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Teixeira dos Santos no Parlamento. O dia em que Sócrates o acusou de traição e apelidou de patife

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Este artigo tem mais de um ano
A prestar declarações hoje na comissão de inquérito à CGD, Teixeira dos Santos esteve no núcleo de um dos acontecimentos mais marcantes da política portuguesa da última década: o pedido de assistência financeira ao FMI. Nas costas de José Sócrates, de cujo governo era ministro das Finanças, arquitetou o resgate. Sócrates nunca lhe perdoou. Leia os bastidores de uma tragédia portuguesa.

Quarta-feira, 6 de Abril de 2011

18h05. Luís Bernardo, assessor de imprensa, corre para o gabinete de José Sócrates em São Bento. Está com ar carregado. Abre a porta e mostra-lhe o print de uma página do site de um jornal económico.

– Já viu a notícia do Negócios?

Sócrates pega no papel, observa a fotografia do seu ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, e lê o título: “Portugal vai pedir ajuda externa.” Sem perder a calma, exclama:

– Sacana. Traíu-me pelas costas, como um patife.

(27 dias antes…)

Quarta-feira, 9 de Março de 2011

Sócrates já está afundado, perdido, acossado. Tem a Comissão Europeia, o FMI, os bancos e a oposição permanentemente a morder-lhe os calcanhares por causa da crise dos juros galopantes da dívida pública, um fantasma sobre a governação. Não precisa, por isso, que também Cavaco se junte ao grupo e lhe meta o pé em cima. Não naquele dia, pelo menos. O dia em que o Presidente da República toma posse no Parlamento para o seu segundo mandato em Belém. A introdução no seu discurso de temas menos simpáticos para o Governo terá seguramente uma repercussão mediática difícil de controlar.

Os exercícios de respiração anti-fúria do dia anterior não tiveram efeitos a longo prazo. É que, menos de 24 horas depois, Sócrates esquece-se de inspirar e expirar repetidamente antes de se lançar como um animal ao rival de Belém. Os seus próximos sabiam: seria impossível travá-lo. E assim foi. “O Governo é que governa”, diz, com a crueza habitual, aos jornalistas.

Cavaco sabe disso, claro – e talvez mesmo por essa razão decide não poupar o Governo, apelando a um “sobressalto cívico” e lamentando que “muitos dos agentes políticos” só conheçam um “país virtual e mediático”. “[É preciso] despertar os portugueses para a necessidade de uma sociedade civil forte, dinâmica e, sobretudo, mais autónoma perante os poderes públicos”, afirma o chefe de Estado a partir do púlpito. Dois metros abaixo, na bancada do Governo, de costas voltadas para Cavaco, Sócrates tenta manter a calma – um exercício a que não está particularmente habituado. O seu ar é grave. Está furioso, como os seus membros do gabinete puderam posteriormente constatar. Ao longo dos seis anos em que esteve à frente do Executivo, nunca escondeu que detesta Cavaco – uma espécie de pequeno Salazar aos seus olhos.

Sob o olhar sempre terno de Maria, o Presidente prossegue: está na hora de os portugueses “despertarem da letargia” em que têm vivido. Sócrates escuta, hirto, na sua cadeira. Amanhã será outro dia.

José Sócrates não queria pedir o resgate financeiro. Resistiu até ao último minuto à pretensão de Teixeira dos Santos

Quinta-feira, 10 de Março de 2011

Os exercícios de respiração anti-fúria do dia anterior não tiveram efeitos a longo prazo. É que, menos de 24 horas depois, Sócrates esquece-se de inspirar e expirar repetidamente antes de se lançar como um animal ao rival de Belém. Os seus próximos sabiam: seria impossível travá-lo. E assim foi. “O Governo é que governa”, diz, com a crueza habitual, aos jornalistas. Mais: “A palavra do Presidente da República é tanto mais forte quanto mais isenta for.” Tradução: o senhor Presidente não manda nada e devia preocupar-se mais com a manutenção da marquise da sua casa situada na Travessa do Possolo do que com a governação, sob pena de estar a meter-se onde não é tido nem achado.

No seu gabinete, Sócrates explica detalhadamente o que pretende fazer para no dia seguinte convencer os chefes de Estado europeus de que o problema financeiro português ainda tem solução. Receita para atingir o objectivo do défice de 3% no ano seguinte: cortes, cortes, cortes. A negociação fora difícil.

O PM está de saída do debate da moção de censura apresentada pelo Bloco de Esquerda. Correra-lhe bem – apesar das condições absolutamente adversas, conseguiu, como quase sempre acontecia nos momentos difíceis, sobreviver, com a ajuda do PSD e do CDS, que se abstiveram. Naquele instante já só pensa em falar com Passos Coelho. No dia seguinte participará numa reunião fundamental do Conselho Europeu, em que apresentará um plano de austeridade, negociado durante dias e noites intermináveis entre o seu gabinete, com o competente assessor económico Vitor Escária à cabeça, e os responsáveis do BCE e da Comissão Europeia. Para que tudo corra bem na Europa, precisa do apoio do principal partido da oposição. Já em São Bento, liga a Passos Coelho. Pede-lhe que passasse por São Bento – temum “assunto de Estado” para discutir consigo.

Os juros da dívida portuguesa tinham batido nuns impressionantes 7,7%. Era urgente tomar medidas drásticas, sob pena de Portugal se afundar ainda mais na esquizofrenia especulativa dos mercados financeiros. Na manhã seguinte, Sócrates teria de defender a sua dama e considerava que sem o apoio do chefe da oposição tudo poderia claudicar. Problema: tinha-o deixado de fora durante o processo negocial.

O sol já se pôs quando Passos, sentado ao lado do seu chefe de gabinete, Feliciano Barreiras Duarte, num Audi negro conduzido pelo sr. Meireles, o motorista do partido, entra pelos protões da residência oficial do PM. À sua espera está Sócrates, que ostenta o ar grave das grandes ocasiões. Passos percebe imediatamente porquê: o seu adversário está ansioso pelo seu apoio ao plano que apresentará no dia seguinte em Bruxelas. Na anterior reunião do Conselho Europeu, que ocorrera a 4 de Fevereiro, ficara decidido que ou Portugal apresentava um documento consistente de reequilíbrio das contas, que se enquadrasse devidamente numa solução europeia global e integrada, ou poderia perder o apoio dos seus parceiros.

No seu gabinete, Sócrates explica detalhadamente o que pretende fazer para no dia seguinte convencer os chefes de Estado europeus de que o problema financeiro português ainda tem solução. Receita para atingir o objectivo do défice de 3% no ano seguinte: cortes, cortes, cortes. A negociação fora difícil. Representantes do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia deslocaram-se a Portugal para “partir pedra” com Vítor Escária. O documento final só ficou fechado à última hora – Sócrates resistiu até ao limite a incluir duas medidas: o aumento do IVA e a diminuição das deduções do IRS. Sabia que Passos não concordava com elas e não queria que o líder do PSD pensasse que se tratava de uma provocação. Face à sua hesitação, um membro do gabinete perguntou-lhe?

– Onde é que vamos buscar então 600 a 800 milhões?…

…pois.

No momento em que o ministro das Finanças termina a sua comunicação, deixando o país em estado de choque, já Sócrates se encontra em Bruxelas, para onde viajou pela madrugada no Falcon do Estado português com uma pequena comitiva, no sentido de cumprir o quarto e último passo do plano. Durante o voo, mostrou-se aliviado pelo facto de a conversa com Passos ter resultado. Estava confiante: tudo iria correr pelo melhor.

Os juros da dívida portuguesa tinham batido nuns impressionantes 7,7%. Era urgente tomar medidas drásticas, sob pena de Portugal se afundar ainda mais na esquizofrenia especulativa dos mercados financeiros. Na manhã seguinte, Sócrates teria de defender a sua dama e considerava que sem o apoio do chefe da oposição tudo poderia claudicar. Problema: tinha-o deixado de fora durante o processo negocial. Apesar disso, embora contrariado, Passos ter-se-á comprometido a não tirar o tapete ao Governo numa circunstância tão complicada.

Sexta-feira, 11 de Março de 2011

As próximas horas serão decisivas. Há muito que Portugal caminha perigosamente em cima de um arame cada vez mais vertiginoso. Conscientes de que a queda é uma hipótese real, Sócrates e a sua equipa de crise discutiram durante semanas em São Bento a estratégia a adoptar. O primeiro passo – negociar em segredo com o BCE e a Comissão Europeia – estava dado. O segundo – “amansar” o líder da oposição – também tivera aparente sucesso. O terceiro está prestes a ser dado: logo pela manhã, com um ar que oscila entre o envergonhado e o comprometido, Teixeira dos Santos desfia em conferência de imprensa as ideias do Executivo para reequilibrar as contas públicas. Pura violência: congelamento das pensões, corte nas indemnizações por despedimento, redução de custos com medicamentos e outras medidas na área fiscal que, na prática, resultavam na subida de vários impostos, como o IRS ou o IRC.

No momento em que o ministro das Finanças termina a sua comunicação, deixando o país em estado de choque, já Sócrates se encontra em Bruxelas, para onde viajou pela madrugada no Falcon do Estado português com uma pequena comitiva, no sentido de cumprir o quarto e último passo do plano. Durante o voo, mostrou-se aliviado pelo facto de a conversa com Passos ter resultado. Estava confiante: tudo iria correr pelo melhor.

À mesma hora, em Lisboa, Passos Coelho faz uma ronda de telefonemas para pessoas da sua confiança, sobretudo políticos e economistas. Quer “cheirar” o ambiente, saber o que pensam o partido e a “inteligência” nacional. No PSD, os militantes – sobretudo os que têm mais responsabilidades – tremem de excitação. Consideram que está na hora de tomar o poder de assalto, de depor Sócrates, correr com os “boys” e substituí-lo por rapaziada laranja. E se o líder não o quiser fazer, outro o fará por ele. Marco António Costa, o chefe do aparelho, não poderia ter sido mais claro na conversa com Passos: “Ou nos preparamos para eleições no país ou para eleições internas.”

Quando sai do seu Mercedes preto junto ao edifício do Conselho Europeu, escoltado por três motas da polícia, o PM aparenta uma inesperada descontracção, tendo em conta a importância do momento. O facto de se sentir “acolchoado” pelo apoio de Passos e do presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, é importante para alimentar o seu estado de espírito. Também a chanceler alemã, Angela Merkel, sucumbira aos seus argumentos. O PM prometera-lhe medidas duras; ela comprometera-se a convencer os contribuintes alemães a continuar a apoiar os “preguiçosos” do Sul da Europa.

Discretamente maquilhado, de casaco comprido de corte irrepreensível, com uma gravata azul escolhida por si, Sócrates explica pacientemente aos jornalistas o que o trazia a Bruxelas: “Portugal vem para esta cimeira com o firme propósito de, pela sua parte, contribuir para a defesa da moeda única e defesa da Europa e, por isso, o ministro das Finanças teve ocasião de, em Portugal, antecipar para hoje a divulgação daquilo que são as nossas linhas de orientação para 2012 e 2013, para que não haja a mínima dúvida na Europa e nas instituições europeias de que Portugal está comprometido com a orientação para pôr as contas em ordem.”

À mesma hora, em Lisboa, Passos Coelho faz uma ronda de telefonemas para pessoas da sua confiança, sobretudo políticos e economistas. Quer “cheirar” o ambiente, saber o que pensam o partido e a “inteligência” nacional. No PSD, os militantes – sobretudo os que têm mais responsabilidades – tremem de excitação. Consideram que está na hora de tomar o poder de assalto, de depor Sócrates, correr com os “boys” e substituí-lo por rapaziada laranja. E se o líder não o quiser fazer, outro o fará por ele. Marco António Costa, o chefe do aparelho, não poderia ter sido mais claro na conversa com Passos:

– Ou nos preparamos para eleições no país ou para eleições internas.

O aviso, que Passos regista em silêncio, fica dado. O líder do PSD sabe que Rui Rio espreita uma oportunidade para lhe assaltar o lugar. Curvar-se uma vez mais perante o PM será, muito provavelmente, um exercício de dolorosa auto-imolação política.

Se, a 2.041km de distância, as orelhas de Sócrates aquecem perante os comentários de Passos, escaldam quando, a meio da tarde, Cavaco Silva, depois de informado pelo líder do PSD sobre a sua posição, pede a Fernando Lima, seu assessor de imprensa, que passe aos jornais que não foi informado pelo Governo sobre o programa de austeridade que este acaba de apresentar em Bruxelas.

Entre os membros da sociedade civil que também ouve, as opiniões dividem-se. Uns consideram que o Governo expirou o prazo de validade, mas também há quem acredite que vale a pena dar uma última oportunidade a José Sócrates e Teixeira dos Santos. Embora não a tenha partilhado com ninguém, o líder do PSD já tomou a decisão: não vai continuar a carregar Sócrates ao colo. E é isso mesmo que faz sentir a um banqueiro que lhe liga nesse dia, preocupado com a possibilidade de Passos inviabilizar os esforços do PM.

– Desculpe, mas não pode ser! Chegou a altura em que defender o país implica agir de outra forma, porque senão andamos sempre nisto. É como um jogador quando entra num casino e perde dinheiro: ‘É só mais uma vez.’. E depois é outra e outra. Eu não posso continuar a alimentar um viciado em jogo de casino.”

Se, a 2.041km de distância, as orelhas de Sócrates aquecem perante os comentários de Passos, escaldam quando, a meio da tarde, Cavaco Silva, depois de informado pelo líder do PSD sobre a sua posição, pede a Fernando Lima, seu assessor de imprensa, que passe aos jornais que não foi informado pelo Governo sobre o programa de austeridade que este acaba de apresentar em Bruxelas. E ficam definitivamente a arder no momento em que Passos, sentado no seu gabinete da São Caetano à Lapa, se senta a escrever o discurso que planeia fazer ainda nesse dia, depois de divulgados os resultados da cimeira de Bruxelas.

Começa assim: “O país foi esta manhã surpreendido com o anúncio feito pelo Governo de um vasto conjunto de medidas de austeridade. Surpreendido, desde logo, porque ainda ontem o Governo reafirmou estar assegurado o controlo das contas públicas e a consequente desnecessidade de recurso a qualquer ajuda. Mas surpreendido também pelo facto de as medidas hoje levadas a Bruxelas terem sido ocultadas ao Parlamento, parceiros sociais e mesmo, ao que parece, ao Presidente da República. Com esta política de facto consumado, uma vez mais, o Governo insiste em tratar Portugal e os portugueses como se fossem coisa sua, dando, assim, mostras de total falta de cultura democrática.”

E continua…

“O PSD afirma com total clareza e lealdade democrática que o errado caminho que o Governo pretende prosseguir não contará com o nosso apoio. Reforço: se o Governo quer seguir tal caminho terá de o fazer sozinho ou procurar o apoio de outros, mas não terá o apoio do PSD.”

Era claro que o jogo ia virar.

Em Bruxelas, Sócrates participa num jantar de trabalho com todos os líderes da zona Euro. O dia não foi fácil. Merkel e Barroso estão consigo, mas também há quem desconfie da capacidade de Portugal para cumprir os seus compromissos. A dada altura, o Primeiro-Ministro holandês decidiu fazer uma intervenção nesse sentido. Sócrates perdeu o controlo:

– Diga lá quanto é que Portugal lhe deve porque não estou para lhe dever um tostão ou para aturar o seu calvinismo reles!

O documento é votado pelos membros do Conselho. Sucesso total. Sócrates vencera. Angela Merkel não lhe salta para o colo, mas faz questão de mostrar a Sócrates que estava contente com o desfecho:

– Parabéns!

Durão Barroso também está eufórico:

– Conseguimos!!!

A dada altura, Durão Barroso sai da sala com o telemóvel na mão. Quando regressa parece em estado de choque:

– Não acredito no que se está a passar em Portugal!!!

Quando Vítor Escária lhe mostra o take da agência Lusa a noticiar que Passos só está à espera do fim da reunião para fazer uma conferência de imprensa a anunciar o chumbo ao PEC IV, Sócrates fica possesso. Como é possível tamanha irresponsabilidade? Escária também está em choque – tantos meses de trabalho duro deitados ao lixo. O momento seguinte é de total embaraço. O PM pede a palavra e deita, embaraçado, o tapete ao chão.

Um membro do gabinete do PM resume aquilo em que todos, na comitiva de Sócrates, acreditavam: “O documento aguentaria Portugal pelo menos até ao segundo resgate da Grécia e permitir-nos-ia fazer uma gestão semelhante à dos espanhóis, que não tiveram de pedir ajuda externa.” Quando entra no Falcon de regresso a Portugal, Sócrates ainda tem esperanças de que Passos mude de ideias. Assim que chega, percebe que está a laborar numa enorme fantasia. Liga a Jorge Lacão, um dos seus conselheiros mais próximos, e explode: “Vamos fazer como o Cortés: incendiar as naus! Se eles chumbarem o PEC demito-me!”

 

– Meus senhores, acabo de tomar conhecimento de que o líder da oposição portuguesa não apoiará as medidas que constam deste documento, por isso, a confirmar-se esta posição nada me resta a não ser levá-lo a votos no Parlamento português.

A desilusão é geral. “Mas o que estamos aqui a fazer??!!”, pergunta um dos presentes. Por telefone, Durão ainda tenta demover o seu companheiro de partido. Nada feito.

Apesar de ter comovido muitos militantes do PSD profundo e menos profundo, o “grito do Ipiranga” de Passos não comove Jean-Claude Trichet, Angela Merkel ou Nicolas Sarkozy. Todos temem que, caso sejam votadas na Assembleia da República, as propostas do Executivo não passem. E que, nessa circunstância, José Sócrates peça a demissão, precipitando eleições antecipadas e abrindo uma crise política que não interessa a ninguém.

Um membro do gabinete do PM resume aquilo em que todos, na comitiva de Sócrates, acreditavam: “O documento aguentaria Portugal pelo menos até ao segundo resgate da Grécia e permitir-nos-ia fazer uma gestão semelhante à dos espanhóis, que não tiveram de pedir ajuda externa.”

Quando entra no Falcon de regresso a Portugal, Sócrates ainda tem esperanças de que Passos mude de ideias. Assim que chega, percebe que está a laborar numa enorme fantasia. Liga a Jorge Lacão, um dos seus conselheiros mais próximos, e explode.

– Vamos fazer como o Cortés: incendiar as naus! Se eles chumbarem o PEC demito-me!

Há vários meses que o PM andava obcecado com a evolução dos juros da dívida portuguesa. Eram elas o barómetro da confiança que os mercados financeiros depositavam (ou não) no país. “A dada altura ele ficou paranóico com as taxas. Queria acompanhá-las quase ao minuto.” Vítor Escária era o seu principal apoio. Três meses antes, instalara em São Bento um terminal informático em que era possível consultá-las em tempo real.

Sócrates, que apesar de ter apontado o Plano Tecnológico como uma das principais bandeiras da sua governação, tinha particulares dificuldades para lidar com a tecnologia, atrapalhava-se no manuseamento do terminal – a ansiedade traía-o frequentemente. A sua obsessão com aquele ecrã era de tal modo intensa que o fez deslocar da sala de reuniões da residência, onde foi inicialmente instalado, para a que dava acesso directo ao seu gabinete. Estava aterrorizado com o dia em que os juros ultrapassassem a fasquia psicológica dos 7%, de que estava refém desde que Teixeira dos Santos afirmara publicamente que era esse o limiar a partir do qual se devia solicitar um resgate – uma intervenção que lhe valeu um enorme raspanete do PM. Apesar de considerar as declarações do ministro das Finanças um erro, um elemento próximo de Sócrates desculpabiliza-o: “Na altura ele estava longe de acreditar que algum dia chegaríamos a esse ponto. Fê-lo na convicção de que a situação nunca se colocaria.” Mas colocou.

Se o ambiente em São Bento era pesado por causa das fúrias épicas do PM, transformava-se num pandemónio quando, na cabeça de Sócrates, se instalava a confusão sobre as verdadeiras taxas de juro, que variavam durante o dia em função da agência que as divulgava. A Reuters podia dar um valor e, ao mesmo tempo, a Bloomberg, que era utilizada por jornais como o Diário Económico e o Jornal de Negócios, dar outro. “Isso era suficiente para o tirar fora de si. Muitas vezes tive de lhe explicar que essas pequenas variações, que muitas vezes eram de centésimas, eram corrigidas no final do dia, quando as taxas se encontravam.”

Terça-feira, 5 de Abril de 2011

– Paulo, tenho a gravata alinhada? E o casaco, está direito? Fico com ele aberto ou fechado?

Ricardo Salgado, presidente executivo do Banco Espírito Santo (BES) está preocupado com a sua imagem. Daí a 30 segundos daria uma das entrevistas mais importantes da sua vida enquanto banqueiro. Nada podia falhar. Paulo Padrão, director de comunicação do BES, é a última pessoa com quem fala antes de lançar um olhar frio e profundo em direcção a Judite Sousa, a jornalista da TVI, já sentada na sua cadeira, também ela pronta para conduzir uma das conversas mais marcantes da sua carreira.

Judite não tem de fazer um esforço sobrenatural para que Ricardo Salgado lance a bomba mais esperada. Limita-se a colocar a pergunta óbvia:

– Portugal deve ou não solicitar ajuda internacional?

A resposta é a que Sócrates não quer, não precisa, não pode ouvir.

– O que ouvi do Primeiro-Ministro é que só o fará em último recurso. Acontece que a sucessão de acontecimentos é de tal forma rápida que, neste momento, acredito não haver outra alternativa senão o pedido desse apoio intercalar da União Europeia para Portugal. É urgentíssimo, porque sinto que o Estado está com constrangimentos financeiros que têm de ser resolvidos para neutralizar o efeito da subida das taxas de juro.

O Dono Disto Tudo, como é conhecido, sabe do que fala. A necessidade de financiamento do Estado português para o curto prazo é aflitiva: tem de pagar dois empréstimos de mais de quatro mil milhões de euros cada, que vencem em Abril e Junho. As reservas nacionais chegam para liquidar o primeiro, mas são claramente insuficientes para pagar o segundo – ou seja, será necessária uma nova emissão de dívida, o que, com os juros acima dos 10% e com os bancos nacionais de cofres vazios, se afigura como uma missão praticamente impossível.

Judite Sousa chegou à TVI apenas cinco dias antes, na sequência de uma “OPA hostil” da Prisa [dona da TVI] à direcção de informação da RTP, liderada por José Alberto Carvalho, que assumiu as mesmas funções num canal que ainda vivia as dores do polémico afastamento da jornalista Manuela Moura Guedes.

As entrevistas – sobretudo a de Ricardo Salgado, o mais importante banqueiro e também o mais próximo de José Sócrates – tiveram uma repercussão gigantesca. Hoje é um dado adquirido que contribuíram decisivamente para precipitar uma decisão que a prazo seria inevitável – apesar da resistência musculada de Sócrates, que assistiu, impotente e revoltado, às declarações daqueles que até há pouco tempo tinham sido seus parceiros privilegiados.

Ao chegar à estação, a jornalista sentiu que devia dar uma demonstração da sua força, do peso e do capital próprios que poderia conferir à TVI, fazendo com que todos – os colegas de redacção, os políticos, líderes de opinião e telespectadores – percebessem que uma nova era começara na estação. Estreou-se com uma entrevista a Teixeira dos Santos. Apesar da simpatia evidente do ministro das Finanças, com quem ficou a conversar sobre futebol depois da conversa (são ambos adeptos do Futebol Clube do Porto), a audiência não foi fantástica: 25% de share. “Achei que depois disso devia avançar imediatamente para entrevistas aos presidentes dos maiores bancos a operar em Portugal. Tive a intuição de que algo de muito importante estava em curso e quis que a TVI tivesse um papel nesse processo.”

No espaço de uma hora contactou os responsáveis de comunicação do BES, do BPI, do BCP e do Santander, solicitando-lhes uma entrevista aos respectivos líderes para o imediato. “O que aconteceu depois disso foi inédito na minha carreira. Todos aceitaram poucas horas depois, o que me faz acreditar que se concertaram para tomar uma posição de conjunto.”

No Público, Luís Campos e Cunha, o primeiro ministro das Finanças da era Sócrates, com quem se incompatibilizou ao fim de pouco mais de um mês, resumiu a tragédia em curso: “Estamos a viver um filme de terror em que o Drácula culpa a vítima de lhe sugar o sangue.

Preocupados em não distorcer de forma radical a linha da TVI, Judite Sousa e José Alberto Carvalho optaram por entrevistas curtas, de 10 minutos, a emitir em dias seguidos. Para além disso, reconhece Judite, “por ser uma experiência pioneira, não queria comprometer seriamente as audiências da estação”.

As entrevistas – sobretudo a de Ricardo Salgado, o mais importante banqueiro e também o mais próximo de José Sócrates – tiveram uma repercussão gigantesca. Hoje é um dado adquirido que contribuíram decisivamente para precipitar uma decisão que a prazo seria inevitável – apesar da resistência musculada de Sócrates, que assistiu, impotente e revoltado, às declarações daqueles que até há pouco tempo tinham sido seus parceiros privilegiados. Um ex-colaborador recorda o estado de espírito do ex-PM: “Sentiu-se traído, uma vez mais. Sabia que depois daquilo pouco havia a fazer. Achou que era ingrato que, depois de tanta resistência não houvesse ninguém que estendesse a mão ao Governo.”

No Público, Luís Campos e Cunha, o primeiro ministro das Finanças da era Sócrates, com quem se incompatibilizou ao fim de pouco mais de um mês, resumiu a tragédia em curso: “Estamos a viver um filme de terror em que o Drácula culpa a vítima de lhe sugar o sangue. Estamos a viver o malbaratar dos dinheiros públicos durante muitos anos, com especial relevância nos últimos cinco. Estamos a sofrer as consequências da dita política keynesiana de 2009 que teria permitido que a recessão fosse apenas de 2,6%. Muitos defenderam tal irracionalidade, mas também houve quem chamasse a atenção da idiotia de tal abordagem numa pequena economia, sem moeda própria e sem fronteiras económicas. Sócrates afirmou que o défice de 2009 foi da sua responsabilidade porque foi de propósito, lembram-se? E o de 2010 é responsabilidade de quem?”

O castelo está a ruir.

Quarta-feira, 6 de Abril de 2011

Teixeira dos Santos já não aguenta a pressão. São os banqueiros. São os  parceiros europeus. É Cavaco. É Barroso. São as agências de rating. Tirando Sócrates e os seus próximos, ninguém acredita que Portugal sobreviva sem resgate  – e quanto mais cedo ele acontecer melhor. Aterrorizado com a possibilidade de o país entrar em default, o ministro das Finanças ruma uma vez mais a São Bento, na expectativa de convencer o PM a acatar a sua opinião. Nessa manhã Portugal realizou um leilão de dívida que, como era previsível, correu muito mal. Está decidido: vai encostar Sócrates à parede. Diz-lhe:

– Tem de ser!

O PM não baqueia:

– Não, não estou convencido!

A verdade é que Teixeira dos Santos já não é a pessoa ideal para convencer o PM a fazer o que quer que seja. O facto de defender a ajuda externa de forma tão aberta há várias semanas faz dele, aos olhos de Sócrates, um vendido aos interesses da Alemanha e do grande capital financeiro. O chefe do Executivo desconfia que o Ministério das Finanças tem duas caras: uma para ele e outra para os interlocutores europeus. Teixeira dos Santos deixou de ser uma pessoa de confiança.

Há muito que os gabinetes do PM e das Finanças trabalham numa base de desconfiança mútua, mais precisamente desde que o Primeiro-Ministro percebeu, através de conversas informais com Durão Barroso e Angela Merkel, de que, ao negociarem na Europa em nome de Portugal, os técnicos das Finanças não veiculam a mensagem oficial do Governo português, claramente contrária a um pedido de ajuda. A guerra surda chegou a assumir contornos ridículos: a certa altura, os assessores de imprensa do Ministério das Finanças deixaram de atender as chamadas dos do gabinete do PM, que tinham responsabilidades de coordenação geral da comunicação governamental. “Percebemos que estávamos em lado opostos da barricada e o PM não hesitou: ficámos nós com a gestão comunicacional dos assuntos mais relevantes: os leilões da dívida pública, os números do desemprego, as exportações e outros dados de macroeconomia.”Um dia, um membro do gabinete de Teixeira dos Santos enviou um sms a um elemento da equipa de Sócrates.

– Vem tomar café comigo.

Já sentado, com a chávena de cafeína ao seu alcance, o colega desabafou:

– Estou aqui em sigilo absoluto. A conversa tem de ficar entre nós. Queria só dizer-te que vocês podem continuar a ligar mas ninguém vai atender os telefones.

De São Bento, Teixeira dos Santos segue para o Terreiro do Paço. Quer almoçar com os seus quatro secretários de Estado, Costa Pina, Sérgio Vasques, Gonçalo Castilho e Emanuel dos Santos. No final da refeição, despede-se com uma frase denunciadora: “Até ao fim do dia algo farei.” E faz mesmo. Poucas horas depois, pede à assessora de imprensa Rita Tamagnini para ligar ao Jornal de Negócios a propor que lhe façam algumas questões sobre a emissão dos bilhetes do Tesouro dessa manhã. Na verdade, o que Teixeira dos Santos quer é outra coisa – exactamente o que vem a suceder.

Gorada a tentativa do ministro das Finanças, avança um peso pesado: Mário Soares. Nos últimos dias, o ex-Presidente da República recebera e falara com muitas pessoas que defendiam o pedido de resgate. Uma delas fora Ricardo Salgado. A todos, Soares prometeu diligenciar junto do PM no sentido de este “ganhar juízo”. Telefonou-lhe e perguntou-lhe se o podia receber. Apesar de estar a ter um dia canino, o PM não poderia recusar a solicitação de Soares. Adivinhava que os motivos não seriam os melhores. E bem.

Soares pede-lhe que avance imediatamente com o resgate. Resposta: nem pensar nisso. O decano do PS, muito pouco habituado a ser contrariado, vira costas, desce os degraus do palácio, enfia-se no carro negro com motorista e regressa à Fundação Soares, situada a cerca de um minuto da residência oficial. Quando fala com Vítor Ramalho, o socialista apontado como o último dos soaristas, diz-lhe:

– O homem não vai avançar. Tem uma determinação enorme, não vai desistir!

De São Bento, Teixeira dos Santos segue para o Terreiro do Paço. Quer almoçar com os seus quatro secretários de Estado, Costa Pina, Sérgio Vasques, Gonçalo Castilho e Emanuel dos Santos. No final da refeição, despede-se com uma frase denunciadora.

– Até ao fim do dia algo farei.

E faz mesmo. Poucas horas depois, pede à assessora de imprensa Rita Tamagnini para ligar ao Jornal de Negócios a propor que lhe façam algumas questões sobre a emissão dos bilhetes do Tesouro dessa manhã. Na verdade, o que Teixeira dos Santos quer é outra coisa – exactamente o que vem a suceder.

Depois de informado sobre as declarações de Teixeira dos Santos por um Luís Bernardo ainda a recuperar do choque, o PM aparenta uma calma invulgar. Uma vez mais, face a um episódio-limite, não perde a compostura. Pede para se ligar ao ministro. Tem de dizer-lhe o que pensa sobre o que acaba de fazer. Com grande frieza, diz-lhe foi um acto de traição, uma indignidade, que devia, no mínimo, ter-lhe dado tempo para falar com o Presidente da República. Em suma, que tivera a atitude de um garoto.

Quando é contactada, Helena Garrido, a subdirectora do jornal não está na redacção. Não tem, por isso, como escrever o e-mail a remeter ao ministro. Solução encontrada: dita as perguntas oralmente:

1 – Como avalia os resultados do leilão de hoje, nomeadamente no que respeita às taxas de juro?

2 – Quem foram os compradores (mais portugueses ou estrangeiros) e se o Governo está a dar orientações às empresas públicas para comprarem dívida pública?

3 – Portugal tem condições de encontrar os recursos necessários para pagar as suas dívidas (do Estado e das empresas públicas) até que o novo Governo entre em funções? E qual é o montante dos compromissos do Estado até ao Verão?

E finalmente, a questão mais desejada pelo titular das finanças:

– Portugal deve pedir ajuda já?

Pouco antes das seis da tarde, o ministro responde à “million dollar question”:

– O país foi irresponsavelmente empurrado para uma situação muito difícil nos mercados financeiros. Perante esta difícil situação, que podia ter sido evitada, entendo que é necessário recorrer aos mecanismos de financiamento disponíveis no quadro europeu em termos adequados à actual situação política. Tal exigirá, também, o envolvimento e o comprometimento das principais forças e instituições políticas nacionais.

Depois de informado sobre as declarações de Teixeira dos Santos por um Luís Bernardo ainda a recuperar do choque, o PM aparenta uma calma invulgar. Uma vez mais, face a um episódio-limite, não perde a compostura.

Pede para se ligar ao ministro. Tem de dizer-lhe o que pensa sobre o que acaba de fazer. Com grande frieza, diz-lhe foi um acto de traição, uma indignidade, que devia, no mínimo, ter-lhe dado tempo para falar com o Presidente da República. Em suma, que tivera a atitude de um garoto.

Terminada a chamada, há que seguir em frente. Pede a Bernardo para chamar o inner circle. “Era como se na cabeça dele aquele cenário já estivesse todo montado, tal foi a rapidez com que reagiu. Sabia todos os passos a dar de seguida.”

Passo prioritário: telefonar a Cavaco Silva a dar-lhe conta do ocorrido. Não o apanha de surpresa – também no seu caso, esse mérito pertence ao jornal da Cofina. Nesta semana, o Presidente fez um conjunto de contactos internos e externos relacionados com a crise, tendo recebido, em audiências separadas, os presidentes dos quatro maiores bancos nacionais e o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa. Estava a trabalhar num cenário que apontava para um financiamento intercalar de emergência, que garantisse o financiamento da economia até 15 de Junho. Seria então que haveria um novo pico de financiamento. E nesse momento o novo Governo não estaria ainda em condições de assumir junto de Bruxelas o compromisso de um pacote de medidas de austeridade que viabilizasse um financiamento a três anos.

Cavaco manteve contactos telefónicos com o presidente da União Europeia, Herman Van Rompuy, o presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, e o presidete do Eurogrupo, Jean-Claude Juncker. Procurou convencê-los de que a agitação política que varria Portugal tinha gravidade apenas relativa e que rapidamente seria ultrapassada.

Em São Bento, Sócrates está a mil à hora. Tem de ser escrita a intervenção do anúncio do pedido de ajuda, que fará daí a pouco em directo para os telejornais. A tarefa fica a cargo do chefe de gabinete, Almeida Ribeiro, um discreto e competente ex-espião do Serviço de Informações e Segurança, considerado um pequeno génio pela generalidade dos que com ele trabalham. O processo é relativamente rápido. A verdade é que o PM já tinha praticamente decidido avançar para o resgate. Só não o fizera ainda por dois motivos. Primeiro: queria fazer uma ronda de contactos com os líderes europeus de modo a que estes reagissem solidariamente com Portugal na hora do anúncio. Segundo: não queria avançar antes do congresso do PS, que se realizaria nesse fim-de-semana. Sócrates já tinha inclusivamente pedido aos seus assessores para solicitar as cartas de pedido de resgate da Grécia e da Irlanda, caso se pretendesse fazer uma adaptação à realidade portuguesa. Em São Bento já circulavam drafts do pedido.

Decide-se que até às 20h, hora para que está prevista a comunicação ao país, o gabinete fica oficialmente em blackout. Luís Bernardo agarra no seu telemóvel, desliga-o e coloca-o em cima de uma mesa. Volta-se para os colegas e diz:

– Agora quero que todos façam o mesmo. Não vamos atender uma só chamada.

Há muito para tratar. São Bento não tem salas de grandes dimensões. E a ocasião exige um espaço à altura. Solução: colocar os funcionários da residência de rabo para o ar a mudar cadeiras e sofás para libertar espaço num dos salões, de modo a que os jornalistas possam trabalhar à vontade.

Paralelamente, é convocado um conselho de ministros extraordinário. O PM quer todos os membros do Governo por perto na hora da comunicação. Vão chegando, um a um. À medida que são dirigidos para uma espécie de cave construída em São Bento nos tempos de António Guterres, expressam quase todos a sua revolta face à atitude de Teixeira dos Santos. “O ambiente era de cortar à faca. Ninguém lhe perdoava a forma insidiosa como planeou o esquema.”

O momento em que o PM encararia a nação através dos ecrãs de televisão aproxima-se rapidamente. Todos os segundos contam. Sócrates manda o seu motorista buscar um fato e uma gravata a sua casa, situada no luxuoso edifício Heron Castilho, perto do largo do Rato. Para além disso, é requisitada a presença urgente da melhor maquilhadora do país: Cristina Gomes.

Faltam poucos minutos para entrar em directo. As televisões estão prontas – demasiado prontas, aliás: assim que constata a sua entrada na sala, a TVI coloca imediatamente as imagens no ar. Problema: Sócrates ainda não vai falar; está apenas a afinar a iluminação e o som com o seu assessor, Luís Bernardo. O resultado é ridículo: o PM em mangas de camisa a dizer, com olhar titubeante: “Ó Luís, vê lá como fico a olhar assim para os… (…) achas que fica bem assim… ou fica melhor assim?”.

Sócrates percebe imediatamente que há qualquer coisa que correu mal, mas está com tanta pressa que não lhe dá importância. Precisa agora falar com os seus ministros. Desce à cave, cumprimenta-os, mas não lhes diz o que se seguirá – a verdade é que não é necessário. Sobe novamente. Pede para ficar sozinho. Normalmente, antes de qualquer discurso importante fica cinco minutos a ensaiá-lo em silêncio. “Tem uma memória prodigiosa. A sua técnica é ir absorvendo as palavras, interpretando-as, encontrando os momentos certos para respirar, para parar, para enfatizar uma ideia. No carro, por exemplo, ele trabalhava com fichas. Ia no banco da frente e durante o caminho lia-as para dentro, não emitia qualquer som, mas era perceptível que estava a testar o discurso. Nisso ele é insuperável.”

Às 20h38 entra na sala. O silêncio é total.

Primeiro o diagnóstico:

– “Esta situação é especialmente grave para o nosso país. Estou firmemente convencido de que, avaliadas todas as alternativas, e depois de todos os contactos que fiz, [a situação] tenderá a agravar-se ainda mais se nada for feito.”

A seguir os adversários:

– “Como sabem, lutei todos os dias para que isto não acontecesse. A verdade é que tínhamos uma solução e ela foi deitada fora. Como na altura alertei, a rejeição do PEC e a abertura de uma crise política vieram fragilizar o país e diminuir a capacidade do Governo para responder a dificuldades.”

A terminar, o tapete lançado ao chão:

– “A minha obrigação é pôr acima de tudo o interesse nacional. Por isso, gostaria de comunicar aos portugueses que o Governo decidiu hoje mesmo dirigir à Comissão Europeia um pedido de assistência financeira.”

Quando regressa, cabisbaixo, aos bastidores, tem Luís Bernardo à sua espera. Quer falar-lhe do que sucedeu com a câmara da TVI.

– Temos um problema.

Sócrates inquieta-se.

– Os gajos da TVI filmaram quando estávamos nos testes e aquilo passou em directo.

O PM reage como esperado. Como era possível aquilo ter ocorrido??? Procura culpados. Quer que Bernardo lhe dê um nome, mas este não entrega ninguém. Era o chefe da equipa.

– A culpa é minha.

O PM não se convence. Ordena-lhe que lhe diga a verdade, que lhe dê o nome do atrasado mental que devia ser punido.

– É minha, a responsabilidade é minha.

Ainda nessa noite, a direcção de informação da TVI contacta o gabinete no sentido de garantir que o que se passou não foi intencional. Mas nesse momento já nada interessa. O que Sócrates verdadeiramente deseja é ir para um restaurante onde seja servida comida italiana. Juntamente com o grupo do costume, vai para o Tivoli, onde, entre um comentário menos simpático sobre Cavaco e uma observação pouco católica sobre os méritos de Pedro Passos Coelho, não se cansa de repetir que os “gajos” não têm noção do mal que fizeram ao país. E que a partir de agora é que verão o buraco em que colocaram o país.

A narrativa do costume voltara a aparecer: ou ele ou o caos.

 

Nota: este texto foi originalmente publicado como um capítulo do livro “Cercado – Os Dias Fatais de José Sócrates“, editado pela editora Matéria Prima e da autoria de Fernando Esteves, diretor do Polígrafo.

 

 

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