
Acabaram os debates quinzenais na Assembleia da República. A decisão foi tomada esta quinta-feira, 23 de julho, com os votos favoráveis de PS e PSD. Ainda assim, a decisão esteve longe de ser unânime: aos votos contra do Bloco de Esquerda, PCP, PEV, CDS, PAN, Chega, Iniciativa Liberal e das deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues, juntaram-se 28 deputados do PS e sete do PSD. Os socialistas tiveram ainda cinco deputados que optaram por se abster.
Esta decisão, que teve origem numa proposta do presidente do PSD, Rui Rio, negociada depois com o PS e à qual o primeiro-ministro não se opôs, fará com que Portugal passe a ser uma das democracias desenvolvidas com menos escrutínio parlamentar?
Ruxandra Serban, estudante de doutoramento no Departamento de Ciência Política da University College London, analisou a forma como interagem os Parlamentos e os Governos de 32 países, entre os quais Portugal.
Nas democracias observadas, foram identificadas três modalidades para chamar os líderes governamentais aos Parlamentos: em plenário coletivamente, em plenário individualmente e em comissão individualmente.

Entre os países em que é o primeiro-ministro a responder às questões, destacam-se a Irlanda, o Reino Unido, a República Checa e a Dinamarca, onde há uma sessão por semana. Do outro lado da tabela, avança o mesmo estudo, está Israel, onde o primeiro-ministro só responde em plenário uma vez por ano.
Nos mecanismos coletivos, em que não é necessariamente o primeiro-ministro que é questionado, são de referir os casos da Austrália e do Canadá, que têm sessões todos os dias e onde o primeiro-ministro participa várias vezes por semana. Já na Suécia, existem sessões parlamentares uma vez por semana, mas o chefe de governo só é obrigado a comparecer uma vez por mês.
Utilizando as definições do estudo de Serban como referência, poder-se-á dizer que com a nova legislação Portugal passará de um mecanismo de questionamento individual para um coletivo. Com o fim dos debates quinzenais com o primeiro-ministro, haverá sessões mensais em dois formatos alternados: um de política geral com o chefe de Governo e um de política setorial em que estarão presentes os ministros responsáveis pela área de incidência do debate. A presença do primeiro-ministro no debate setorial será facultativa. Ou seja, o primeiro-ministro só será obrigado a ir ao parlamento de dois em dois meses.
Com o fim dos debates quinzenais com o primeiro-ministro, haverá sessões mensais em dois formatos alternados: um de política geral com o chefe de Governo e um de política setorial em que estarão presentes os ministros responsáveis pela área de incidência do debate.
A decisão criou clivagens internas ente PS e PSD. A líder da Juventude Social Democrata, Margarida Balseiro Lopes, não escondeu a sua indignação pela postura de Rui Rio numa publicação nas redes sociais após a votação. “É insólito ser o maior partido da oposição a propor a redução do escrutínio da atividade do Governo. Tanto mais que este Governo não tem por hábito não responder à esmagadora maioria das perguntas, o que torna ainda menos defensável a diminuição de oportunidades para questionarmos”, escreveu.

Uma visão política que só pensa na governação
Em declarações ao Polígrafo, o politólogo António Costa Pinto corrobora as críticas de quem contesta o fim dos debates quinzenais, não duvidando que se trata de uma “má decisão”, que “subestima o Parlamento e o ato de prestar contas do Governo e do primeiro-ministro” à Assembleia da República. Ainda assim, relembra que “Portugal já conheceu esta realidade e não aconteceu nada de dramático” para o espaço de debate democrático.
Ao Polígrafo, o politólogo António Costa Pinto afirma que o fim dos debates quinzenais “subestima o Parlamento e o ato de prestar contas do Governo e do primeiro-ministro” à Assembleia da República.
“A grande maioria dos regimes políticos das democracias europeias são do tipo parlamentar e portanto o Parlamento é uma instância recorrente com uma grande capacidade de controlo sobre a atividade dos governos”, reforça Costa Pinto, que destaca os casos inglês, belga e holandês como exemplares a esse nível.
Para o professor e investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, a decisão ganha ainda mais relevo por se tratar do PSD, que é neste momento o principal partido de oposição ao Governo liderado por António Costa. Ou seja, para António Costa Pinto a ideia de Rui Rio representa uma “visão política” baseada numa perspetiva “exclusiva” de governação e não de “zelo pelo funcionamento das diversas instituições políticas”. “O principal partido da oposição teria maior interesse em escrutinar o Governo em exercício através do Parlamento, portanto ainda se percebe menos a iniciativa” levada a cabo por Rui Rio, acrescenta.
A “maçada” que une Costa e Rio
O politólogo André Freire não esconde que vê com "muito maus olhos” a iniciativa dos dois maiores partidos portugueses: “É pena que isto seja feito numa espécie de conluio entre o PS e PSD, embora com algumas dissidências, que saúdo, de ambas as bancadas", diz o professor catedrático, que vai mais longe nas críticas : "A decisão é uma espécie de bloco central a funcionar em cartel, ou seja, a limitar os direitos das minorias”.

Em declarações ao "Expresso", o presidente do PSD, Rui Rio, afirmou que os debates quinzenais não traziam “qualquer dignidade” e que “não há uma forma única de fazer as coisas”. “Agora, o Primeiro-Ministro não pode passar a vida aqui permanentemente. Tem de trabalhar”, defendeu então. Uma posição que André Freire “desmonta”: as idas aos debates quinzenais “fazem parte do trabalho do primeiro-ministro e do Governo, são um mecanismo de prestação de contas, de escrutínio do Executivo pelo Parlamento que é uma medida fundamental de transparência e de prestação de contas”.
O politólogo André Freire não esconde que vê com "muito maus olhos” a iniciativa dos dois maiores partidos portugueses: “É pena que isto seja feito numa espécie de conluio entre o PS e PSD, embora com algumas dissidências, que saúdo, de ambas as bancadas", diz o professor catedrático, que vai mais longe nas críticas : "A decisão é uma espécie de bloco central a funcionar em cartel, ou seja, a limitar os direitos das minorias”.
Tal como António Costa Pinto, o professor catedrático recorre ao exemplo do parlamento britânico e recorda que a “presença do primeiro-ministro e dos membros do governo, que também são deputados, é regular”. “Penso que o mecanismo é bom e também nós podemos inovar e inovar bem”, sublinha.
“Vai haver menos oportunidade de debate político no Parlamento, entre o governo e a assembleia; entre a maioria e as oposições, em que o primeiro-ministro é chamado a prestar contas. Acho que isso é um problema de qualidade da democracia”, não tem dúvidas em dizer, apesar de sublinhar que a decisão não faz com que o regime democrático acabe. “Mas a sua qualidade, transparência e prestação de contas ficam um bocadinho beliscadas”, defende.
André Freire relembra também que a ideia dos debates quinzenais, instituídos em 2007, não teve “nenhuma avaliação negativa”. E deixa duras críticas tanto ao primeiro-ministro e secretário geral do PS, como ao líder do PSD. “António Costa deve achar uma maçada ter que ir tantas vezes ao Parlamento prestar contas e Rui Rio está no mesmo comprimento de onda, mas isto não é um problema de maçada e acho que a democracia portuguesa não fica a ganhar”.

“Nada de especial”, garante Adelino Maltez
Opinião absolutamente contrária tem o politólogo José Adelino Maltez, para quem a alteração aprovada esta quinta-feira não passa de uma “decisão regimental” e não tem “nada de especial”. A Assembleia da República, defende em declarações ao Polígrafo, é “soberana” e em nada esta mudança “diminui a democracia ou o poder parlamentar”.
Adelino Maltez assume que houve quem transformasse esta decisão num “caso de défice de democracia”, mas considera que o problema deve ser analisado por outro prisma. Isto porque os debates “eram chatos” e de "resultado previsível". “É raro que um Governo e o respetivo primeiro-ministro percam um debate deste tipo, porque têm uma informação que a oposição não tem”, defende o politólogo, que também via o modelo dos debates quinzenais como “muito repetitivo”.
Afastada está, na opinião do especialista, igualmente a possibilidade de esta decisão de PS e PSD representar uma decisão do "bloco central" que afasta os outros partidos com assento parlamentar do debate democrático. Adelino Maltez considera que esse afastamento acontece quando há uma “posição dominante de representação nos parlamentos autárquicos, permitindo que controlem completamente o processo político”. “Não é no Parlamento que está a causa este abuso de posição dominante”, reforça.
“Não é no Parlamento que está a causa este abuso de posição dominante”, defende Adelino Maltez em declarações ao Polígrafo.
Para Maltez é “mais importante” perceber os defeitos das comissões parlamentares de inquérito ou a não resposta a requerimentos. "A forma como os Governos metem na gaveta um determinado número de requerimentos sem qualquer consequência, escondem as perguntas... Isso é que nos falta aqui”, conclui.
