagar ao sr. Hélder Bataglia?

– A ordem foi através da Entreprises. Deve ter sido o responsável pela Entreprises.

– O sr. Hélder Bataglia foi tentar fazer executar o contrato. A entidade que assina isto é o sr. Hélder Bataglia e quem recebe é uma tal Green Emerald, que eu não sei se o sr. dr. conhece…

Olhe, minha é que não é! É do Hélder Bataglia.

– Como é que o sr. Hélder conseguiu fazer cumprir este contrato? Com quem é que ele teve este compromisso inicial em 2005 para receber isto, quem é que lhe fixou estas condições em 2005 e quem é que lhe deu as condições em 2010 para ele fazer o pagamento?

– A proposta veio do Hélder Bataglia e é normal que o pagamento só fosse feito ao fim de um tempo para dar tempo ao tempo para se verificar se ele estava a atingir os objectivos do contrato.

Em 2005 Ricardo Salgado acordou com Bataglia o pagamento de vários milhões de euros de compensação até 2010. Deixou-o cinco anos de mão estendida, adiando consecutivamente as transferências repetidamente solicitadas. No interrogatório a que fora sujeito alguns dias antes, Bataglia acusou o ex-líder do BES de protelar deliberadamente o pagamento para o ter permanentemente na mão.

– Por aquilo que percebo, se foi pago quase junto à verba máxima a que tinha direito, foi um cumprimento quase total.

– Estávamos convencidos disso. Nós não tínhamos condições de verificar o terreno mas há uma coisa que nós verificávamos: é que grupo em Angola estava a ter uma expansão brutal na área financeira e não financeira. Ó senhor procurador, os maiores imóveis de Angola foram construídos pela Escom! Depois se foram roubados ou não são outros 500, mas estavam lá fisicamente. Ele desenvolveu projetos imobiliários em Talatona, no Soio, em Brazaville. O homem não parava e portanto não se podia imputar ao Hélder Bataglia a responsabilidade de não ter cumprido com aquilo que estava assinado.

Paulo Silva insiste. Quer que Salgado reconheça que foi ele o responsável direto pelo contrato…

– Assinado com quem? Quem é que lhe estabeleceu estas condições?

– Foi a Enterprises. Foram propostas pelo Hélder e eu dei-lhe o agreement.

Rosário reentra na conversa.

– É na sequência desse agreement que vem a ser feito esse contrato?

– Exatamente. Agora, era preciso ter-se verificado… não se verificou nada. O conceito era este: concessões que se estavam a verificar umas melhores do que outras mas que estavam a ser verificadas. Só aquelas que nós não conseguimos ter a certeza, que muito mais tarde é que soubemos, os poços de petróleo afinal não tinham sido…

Paulo Silva, de novo…

– Em 2010, quando há o pagamento, como é que ele é efectuado? É porque o sr. Hélder veio bater-lhe à porta e disse: “Dr. Ricardo, há um contrato assinado há cinco anos que já se venceu e eu quero a minha parte” e o sôtor teve de cumprir? Assinou um contrato a dizer que tinha de pagar 2,5 milhões de euros como valor fixo e o outro valor era variável. Foi o sôtor que avaliou o outro valor variável em 7,5 milhões?

Salgado pressente o cerco…

– Não fui eu. Foi uma decisão da área administrativa [na Suíça] em função do contrato. Eu depois não tive, não tinha tempo para olhar para…

– Sôtor, estamos a olhar para entre 2,5 milhões e 10 milhões. Se o Schneider [gestor financeiro do GES na Suíça]estivesse a olhar pelos interesses do grupo dizia 2,5 milhões… digo eu. Ou o sr. Schneider conhece a realidade do que estava a acontecer em Angola? Se o senhor diz que não tinha, acha que ele tinha?

– Julgo que não… Mas acreditava no Hélder Bataglia.

– Então acha que foi o sr. Hélder Bataglia que chegou à beira dele e dizer que o valor variável seriam 7,5 milhões?

– Disse que queria ver cumprido o contrato…

– E pode ter sido ele a sugerir que isto ficasse nos 15 milhões?

– Pode ser que ele tenha dado essa sugestão, que o Schneider me tenha perguntado o que eu achava mas já não me recordo.

– Mas já acha mais plausível que possa ter acontecido.

– Ó senhor inspetor, o BES tinha 80 biliões de ativos, tinha 50 biliões de crédito, tinha 40 e tal biliões de depósitos. Eu não tinha tempo para tratar administrativamente desse assunto. Há falhas? Há. Não tenho dúvida. Agora, pode ter a certeza de que esses recursos para nós deviam ter sido investidos em Angola pelo esforço que o Hélder Bataglia estava a desenvolver, que nos parecia que estava a acontecer e não subrepticiamente passar-nos por detrás das costas e estarem a ser passados para não sei quem.

“Ó senhor inspetor, o BES tinha 80 biliões de ativos, tinha 50 biliões de crédito, tinha 40 e tal biliões de depósitos. Eu não tinha tempo para tratar administrativamente desse assunto. Há falhas? Há. Não tenho dúvida.”

Paulo Silva ainda não está satisfeito. Quer que Salgado assuma por completo a operação.

– Acredito [que a parte administrativa] tivesse essa disponibilidade de fazer os pagamentos. Paga lá os 15 milhões, sete e meio mais sete e meio. Mas a parte de fixar entre 2,5 e 10, fixar 7,5 não é administrativa, é de administração.

– Senhor inspetor, pode-me dar as lições de administração que quiser…

– Não quero, sôtor.

– Oque lhe posso dizer é que pura e simplesmente não tinha tempo para acompanhar…

Rosário impacienta-se. Têm de seguir em frente e Ricardo Salgado parece estar a chocar contra um muro.

– Quem negociava consigo era o senhor Hélder Bataglia. Admite que o Jean Luc [Schneider] lhe tenha dito: “O cavalheiro quer 7,5 desta parte variável, e o senhor ‘paga lá os 7,5, vá’” e estabeleceram assim um acordo para lhe pagar os tais 15 milhões?

– Estava dentro do contrato e portanto certamente que houve uma decisão que foi tomada e eu acredito que o Jean Luc Schneider, que era um homem ponderado, me tivesse consultado sobre essa matéria e que eu lhe tenha dito “olhe veja lá, se está ao abrigo do contrato”…

– Acreditando que os tais investimentos na área da concessão dos blocos de petróleo, da exploração mineira e dos imóveis estavam desenvolvidos…

– Alguma coisa estava desenvolvida. Agora, eu gostava de lhe recordar, porque estou a ver muitas dúvidas do senhor procurador e do senhor inspetor sobre a Escom…

– Já lá vamos…

Não. Ricardo Salgado quer falar já sobre as alegadas mentiras que Bataglia terá contado a Rosário, sobre a forma como terá sido enganado, sobre os esquemas da dupla Bataglia-Sobrinho, que juntos formam, no seu entender, uma serpente cuja mordidela tem resistido estoicamente ao soro da verdade. Da sua verdade, pelo menos.

– Deixe-me só falar de 2010. Em 2010 foi feita uma avaliação da Escom que não foi ordenada por mim, foi ordenada pela área não financeira do grupo…

Paulo Silva está familiarizado com o assunto.

– Aí teve oportunidade de ver o que foi feito e não foi feito.

– Exatamente. Eu tenho aqui a avaliação, posso-lhes dar. A nossa parte foi avaliada em 518 milhões de dólares. Podem dizer: o avaliador era o BESI, não conta. O avaliador era aprovado pelo Banco de Portugal e pelos auditores. Portanto utilizavam regras estritas de avaliação.

A ideia era vender a empresa aos angolanos. Mas quando estes tomaram conhecimento da avaliação financeira – que Bataglia qualificou, no seu interrogatório, como “salgada” – acabaram por recuar. Não aceitavam aquele valor. Isto apesar de já terem pago um sinal. Resultado: nova avaliação e o preço desce radicalmente para 300 milhões de euros. Mas os angolanos continuavam a resistir. E Bataglia – que tinha 33% da empresa, mas nada recebera… – não explicava porquê. Quer na comissão de inquérito ao BES, quer no interrogatório a Rosário, afirmou que Salgado o manteve à distância no negócio – e que não gostou nada que isso tivesse acontecido. Rosário Teixera quer confirmar a acusação do luso-angolano…

– Então o sr. Hélder Bataglia não participou nestas negociações de venda da Escom?

– Participou! Também achei inusitado que ele tivesse dito à Comissão Parlamentar de Inquérito que quem tinha negociado era eu. Mentira! Eu não negociei nada. Nunca fui a Angola para negociar com os angolanos sobre isto. Eu só tratava da área financeira.

– Até constou que o senhor teria ido posteriormente a Angola falar com o Presidente sobre este contrato…

Apanhado em falso, Salgado tenta recuperar fôlego. Lança-se a Álvaro Sobrinho…

– Exatamente… Mas já estamos a falar em Outubro de 2013… Em Outubro de 2013, quando fui lá depois de ter sido detectado o buracão no banco provocado pelo Álvaro Sobrinho (e hoje não tenho dúvida de acrescentar o nome do Hélder Bataglia). Eu peço desculpa por aquilo que lhes vou dizer, é uma frase inglesa: “Birds of the same feather fly together” [pássaros com as mesmas penas voam juntos]. Eu não tenho dúvida nenhuma de que nós fomos completamente enganados em relação às duas coisas, ao BESA e à Escom. E que o Hélder Bataglia foi determinante nisso. Portanto, quando me falam agora de acusações ou suposições de que mandei pagar através do Hélder Bataglia ao José [Paulo] Pinto de Sousa… O Hélder Bataglia falou-me uma vez neste José Pinto de Sousa, que estava em Angola, porque havia lá terrenos destes familiares do Sócrates e tinham umas salinas. Foi a única coisa que eu soube.

O primo de José Sócrates é um tema que interessa ao Ministério Público. Rosário acredita que José Paulo – também conhecido por “Gordo” devido ao seu generoso perímetro abdominal – terá sido o primeiro testa-de-ferro de José Sócrates. Isto porque ao seguirem o rumo do dinheiro identificaram um conjunto de transferências no total de 5,4 milhões de euros, feitas para as contas de Carlos Santos Silva na Suíçapor parte do familiar José Sócrates.

“Eu peço desculpa por aquilo que lhes vou dizer, é uma frase inglesa: “Birds of the same feather fly together” [pássaros com as mesmas penas voam juntos]. Eu não tenho dúvida nenhuma de que nós fomos completamente enganados em relação às duas coisas, ao BESA e à Escom. E que o Hélder Bataglia foi determinante nisso.”

Em interrogatório, Santos Silva justificou o dinheiro com um pretenso negócio imobiliário realizado na cidade angolana de Benguela – a urbanização das Salinas de Chamune -, mas não convenceu Rosário Teixeira, que terá provas de que a Gunter – a sociedade offshore de onde partiram as transferências e que pertence a José Paulo Pinto de Sousa – terá sido “alimentada” por outra offshore. E quem controlava esta segunda? Hélder Bataglia. O procurador tenta esmiuçar a questão.

– É capaz de nos dizer em que circunstâncias ocorreu essa conversa [com Hélder Bataglia]?

– Foi uma conversa de ocasião, uma coisa qualquer em que me diz: “Ah, tenho aqui o Pinto de Sousa, que é primo do Sócrates…” Eu não sabia que o Hélder Bataglia tinha relações familiares tão estreitas com José Sórates, não fazia a mais pequena ideia!

– Só soube disso recentemente?

Salgado não evita um sorriso pérfido.

– Só! Já depois o colapso. O que vos quero dizer é que em relação a este filme de terror que ocorreu em Angola, o do banco julgo que já sabem, nós conseguimos que o Presidente da República, pela consideração que tinha pelo BES, por aquilo que fizemos ao longo destes anos todos, nos desse a garantia. Aquilo estava tudo resolvido se não fosse o dr. Carlos Costa [governador do Banco de Portugal] ter deitado a garantia para o lixo. Em relação à Escom, acho que o principal responsável disto tudo foi o senhor Hélder Bataglia.

Bataglia, sempre Bataglia. O empresário luso-angolano está omnipresente no discurso de Salgado. Mas não está sozinho. Álvaro Sobrinho está sempre a aparecer.

– É verdade que aquando da constituição do BESA o senhor disse a Hélder Bataglia que a Escom podia entrar como acionista do BESA?

– Isso é mentira, não faz sentido nenhum porque nós tínhamos a área financeira separada da não financeira. A Escom não tinha capitais para entrar no BESA, pelo contrário, o Hélder Bataglia pedia constantemente financiamento ao BESA para apoiar o desenvolvimento imobiliário e foi por isso que a partir de uma certa altura eu disse ao Hélder Bataglia que ele estava em conflito de interesses e que tinha de sair do conselho de administração do BESA.

Bataglia não gostou, uma vez mais. Mas saiu. E vendeu a Álvaro Sobrinho a sua posição de 2,5% no banco por uma quantia astronómica: 60 milhões de euros. Salgado ainda se indigna com o ocorrido.

– 60 milhões! 60 milhões!!! O Álvaro Sobrinho não tinha dinheiro para comprar aquilo por 60 milhões! O BESA esteve ao serviço do Álvaro Sobrinho e família! Viemos a saber depois que pôs a cunhada à frente da área do crédito. Quem dava o crédito era a cunhada! Não havia actas! Quando lá fomos em Outubro e nos deparámos com aquele programa de terror que eu aliás publicamente manifestei, ele foi chamado à pedra pelo general kopelipa e pelo Dino [Leopoldino Fragoso do Nascimento, figura próxima de José Eduardo dos Santos que a revista americana Foreign Policy chegou a apelidar de “homen dos 750 milhões”, numa referência aos seus activos no estrangeiro] Era uma coisa absolutamente inconcebível o que se tinha passado dentro do BESA!

– Está convencido de que o financiamento do Álvaro Sobrinho para comprar a Hélder Bataglia a posição no BESA foi financiada pelo próprio BESA?

– Ai, tenho quase a certeza! Mas o Álvaro Sobrinho já se tinha servido muito bem. Ninguém sabe até hoje como é que ele saiu com os recursos. Diziam que saíam de mala… mas também o dinheiro em malas de Angola para fora é complicado…

“O BESA esteve ao serviço do Álvaro Sobrinho e família! Viemos a saber depois que pôs a cunhada à frente da área do crédito. Quem dava o crédito era a cunhada! Não havia actas! Quando lá fomos em Outubro e nos deparámos com aquele programa de terror que eu aliás publicamente manifestei, ele foi chamado à pedra pelo general kopelipa e pelo Dino.”

Salgado está em modo de vingança. Católico praticante e temente a Deus, é um confesso seguidor dos preceitos de Santo Agostinho, o bispo teólogo que legitimou o conceito de guerra justa, segundo o qual às vezes é preciso pegar nas armas para garantir a paz. Terá o alegado corruptor de Sócrates passado os olhos pela “Cidade de Deus” esta manhã, antes de sair da sua moradia de Cascais para se deslocar ao campus de justiça? A ofensiva prossegue…

– Álvaro Sobrinho ainda é o maior acionista da SAD do Sporting e ninguém lhe vai à unha! O Álvaro Sobrinho comprou à Escom com o acordo do Hélder Bataglia uma das torres por 400 milhões. Foi financiada pelo BESA, e depois vendeu a torre Escom por 800 milhões a uma outra entidade financiada pelo BESA…

Paulo Silva espreita uma oportunidade para passar a outro assunto nuclear…

– …Que por acaso se chama Socidesa…

– Ah, é a Socidesa… Portanto, eu não me recordava do nome mas é uma dessas. É uma história escandalosa!

– Enão foi com o seu conhecimento que isso aconteceu?

–  Com certeza que não! Eles dizem com certeza que eu conhecia tudo, mas está a ver, é espantoso… Aliás, a assembleia geral começou no dia 3 de outubro de 2013, foi prolongada com outra em 21, em que o Álvaro Sobrinho se tinha comprometido a trazer todos os elementos justificativos das operações que tinham sido feitas e não trouxe um! Um! E ninguém o chama à ordem lá em Angola?! Ninguém lhe pega! Eu, para que isto tenha acontecido, só posso concluir que houve mais pessoas em Angola que beneficiaram do prejuízo do banco.

“Álvaro Sobrinho ainda é o maior acionista da SAD do Sporting e ninguém lhe vai à unha! O Álvaro Sobrinho comprou à Escom com o acordo do Hélder Bataglia uma das torres por 400 milhões. Foi financiada pelo BESA, e depois vendeu a torre Escom por 800 milhões a uma outra entidade financiada pelo BESA…”

– Então como é que me pode explicar que a ES Enterprises receba verbas da Socidesa, uma sociedade que pelo que estamos aqui a ver fará parte do buraco do BESA?

– Não faço ideia, senhor inspetor, não faço a mais pequena ideia e muito me surpreende. Mas vou tomar nota dessa informação a ver se consigo perceber, porque não faz sentido nenhum.

Ao falar-se da ES Enterprises, o interrogatório entra numa fase decisiva. O MP acredita que terá sido a partir desta offshore secreta – de tal modo que nem constava do organograma oficial do GES – que terão sido pagos milhões de euros em subornos a políticos e empresários ao longo dos anos. Paulo Silva começa pelo início…

O que é esta ES Enterprises?

Salgado compreende de imediato a importância e o alcance da questão. Sente a necessidade de fazer uma longa contextualização.

– O GES refundou-se a partir do Brasil e foi aumentando a sua dimensão na área financeira através do grupo Interatlântico e num banco em Miami que começou por ser o Biscayne, depois o BES Miami, depois em Paris, um no Panamá e outro no Dubai. Quando voltamos para Portugal, em 91/92, entramos no banco e encontramos uma organização estruturada e que se foi desenvolvendo de forma significativa. O Banco de Portugal estabeleceu um sistema de controlo interno em que obrigou a que todas essas plataformas lá fora tivessem controlo interno. Eram organizações pequenas que se nos tivéssemos de organizar devidamente era um peso administrativo significativo que afectava a sua rendibilidade. Então pediu-se autorização para que as equipas do BES fossem lá fora desenvolver e contribuir para que essas instituições desenvolvessem sistemas de controlo interno. O Banco de Portugal conhecia isto.

Traduzindo: para não ser obrigado a ter equipas de controlo interno em todas as sua estruturas no exterior, o GES enviava, a partir de Portugal, uma equipa de técnicos com a missão de fazer esse trabalho um pouco por todo o mundo. E pagou-lhes os serviços prestados através de uma sociedade offshore. O que criava problemas fiscais que, de acordo com salgado, “tinham de ser eles a resolver”. Rosário ouve o ex-líder do BES em silêncio. Sabe que não lhe está a contar toda a história.

– AES Enterprises foi criada para pagar esse tipo de serviços?

– A Enterprises já existia, foi o sistema de pagamentos que pusemos em marcha para remunerar colaboradores do grupo que prestavam serviço a nível internacional, não há nenhum subterfúgio. Já ouvi por aí dizer que tínhamos corrompido colaboradores do grupo, uma coisa inconcebível! Tínhamos uma complexidade de serviços e procedimentos que tinham de ser pagos por uma entidade externa.

(…)

Está na hora de cumprir mais uma etapa na escalada em direção ao verdadeiro alvo. Carlos Santos Silva é ponto de passagem obrigatório. Rosário vai direto ao assunto.

– Conhece o engenheiro Carlos Santos Silva?

Ricardo Salgado recupera a expressão de ingenuidade já anteriormente exibida.

– Nunca o vi. É uma situação para mim de uma enorme perplexidade porque, pelo que percebi, os recursos foram parar a Carlos Santos Silva.

– Certo.

– Ó senhor procurador, eu não me recordo de ter falado ao Carlos Santos Silva!

“Nunca o vi [a Carlos Santos Silva]. É uma situação para mim de uma enorme perplexidade porque, pelo que percebi, os recursos foram parar a Carlos Santos Silva.”

À expressão de ingenuidade de Salgado, Rosário responde com a ironia fina por que é conhecido.

– Era seu cliente com alguns recursos, que até recebia alguns dinheiros no BESI que não são para toda a gente e que até trouxe alguns dinheiros lá de fora ao abrigo do RERT…

O interrogado não desarma…

– Para mim foi uma enorme surpresa que ele tivesse feito o RERT no BES. Nunca me passou pela cabeça que isto pudesse acontecer, esta conjugação de relações entre o engenheiro Sócrates, o grupo Lena e o Carlos Santos Silva. Não fazia ideia!

– E muito menos tem conhecimento de que tenha pedido a alguém para fazer transferências para este Carlos Santos Silva?

Rosário refere-se obviamente a Hélder Bataglia. Quer que Ricardo Salgado confirme o que o luso-angolano dissera ao MP: que o ex-líder do BES lhe pediu para fazer chegar vários milhões a Carlos Santos Silva. Salgado sabe que assumi-lo seria um exercício de infantilismo processual que lhe seria potencialmente fatal. Não tem vocação para kamikaze.

– Claro que não! Claro que não! Isso é tudo iniciativas do senhor Bataglia, que quando tinha um programa para desenvolver em Angola, para o qual estava a ser remunerado e pago com avanços, fazia circular os recursos pelas nossas costas desta forma. Foi uma total surpresa!

Paulo Silva vai à réplica…

– Mas tem algum conhecimento de que o senhor Hélder tenha relações com Carlos Santos Silva?

Rosário refere-se obviamente a Hélder Bataglia. Quer que Ricardo Salgado confirme o que o luso-angolano dissera ao MP: que o ex-líder do BES lhe pediu para fazer chegar vários milhões a Carlos Santos Silva. Salgado sabe que assumi-lo seria um exercício de infantilismo processual que lhe seria potencialmente fatal. Não tem vocação para kamikaze.

 

– Não faço ideia! O Hélder nem sequer desenvolvia o relacionamento que tinha com o engenheiro José Sócrates. A única coisa que me disse sobe a família do engenheiro Sócrates foi este senhor [José Paulo] Pinto de Sousa que estava lá em Angola e que tratava lá das salinas e de uns terrenos que eles tinham. Portanto não se surpreendam por eu ter ficado em estado de choque. Se não tivesse uma boa preparação física provavelmente tinha caído para o lado com estas acusações!

Quem está prestes a cair para o lado é Rosário Teixeira. Não acredita em quase nada do que escuta. Esperaria o magistrado uma inequívoca prova de arrependimento, uma demonstração de inquietação moral, uma confissão de falibilidade da parte do homem que durante décadas terá sido o maior símbolo de infabilidade da sociedade portuguesa? Provavelmente não. Insiste.

– Mas algumas das interpretações destes factos não saem da nossa lavra, saem de pessoas que  afirmaram e que dizem que foi o senhor que pediu para haver contas que serviam de passagem para dinheiros que vieram da ES Enterprises.

Quem está prestes a cair para o lado é Rosário Teixeira. Não acredita em quase nada do que escuta. Esperaria o magistrado uma inequívoca prova de arrependimento, uma demonstração de inquietação moral, uma confissão de falibilidade da parte do homem que durante décadas terá sido o maior símbolo de infabilidade da sociedade portuguesa? Provavelmente não.

Salgado levanta o indicador em direção aos olhos azuis de Rosário Teixeira.

– Nunca fiz isso na minha vida!

– Nunca utilizou contas de passagem nem nunca pediu a ninguém “olhe, deixe lá passar esse dinheiro e depois transfere para a conta tal”?

– Não. Não.

– Aquilo que aqui está em causa são duas versões sobre a existência destes pagamentos, destas operações. O senhor está-nos a dizer que deu estes dinheiros todos ao senhor Hélder Bataglia, que só nestes anos de 2008, 2009, somam os tais 22 milhões de euros, pura e simplesmente para ele desenvolver negócios e para remunerações do sucesso que ele pudesse ter, incluindo a tal licença bancária do BESA que terá sido paga algum tempo depois. Outra coisa é dizer que parte deste dinheiro foi entregue por si ao senhor Hélder Bataglia, mas depois para o reencaminhar para umas contas que o senhor Carlos Santos Silva lhe deveria indicar.

Salgado não recua.

– Nunca ouvi falar no Carlos Santos Silva antes! Nunca! O Hélder Bataglia nunca me falou num Carlos Santos Silva, nunca me falou  de nada! Ele fazia o que queria! Ele fazia o que queria!

(…)

Rosário Teixeira e Paulo Silva estão quase a terminar. Chegaram ao topo da escadaria: José Sócrates. É Paulo Silva quem inicia as hostilidades.

– Só queria fazer mais uma questão: a sua relação com o engenheiro  José Sócrates. Conhecia-o antes das suas funções como primeiro-ministro?

– Não. Julgo que terei tido, eventualmente, um encontro quando ele foi do Ambiente, por causa de uma situação na Beira Baixa, onde tínhamos propriedades. Fora isso, as minhas relações com o engenheiro José Sócrates foram sempre institucionais. Nada de intimidades. Aliás, nunca tive relações íntimas com nenhum primeiro-ministro ou presidente. No outro dia dei o meu testemunho em relação ao dr. Mário Soares, foi uma cosia muito especial. Foi ele que nos chamou para voltarmos para Portugal, infelizmente, e nós aceitámos.

PS: E também para trazer o Crédit Agricole para Portugal?

RS: Exatamente. O dr. Mário Soares teve um papel relevantíssimo na vinda do grupo e na associação com o Crédit Agricole. E o Dr. Mário Soares ficou chocadíssimo com tudo aquilo que aconteceu, mas foi um amigo fantástico e visitava-me quando estava detido em casa. Ele e a senhora Maria de Jesus Barroso. Jantávamos, depois quando deixei de estar detido passei a ir visitá-los e a estar em casa deles. Foi um homem notável no nosso pais.

– E com o sr. Engenheiro José Sócrates?

– Com o eng. José Sócrates nunca tive relações de intimidade, quaisquer que fossem. Nunca falei com ele sobre esta história [bate com as duas mãos na mesa].

– Já agora: qual foi a última vez que esteve com ele?

Salgado vai responder, claro. Mas antes disso solta um suspiro profundo.

– Ora, estamos em Abril, é a história da troika, que vai entrar em Portugal a seguir, e o eng. José Sócrates sai logo a seguir, não é? Abril de 2011. Nunca mais estive com ele. E acredito que ele tenha ficado torcido comigo e com os outros banqueiros que foram à televisão dizer…

“As minhas relações com o engenheiro José Sócrates foram sempre institucionais. Nada de intimidades. Aliás, nunca tive relações íntimas com nenhum primeiro-ministro ou presidente. No outro dia dei o meu testemunho em relação ao dr. Mário Soares, foi uma cosia muito especial. Foi ele que nos chamou para voltarmos para Portugal, infelizmente, e nós aceitámos.”

– O engenheiro nunca foi à sua residência em Cascais?

Mais um lapso de memória…

– Não me recordo.

Adriano Sqillachi, sempre atento, recorda ao seu constituinte uma notícia do Correio da manhã a noticiar o facto.

– Não me lembro…

– De José Sócrates ter jantado na sua casa?

– Não, não me lembro. Pode ter sido quando ele escreveu um livro, quando regressou de Paris. Foi lá a casa entregar-me um livro.

Tanto quanto é público, foi o Correio da Manhã que referiu que esse jantar ocorrido em Março/Abril de 2014.

– Não me recordo do jantar, recordo-me do tal livro, que eu nunca li. E nunca tive intimidade nenhuma com o eng. José Sócrates. Tive algumas reuniões oficiais, ao nível da APB, com o primeiro-ministro, do IEB – o Instituto Europeus dos Bancos, do qual eu fazia parte –, que vieram cá a Portugal, com o eng. Jardim Gonçalves e depois com o Carlos Santos Ferreira e depois com o Nuno Amado. E vieram cá duas vezes a Portugal e julgo que o eng. José Sócrates foi convidado para fazer uma predileção aos banqueiros europeus. Uma vez foi no Museu dos Coches, isso recordo-me.

São 15h. Há cerca de 180 minutos que o interrogatório dura. Está na hora de terminar.

 

 

 

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