
O empresário luso-angolano Hélder Bataglia é a testemunha-chave da acusação a José Sócrates, que hoje é interrogado pelo juiz de instrução Ivo Rosa pelo segundo dia consecutivo, no âmbito da Operação Marquês. Foi Bataglia quem, num depoimento explosivo, revelou a Rosário Teixeira que Ricardo Salgado lhe pediu que fizesse chegar vários milhões de euros a uma conta offshore de Joaquim Barroca, líder do Grupo Lena, que por sua vez transferiu o dinheiro para a orla de Carlos Santos Silva, o amigo de Sócrates que a investigação do Processo Marquês acredita ser seu testa-de-ferro. Alegadamente, esses valores teriam como finalidade pagar ao ex-primeiro-ministro os "serviços" que este teria prestado ao Grupo Espírito Santo no exercício das suas funções governativas.
O que se segue é o relato de dois interrogatórios: o de José Sócrates, em que o socialista - agora ex-socialista, uma vez que se desvinculou do partido - nega conhecer bem Hélder Bataglia; e o do empresário, que foi braço direito de Ricardo Salgado em Angola. Ambos constam de "A Sangue Frio", um livro da autoria do diretor do Polígrafo, Fernando Esteves, em que os bastidores da Operação Marquês são descritos com grande detalhe.
O DIA EM QUE JOSÉ SÓCRATES NEGOU CONHECER BEM BATAGLIA
"Não ande à pesca, senhor procurador!"
Quarta-feira, 27 de maio de 2015
Sentado em frente a José Sócrates, o procurador Rosário Teixeira quer saber tudo sobre a relação do ex-PM com algumas figuras fundamentais para descodificar o alegado esquema de corrupção em que o socialista estará envolvido. Já lhe falou do seu amigo Carlos Santos Silva, do seu primo José Paulo... Estava na hora de passar a outro nome.
– O senhor conhece o senhor Hélder Bataglia e...
Sócrates interrompe. O investigador está a tentar apanhá-lo em contradição...
– Ó senhor procurador, eu já respondi a essa pergunta no primeiro interrogatório [esta é a segunda vez que o ex-PM é interrogado] e o senhor está bem lembrado. Não vamos começar com perguntas tipo andar à pesca para ver se...
– Não, não, não, não...
O socialista está notoriamente agitado...
– Peço-lhe por favor que não entremos por aí!
...mas Rosário Teixeira, líder da Operação Marquês, não se intimida.
– Pronto, eu faço-lhe as perguntas, o senhor tem o direito de responder ou não responder...
– Eu não respondo a perguntas que... Eu sei muito bem, senhor procurador, e aprendi ao longo destes seis meses, que devo servir a justiça. E devo servir a justiça defendendo-me. Defendendo-me, senhor procurador! A minha primeira defesa é pedir ao Ministério Público que não ande à pesca!
Rosário Teixeira insiste. Quer clarificar ao detalhe a relação entre José Sócrates e o empresário luso-angolano. É uma das chaves da investigação. Não deixará que o ex-primeiro-ministro fuja à pergunta. E Sócrates não foge.

– Conheci-o nos últimos anos e estive uma meia dúzia de vezes, não sei precisar quantas, em ocasiões sociais, nomeadamente com a minha família. Porque o senhor Hélder Bataglia é pai da filha da minha prima. Da minha prima, a Maria Filomena, irmã do José Paulo Pinto de Sousa! São meus primos direitos. E ele teve uma filha fora do casamento, que se chama Maria, que é minha prima em segundo grau.
"Ó senhor procurador, eu já respondi a essa pergunta no primeiro interrogatório [esta é a segunda vez que o ex-PM é interrogado] e o senhor está bem lembrado. Não vamos começar com perguntas tipo andar à pesca para ver se..."
Explicada a relação familiar indireta, Sócrates passa ao que sabe interessar verdadeiramente a Rosário Teixeira.
– Sei também que está em negócios com o meu primo. Não sei mais nada, senhor procurador, nada mais. E quando o senhor procurador fala aqui [na indiciação] de Vale do Lobo, o que eu tenho a dizer sobre Vale do Lobo é que não faço ideia quem são os acionistas de Vale de Lobo. O senhor está a dizer que houve corrupção por aprovação do plano regional e isso é mentira, senhor procurador, e não se faz uma afirmação destas sem que o senhor procurador diga: «Olhe, tenho aqui estas provas, tenho aqui estes elementos que contrariam o seu ponto de vista».
Nesta quarta-feira, Hélder Bataglia, 69 anos, é uma das maiores prioridades de Rosário Teixeira e do inspetor tributário Paulo Silva. Percebe-se: os dois acreditam que as avultadas transferências financeiras provenientes de contas tituladas pelo empresário e que tiveram como destinatário final contas em offshore em nome de Carlos Santos Silva – que a investigação acredita ser um testa de ferro do ex-PM – estão relacionadas com a alteração, pelo governo de José Sócrates, do Plano Regional de Ordenamento do Território para o Algarve (PROTAL) que permitiu a viabilização de negócios de hotelaria de luxo no Algarve – com o complexo de Vale de Lobo, de que Bataglia é acionista, à cabeça. Problema: Sócrates continua a negar.
– A única coisa que eu sei de Vale de Lobo é o restaurante onde ia de vez em quando jantar.
Rosário insiste.
– Aquilo que está referido relativamente ao PROTAL é que há uma ligação entre um pagamento feito por parte de uma pessoa ligada ao empreendimento Vale de Lobo [Hélder Bataglia] e a produção desse documento legislativo. O que estou a dizer é que há uma coincidência temporal entre uma coisa e outra.
Sócrates não fraqueja.
– Desculpe lá, mas eu sei lá isso! Eu já lhe disse também, ó senhor procurador, não me obrigue a repetir, não me obrigue a repetir, não me obrigue a repetir!
Claro que obriga.
– O que eu preciso é que o senhor me diga ou volte a dizer que desconhece estes movimentos todos na Suíça.
"O senhor está a dizer que houve corrupção por aprovação do plano regional e isso é mentira, senhor procurador, e não se faz uma afirmação destas sem que o senhor procurador diga: «Olhe, tenho aqui estas provas, tenho aqui estes elementos que contrariam o seu ponto de vista."
– O problema do MP é que não acredita porque só quer acreditar naquilo que acha que deve acreditar. O senhor tem de ter uma base para me acusar disto. Tem de ter uma base.
O inspetor Paulo Silva entra na conversa.
– Peço desculpa, agora faço eu a pergunta. Face a essa proximidade e conhecimento, tem algum conhecimento destes negócios em que tivesse inter- vindo o senhor engenheiro Carlos Santos Silva com Vale de Lobo?
Sócrates faz um compasso de espera...
– Desculpe, eu não sei como é que devo tratar ... lnspetor tributário Paulo Silva.
... e avança...
– Senhor inspetor, eu não preciso que o senhor faça a transcrição ou a descodificação da pergunta do senhor procurador, eu percebi muito bem, eu percebi muito bem! Acontece que eu já respondi a essa pergunta no primeiro interrogatório mas volto a repetir, não tenho conhecimento, não sei (...) Sim, sim, quando se passa lá nos jornais que eu sou um vigarista, que recebi dinheiro de Vale de Lobo, eu não sei quem são as pessoas de Vale de Lobo, quem são os acionistas, nunca me passou pela cabeça que o Hélder Bataglia fosse acionista do, do...
Rosário interrompe. Quer introduzir o tema CGD. O facto de o banco público, por decisão de Armando Vara (amigo de Sócrates e então membro da administração da CGD), se ter tornado acionista de Vale de Lobo provocou fortes suspeitas à investigação.
– Não sabia, por exemplo, que a Caixa Geral de Depósitos era acionista do empreendimento?
Sócrates não vacila.
– Eu??? A que propósito é que eu havia de saber isso? Não fazia a mínima ideia. Você acha que eu havia de saber as participações da Caixa Geral de Depósitos no país?! Não, não sabia nem fazia a mínima ideia, não tenho nenhum conhecimento. Olhe, isso para mim, quando vi isso nos jornais, porque os senhores antes de me interrogarem puseram nos jornais... Alguém pôs nos jornais!
A conversa fica ainda mais azeda. Rosário não vai admitir que Sócrates coloque em causa a sua honorabilidade profissional.
– Não pusemos nos jornais.
Sócrates não desarma.
– Ou permitiram, ou permitiram!
A confusão instala-se.
Rosário:
– Desculpe lá, não...
Paulo Silva:
– Agora...
Sócrates:
– Desculpe...
Paulo Silva:
– Temos que andar a fazer ataques pessoais...
Sócrates de novo:
– Não, eu não faço ataques. Não, não, não. Desculpe, eu não faço ataques!
Paulo Silva:
– ... não faz sentido.
Sócrates...
– Desculpe, se não me querem deixar responder eu estou a dizer...
Rosário:
– O senhor não está a responder. Está a atribuir culpas.
Sócrates de novo:
– Não, não, não. Desculpe, eu estou a responder.
Rosário:
– Eu compreendo perfeitamente que possa não gostar daquilo que aparece nos jornais...
José Sócrates:
– Não posso gostar!
Rosário:
– Mas não vamos discutir isso.
Sócrates tenta acabar com a conversa.
– Poupe-me a esses cinismos.
Rosário:
– Senhor engenheiro, não é isso que está aqui em causa.
José Sócrates remata com ironia. Está possesso.
– Está bem, eu sei que não é...
"Eu??? A que propósito é que eu havia de saber isso? Não fazia a mínima ideia. Você acha que eu havia de saber as participações da Caixa Geral de Depósitos no país?! Não, não sabia nem fazia a mínima ideia, não tenho nenhum conhecimento. Olhe, isso para mim, quando vi isso nos jornais, porque os senhores antes de me interrogarem puseram nos jornais... Alguém pôs nos jornais!"
O interrogatório termina, o socialista regressa à cadeia de Évora e muitos meses passam sem que os investigadores consigam cumprir um objetivo fundamental: interrogar Hélder Bataglia em Lisboa para o confrontar com as declarações do ex-PM. E não é por falta de vontade. O verdadeiro motivo é o teor de um despacho assinado a 29 de maio de 2014 pelo ministro do Interior angolano, Ângelo Tavares, e pelo seu homólogo da Justiça, Rui Mangueira. Diz o que se segue:
«Em conformidade com os poderes delegados pelo Presidente da República, nos termos do artigo 137.o da Constituição da República de Angola (...), os ministros do Interior e da Justiça determinam: é concedida [a nacionalidade angolana] a Hélder José Bataglia dos Santos, natural de Seixal, República portuguesa, nascido a 25 de janeiro de 1947.
Publique-se. Luanda, aos 29 de Maio de 2014»
Apesar de viver em Angola há décadas, apenas em 2014 Bataglia obteve a nacionalidade. Precisamente no momento em que os seus negócios ficaram sob suspeita da justiça portuguesa, que a partir de então se viu de pés e mãos atadas para o obrigar a comparecer a um interrogatório em Portugal. Era preciso um plano B...
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O INTERROGATÓRIO DECISIVO DE HÉLDER BATAGLIA
«Não se dizia que não a Ricardo Salgado.»
Quinta-feira, 5 de janeiro de 2017
Não há alegria, requinte ou aprumo na fatigada sala 2 do edifício do DCIAP. Existe uma mesa em forma de U e várias cadeiras – deliberadamente? – desconfortáveis, cercadas por quadro paredes brancas, despidas, pouco iluminadas.
Elegantemente vestido com um fato escuro e gravata azul, Hélder Bataglia acomoda-se no lugar que lhe foi reservado. Está tenso. As mãos entre as pernas. A expressão fechada. A testa franzida. A seu lado, o advogado Rui Patrício, que durante meses negociou com o MP a realização do interrogatório em solo português, parece tranquilo.
Do outro lado da mesa, os procuradores Rosário Teixeira e Ana Catalão, acompanhados por Paulo Silva, estão prontos. Têm a noção da centralidade do momento. O que acontecer nas próximas horas pode significar a diferença entre o sucesso de uma operação histórica ou o irremediável descrédito da justiça portuguesa. Sabem que a apenas um metro deles não está um santo ou um herói. Mas estará um traidor ou um cobarde?
Rosário Teixeira dá início às hostilidades. Explica a Bataglia que os factos com que será confrontado não serão substancialmente diferentes daqueles a que respondeu em Luanda. Com uma pequena exceção – ou melhor, uma gigantesca exceção:
– Em novembro de 2010, o arguido Hélder Bataglia recebeu numa conta por si controlada, aberta em nome da Green Emerald junto do Crédit Suisse, a quantia total de 15 milhões de euros com origem na conta titulada pela ES Entreprises. Tal montante pago a coberto de um pretenso contrato de prestação de serviços destinava-se na realidade, conforme acordado entre o arguido e responsáveis do GES, a repartir em parte para a esfera pessoal de Ricardo Salgado e outros responsáveis do GES, para além de compensar o arguido pelo pagamento que deveria realizar em sede de um aparelho de negócios com o Grupo Lena a propósito de um imóvel em Angola.
Elegantemente vestido com um fato escuro e gravata azul, Hélder Bataglia acomoda-se no lugar que lhe foi reservado. Está tenso. As mãos entre as pernas. A expressão fechada. A testa franzida. A seu lado, o advogado Rui Patrício, que durante meses negociou com o MP a realização do interrogatório em solo português, parece tranquilo.
Ainda notoriamente tenso, Bataglia não demonstra surpresa perante a exceção enunciada pelo procurador. Sabe o que fez, quando o fez e com quem o fez. E sabe também que o pior está para vir. Rosário prossegue com a introdução. Diz-lhe que quer falar da Escom, claro, mas também do BESA e de outros temas. Pela primeira vez, Bataglia esboça um sorriso tímido. Vai falar – abandonou a sua penthouse luxuosa para o fazer. Mas antes precisa de uns mililitros de água. Tem os lábios secos. Leva uma garrafa à boca e dá um gole mínimo. Inspira. E um lapso de segundo depois assume o ar de quem está pronto para se dar inteiramente sem que se dê absolutamente nada.
– A minha relação com a Escom e com o BESA tem 25 anos, mas passo a resumir...
Recua, com nostalgia aparente, aos tempos da criação da Escom, em 1992, e do seu desenvolvimento explosivo, da mineração às pescas, do transporte aéreo de alimentos ao imobiliário. Sobre a joia da coroa – as torres Escom –, recorda com alguma dose de condescendência o que lhe disse Ricardo Salgado em 2001, no instante em que, ainda no início das obras, olhou para o buraco da torre, que tinha 35 metros: «Vai levar o grupo à falência!»

– Fiquei preocupado, porque achei que estava com excesso de autoestima relativamente àquilo tudo. O que é que eu fiz? Fui a uma série de amigos meus angolanos e pedi-lhes se eles podiam comprar um andar. Em duas semanas, compraram a torre toda e, portanto, demonstrei ao Dr. Ricardo Salgado que o nosso investimento de 65 milhões tinha sido recuperado.
Foi o sucesso das torres que permitiu avançar com a ideia da criação do BESA. Bataglia tratou de tudo com José Eduardo dos Santos. Com o acordo fechado, veio a Portugal.
– Vim a Lisboa todo contente dizer ao Dr. Ricardo Salgado que podíamos ter uma licença de um banco de direito angolano que seria o primeiro, mas ele não ficou tão feliz como eu, porque achou que o mercado angolano era um pouco complicado, mas lá o convenci que era fundamental. E disse-lhe que, em 10 anos, os lucros do BESA seriam superiores aos do banco em Lisboa. Não foram precisos 10 anos, foram só 9...
O interrogatório avança. Sempre em crescendo. O destino final é conhecido: José Sócrates. Mas Rosário Teixeira sabe que até lá chegar há que travar em algumas estações e apeadeiros. Entre os locais de paragem, há um que é fundamental: Ricardo Salgado, que a investigação acredita ter sido o alegado corruptor do primeiro-ministro. Mas a verdade é que neste momento a realidade profunda em que acredita Rosário Teixeira é pouco mais do que uma profundíssima imaterialidade. Falta argamassa para colar as figuras de José Sócrates e de Ricardo Salgado. Terá Bataglia a substância mágica que permita unir as peças do puzzle? Estará aquele bon vivant interessado em mergulhar na perfídia da denúncia? Rosário crê que sim. Olha para os seus apontamentos, encara o empresário e faz-lhe a questão cuja resposta desbloqueia toda a investigação.
"Vim a Lisboa todo contente dizer ao Dr. Ricardo Salgado que podíamos ter uma licença de um banco de direito angolano que seria o primeiro, mas ele não ficou tão feliz como eu, porque achou que o mercado angolano era um pouco complicado, mas lá o convenci que era fundamental. E disse-lhe que, em 10 anos, os lucros do BESA seriam superiores aos do banco em Lisboa. Não foram precisos 10 anos, foram só 9..."
– Vamos entrar nos segundos 15 milhões [de euros] que vêm mais uma vez através da ES Enterprises direitos às suas sociedades, a Markwell e a Monkway. O que é que se recorda disto? Estamos a falar de operações já de 2008.
– Estas operações foram muito simples: foi o Dr. Ricardo Salgado que, numa das minhas vindas a Portugal, pediu para eu passar lá no banco e pediu-me se podia fazer um favor, porque tinha uns compromissos em que tinha de pagar cerca de 12 milhões de euros. Disse-me se eu conhecia o Carlos Santos Silva, eu disse que sim, se tinha conta na UBS, eu também disse que sim, e se eu podia fazer esses pagamentos. Eu disse «sim, Ricardo, se precisas, eu faço. Desde que me transfiras o dinheiro, eu faço esses pagamentos». E aproveitei também para lhe dizer: se vais fazer esses 12, vê se vem mais algum (risos) devido à nossa dívida antiga. Era uma coisa que eu repetidamente insistia com ele, não todos os anos, mas todos os meses. Para não se esquecer.
Bataglia refere-se à compensação que um dia Ricardo Salgado lhe prometera por ter viabilizado junto do governo angolano a licença ban- cária para o BESA e que nunca chegara a cumprir. Rosário prossegue.
– Então vamos lá ver: os termos desse pedido, aparentemente era, ficou com a ideia que era para o Carlos Santos Silva?
– Ele perguntou-me se o conhecia e que era para entregar ao Carlos Santos Silva, exatamente.
– Sem lhe dar detalhes para o que é que era?
– Não me deu detalhe nenhum, nem eu lhe perguntei. Na altura, como deve saber, eram coisas que não se perguntava ao Dr. Ricardo Salgado, não é? Ele pedia-me, eu devia-lhe favores, o maior de todos era apoiar-me na Escom.
– E logo nessa altura ele deu-lhe alguma ideia dos montantes que estariam ali em causa ou que se eram uma sucessão de operações ao longo do tempo?
– Ele disse que ia fazer umas operações até um montante de 12 milhões de dólares.
– A questão dos dólares é porque está habituado em Angola ou...
"Estas operações foram muito simples: foi o Dr. Ricardo Salgado que, numa das minhas vindas a Portugal, pediu para eu passar lá no banco e pediu-me se podia fazer um favor, porque tinha uns compromissos em que tinha de pagar cerca de 12 milhões de euros. Disse-me se eu conhecia o Carlos Santos Silva, eu disse que sim, se tinha conta na UBS, eu também disse que sim, e se eu podia fazer esses pagamentos. Eu disse «sim, Ricardo, se precisas, eu faço."
Bataglia solta uma gargalhada. Claro que são euros. Pede desculpa. Rosário não perde o rumo.
– Em termos dessa operação, isso ia aparecer nas suas contas. Obviamente, o Dr. Ricardo Salgado conhecia as suas contas, mas nessa conversa disse-lhe: «Utiliza esta ou aquela conta.»
– Os detalhes eram os seguintes: eu vinha cá a Lisboa, ia ter com ele ao 15.o andar [da sede do BES, situada na Avenida da Liberdade], sentávamo-nos naquela salinha pequenina, não sei se o sr. procurador conhece no banco?
Rosário Teixeira está familiarizado com o espaço. Salgado é um seu velho conhecido em matéria de investigações, nomeadamente por crimes de fraude fiscal.
– Ele dizia-me: «Vamos fazer agora uma transferência», qual era a conta, eu dava a conta e era, ponto, assim que fazíamos.
Rosário Teixeira quer detalhar, descodificar o percurso do dinheiro. Descreve várias movimentações financeiras ocorridas em 2008 tendo como destino as contas de Carlos Santos Silva. Bataglia ensaia uma explicação.
– Ele [Salgado] sabia da minha relação com o José Paulo. Na prática, o que fiz foi telefonar, na primeira vez, ao José Paulo para ver se combinava uma reunião com o Carlos Santos Silva porque precisava de falar com ele. Depois, disse-lhe que o Dr. Ricardo Salgado tinha dado esta disponibilidade e o que é que queria que eu fizesse. Ele deu-me um papelinho com umas contas, uma ou duas, não me recordo agora. Eu guardava o papelinho, chegava a Luanda, telefonava ao Canals [Michel Canals, gestor de fortunas no banco UBS, na Suíça] e dizia-lhe: «Preciso de fazer uma transferência para as contas x, y e z.» Ele dizia: «Sim senhor, vou fazer, está feita e depois, quando estivermos juntos, assinas.» Era recorrente com o Canals, trabalhávamos muito ao telefone e depois, quando nos encontrávamos em Lisboa, na Suíça ou em Angola – ele também lá ia às vezes – assinava tudo. Era assim que as coisas eram feitas.
– A indicação da conta de destino era o próprio Carlos Silva que lhe trazia?
– O José Paulo não esteve presente. O Carlos Santos Silva foi ter comigo, salvo erro, ao meu escritório. Encontrámo-nos duas ou três vezes por esses assuntos.
"Na prática, o que fiz foi telefonar, na primeira vez, ao José Paulo para ver se combinava uma reunião com o Carlos Santos Silva porque precisava de falar com ele. Depois, disse-lhe que o Dr. Ricardo Salgado tinha dado esta disponibilidade e o que é que queria que eu fizesse. Ele deu-me um papelinho com umas contas, uma ou duas, não me recordo agora. Eu guardava o papelinho, chegava a Luanda, telefonava ao Canals [Michel Canals, gestor de fortunas no banco UBS, na Suíça] e dizia-lhe: «Preciso de fazer uma transferência para as contas x, y e z.»"
– O escritório é onde?
– É nas Amoreiras. Eu dizia-lhe o que era, que tinha a instrução do Ricardo Salgado, ele dava-me a conta e eu, quando chegava a Luanda, telefonava ao Canals...
Paulo Silva decide participar novamente. O especialista na identificação de circuitos financeiros não percebe – ou finge não perceber – por que motivo Bataglia só dava a ordem a Canals quando aterrava em Angola. Surpreendido, Bataglia ensaia o ar de uma criança traquina apanhada pela mãe com o indicador enterrado numa musse de chocolate.
– Era um detalhe, estar a fazer a chamada das Amoreiras a dizer «transfere lá 2 milhões» (risos) e 4 milhões, está a ver (risos)?
Paulo Silva está a ver bem demais.
– É melhor ter cautela, não é isso?
– Eu fazia sempre de Luanda essas coisas... chegava a Luanda e tranquilo...
Igualmente tranquilo, Rosário prossegue.
– Tinha alguma razão para desconfiar de alguma falta de tranquilidade nesta história? Não houve outros pedidos de Ricardo Salgado por causa de operações deste tipo?
– Não, foi só esta. Este conjunto de operações que ele pediu e que foram implementadas.
– Isso não o deixava, pelo menos, desconfortável?
– Vou-lhe dizer: em 2008, o Dr. Ricardo Salgado pedir-me uma coisa dessas, para mim, era um favor que lhe estava a fazer. E não se dizia não ao Dr. Ricardo Salgado naquela altura, como deve saber.
Sim, Rosário sabe. Paulo Silva também. Mas, neste momento, a dupla quer também saber qualquer coisa sobre a relação entre Bataglia e Carlos Santos Silva. É o inspetor tributário quem faz a pergunta.
– Para si, quem era o engenheiro Carlos Santos Silva?
– Era o administrador do grupo Lena. O grande promotor do grupo Lena no estrangeiro, era assim que o José Paulo me falava dele.
– Como é que isto cruza com o Dr. Ricardo Salgado?
– Não sei, é uma questão que tem de lhe perguntar. Ele pediu-me concre- tamente aquelas operações, para entregar àquela pessoa e foi isso que eu fiz. Não perguntei, como deve imaginar, ao engenheiro Carlos Santos Silva porque é que estava a fazer aquelas transferências, ia pôr em causa o Salgado...
...e Salgado não podia ser colocado em causa. Porque Salgado era o Dono Disto Tudo. Paulo Silva insiste. Quer saber se o luso-angolano não estranhou o facto de Salgado não querer fazer transferências diretas. Teria algo a esconder?
"Vou-lhe dizer: em 2008, o Dr. Ricardo Salgado pedir-me uma coisa dessas, para mim, era um favor que lhe estava a fazer. E não se dizia não ao Dr. Ricardo Salgado naquela altura, como deve saber."
– Foi assim que ele optou e eu disse sim...
– Porque havia mais facilidades em justificar pagamentos feitos assim, eventualmente?
– Eventualmente, francamente não sei. Acho que nestas coisas não deve- mos interpelar nem uma parte nem a outra. Cumpri instruções.
Paulo Silva não compra a aparente ingenuidade de Bataglia. Volta à carga, sente que tem ali uma oportunidade de desmontar o provável exercício de amoralidade em curso. Com a pronúncia nortenha que o carateriza, ensaia uma provocação.
– [imagine que...] o Dr. Ricardo Salgado lembrou-se que queria matar uma pessoa qualquer, contratou o engenheiro Carlos Santos Silva [para o fazer]. Então, pega lá, vai estes 15 milhões de euros para matar uma pessoa e, pelo caminho, o senhor era o intermediário...
– Acho que é um exemplo exagerado. O Dr. Ricardo Salgado, em 2008, ninguém em Portugal imaginava que contratasse alguém para matar... Não interpelei o Dr. Ricardo Salgado e implementei as instruções que ele tinha pedido. Isso é que é um facto.
Factos – é precisamente esse o combustível de que se alimenta Rosário Teixeira, que vai em socorro de Paulo Silva.
– Sabia que as contas de destino também eram da UBS?
– Eram da UBS e vim depois a descobrir que eram geridas também pelo Canals.
– Não tinham o nome da pessoa que era titular da conta?
– Não, só tinham o número da conta e o nome de uma sociedade, salvo erro. Já não me recordo se tinha isso...
A memória seletiva de Bataglia não surpreende Rosário. Tem centenas de interrogatórios no currículo, mas nenhum tão decisivo como este. Sabe que não vive um instante banal. Deixar o empresário virar costas sem que todas as linhas do novelo fiquem por desfiar está fora de questão. E é talvez por isso que, carregado de infinita complacência, avança na caça ao pormenor. Os misteriosos encontros com Carlos Santos Silva, por exemplo, como funcionavam?
– Algumas vezes encontrámo-nos na receção do Hotel D. Pedro, junto às Amoreiras [o empreendimento onde se situa o Gattopardo, um dos res- taurantes favoritos de José Sócrates em Lisboa]. Ele dizia-me ao telefone: «Preciso falar consigo». Os encontros nunca foram além dos 10 minutos, porque tínhamos muito pouco o que falar um com o outro.
– Nestas operações, recebeu 15 milhões de euros, transferiu para a dita conta do Joaquim Barroca 12 milhões de euros e o remanescente entrou por conta daquilo que achava que tinha direito [referente ao BESA]?
– Exatamente, com alguma luta.
– Mas isso foi também falado com o Dr. Ricardo Salgado?
– Sempre com o Dr. Ricardo Salgado.
"Algumas vezes encontrámo-nos [Bataglia e Carlos Santos Silva) na receção do Hotel D. Pedro, junto às Amoreiras. Ele dizia-me ao telefone: «Preciso falar consigo». Os encontros nunca foram além dos 10 minutos, porque tínhamos muito pouco o que falar um com o outro."
São 13h21. Só com o que já conseguiu arrancar a Hélder Bataglia, Rosário Teixeira tem razões para festejar. A acusação está aparentemente salva. O corpo e a alma de Salgado foram-lhe servidos em bandeja de prata. Talvez seja ajustado parar para almoço, mas o procurador quer ir mais longe. Percebe que Bataglia está em modo de vingança. Cortar-lhe o ritmo é um erro que sabe não poder cometer. Não está sozinho nessa apreciação: a procuradora Ana Catalão avança com uma inquietação.
– Posso fazer uma perguntinha? Há uma transferência de 5 milhões para a sua conta da Monkway. O sr. Hélder não fazia logo a transferência para a conta que lhe era indicada do valor correto... Dividia aquilo por parcelas por indicação de alguém?
– Não, porque decidia que devia fazer conforme o tempo, o timing, a minha disponibilidade...
Paulo Silva está confuso...
– Se acabava de receber os 5 milhões de Ricardo Salgado porque não entregava os 5 milhões ao engenheiro Carlos Santos Silva?
– Porque entregava o que eu achava que devia entregar na altura e depois a outra parte.
Outro filme que Rosário já viu tantas vezes: a distribuição de verbas em parcelas para não chamar a atenção das autoridades financeiras.
– [Na última transferência] o senhor recebeu 5 milhões de euros e transferiu para o Joaquim Barroca quatro milhões. Foi aqui nesta última que lhe foi dada alguma indicação de «Olha, dos 5 milhões um milhão é para ti»?
– Não. Eu tinha um montante global que tinha que dar. Eu tentava estender esse montante global para me compensar e ressarcir das coisas que já falámos (...) Chegámos a um acordo de 15 milhões e eles iam receber 12. Depois, o modus faciendi era de acordo com as possibilidades de transferência, mas a fotografia global tinha-a desde o início.
Está tudo muito claro na cabeça de Rosário Teixeira. Não consta que o procurador seja especial apreciador de filosofia – prefere o futebol a Aristóteles, mas neste preciso instante há um silogismo que lhe povoa a massa cerebral:
Hélder Bataglia confirma que Ricardo Salgado lhe pediu para fazer chegar dinheiro a Sócrates;
Sócrates recebeu esse dinheiro e dele usufruiu; logo,
Sócrates é corrupto.
O ex-primeiro-ministro é precisamente o tema que se segue.
– Sabia da proximidade de Carlos Santos Silva com o engenheiro José Sócrates?
- Sim, o Zé Paulo dizia-me que eles eram amigos de infância.
- E o sr. Hélder, como conheceu o engenheiro José Sócrates?
– Por via familiar, em casa do Zé Paulo há alguns anos (...) Via-o em festas familiares. A minha filha gostava muito dele, tinha 10 anos mas dizia-lhe algumas coisas e ele gostava muito de contra-argumentar (gargalhada).
– Foi convidado para o lançamento do livro do engenheiro José Sócrates?
– Não. Nem no primeiro nem no segundo. Eu não tinha uma grande relação com ele.
– É verdade que o senhor apresentou o engenheiro Sócrates a Ricardo Salgado?
A memória de Bataglia volta a dar sinais de fragilidade.
– É possível mas não me recordo. Nem o Dr. Ricardo Salgado precisava de...
Rosário não resiste a uma provocação...
– ...Nessa altura talvez não...
Bataglia não evita uma gargalhada...
– Pois...
Rosário Teixeira insiste. Inverte a questão.
– Não é que o Dr. Ricardo Salgado precisasse de si para conhecer Jose Sócrates, mas ele é que podia precisar de si para nessa altura conhecer o Dr Salgado.
– Francamente não me recordo.
Está tudo muito claro na cabeça de Rosário Teixeira. Não consta que o procurador seja especial apreciador de filosofia – prefere o futebol a Aristóteles, mas neste preciso instante há um silogismo que lhe povoa a massa cerebral: Hélder Bataglia confirma que Ricardo Salgado lhe pediu para fazer chegar dinheiro a Sócrates; Sócrates recebeu esse dinheiro e dele usufruiu; logo, Sócrates é corrupto.
De volta a 27 de maio de 2015...
Rosário Teixeira insiste com o tema BES/Bataglia. Quer vencer José Sócrates pelo cansaço.
– Não sabia do interesse ou das ligações do senhor Hélder Bataglia com o GES?
Sócrates indigna-se de novo.
– A que propósito é que vem essa coisa? Vem o Espírito Santo? Desculpe mas quem é que... o Espírito Santo??!!
Rosário insiste. Não deixa o ex-PM desconversar...
– Sabia ou não que ele era próximo da família Espírito Santo, se estava ligado, por exemplo, ao Banco Espírito Santo em Angola?
... mas José Sócrates não desarma.
– Não faço ideia, a única coisa que eu sei é que ele era acionista da Escom e que isso o transformava numa pessoa, digamos, do universo do Banco Espírito Santo, nada mais. Sei o mesmo que o senhor procurador sabe. Nada mais. Aliás, já lhe expliquei isso, tenho uma relação muito distante com o senhor Hélder Bataglia, muito distante. Estivemos em várias ocasiões sociais e nada mais do que isso. Não tenho interesse em ter nenhuma relação com esse senhor. Bom, já lhe tinha explicado isso no primeiro interrogatório, não sei a que propósito é que me pergunta outra vez. Eu pensei que o senhor procurador...
Rosário interrompe...
– Porque... porque vinha precisamente, o que...
...mas Sócrates está embalado.
– É porque quer insistir!
E Rosário, de facto, insiste...
– Aquilo que resulta da documentação financeira obtida na Suíça é que boa parte deste dinheiro, como o senhor teve oportunidade de ler no documento que tem à frente, vem de contas bancárias, sociedades offshore que pertencem ao senhor Hélder Bataglia.
...mas não vale a pena; José Sócrates não lhe dará nada.
– O senhor tem que perguntar ao senhor Hélder Bataglia, tem que perguntar ao senhor Carlos Santos Silva, tem que perguntar ao senhor Joaquim Barroca. Não a mim! O que lhe posso dizer é isto que lhe disse! Se sou próximo do senhor Hélder Bataglia? Não sou, não sou!
José Sócrates reagiu violentamente às revelações de Bataglia. O ex-primeiro-ministro, em comunicado, afirmou que as mesmas «são falsas, destituídas de qualquer fundamento e verdadeiramente absurdas». E prometeu «acionar todos os meios legais para reagir a estes novos episódios, que representam um verdadeiro bullying processual e mediático contra ele dirigido ao serviço deste MP».
No texto do comunicado, os advogados de Sócrates sublinham ainda que este «não tem e nunca teve acesso ou sequer conhecimento de quaisquer contas bancárias na Suíça» e que o socialista «nunca tomou, nem ele nem os Governos a que presidiu, qualquer decisão que direta ou indiretamente favorecesse ou fosse suscetível de favorecer o Dr. Ricardo Salgado ou o GES designadamente em assunto algum relacionado com a PT», repetindo um argumento que já utilizara com Rosário Teixeira e Paulo Silva.
