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A guerra de desinformação odiosa contra Joacine Katar Moreira

Este artigo tem mais de um ano
Não tem nacionalidade portuguesa, estudou "à conta do contribuinte" português, "ergueu a bandeira da Guiné-Bissau" ao celebrar a eleição, violou a Constituição da República Portuguesa, finge ou exagera a gaguez, entre outras falsidades sobre a recém-eleita deputada do Livre que se propagaram nas redes sociais, embebidas em mensagens de ódio, racismo e xenofobia. "Isto sempre foi uma guerra para pessoas como eu", retorquiu a visada. O Polígrafo analisa uma série de publicações dessa guerra em curso.

À medida que o partido Livre começou a destacar-se nas sondagens referentes às eleições legislativas, sobretudo nas duas últimas semanas da campanha, intensificou-se a vaga de ódio, mentiras e desinformação contra a sua cabeça-de-lista no círculo de Lisboa, Joacine Katar Moreira (JKM), precisamente a candidata do Livre que tinha mais intenções de voto e maiores probabilidades de ser eleita.

O primeiro alvo foi a sua gaguez: nas redes sociais espalharam-se vídeos de discursos proferidos por JKM alguns meses antes da campanha eleitoral, nos quais a gaguez não era tão notória, insinuando-se ou acusando-se explicitamente a candidata de fingir ou exagerar a gaguez durante a campanha por motivos eleitoralistas. O Polígrafo desmentiu essa fake news viral através de dois artigos (pode ler aqui e aqui), mas ainda assim continua a receber pedidos de verificação sobre essas alegações falsas em torno da perturbação da fluência da fala de JKM (algo que não é recente e foi desde sempre assumido pela própria).

Depois de ter sido eleita deputada à Assembleia da República, essa vaga de desinformação tornou-se ainda mais violenta, explorando outros alvos como a nacionalidade de JKM, o seu percurso de vida ou as cores das bandeiras que foram empunhadas durante os festejos da sua eleição. Lançou-se até uma petição pública que visa impedir JKM de assumir o mandato de deputada.

“Gente que de repente sonha com a minha desistência do cargo de deputada a quatro dias depois das eleições, acreditando que infernizando a minha vida, não contribuindo em nada e minando tudo, ou então assinando petições, escutem: isto sempre foi uma guerra para pessoas como eu“, retorquiu entretanto a própria, através de uma mensagem publicada no Twitter, a 9 de outubro. “Mas vai ser bonito. A igualdade é só beleza. Daqui a nada a gaguez deixa de ser o elemento central e começará a tentativa de esvaziamento intelectual e depois será a procura de falhas e contradições e depois e depois e depois numa valsa sem fim. Faz parte, embora não devesse”.

O Polígrafo efetuou uma recolha de vários conteúdos online que se inserem na guerra de desinformação odiosa que está a ser movida contra JKM, apresentando-os neste artigo com a correspondente verificação de factos.

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JKM não tem nacionalidade portuguesa

Estão a espalhar-se nas redes sociais múltiplas publicações com imagens retiradas da página de perfil biográfico de JKM na Wikipédia, destacando a indicação de que nasceu no dia 27 de julho de 1982 em Bissau, Guiné-Bissau. A partir dessa informação – que é verdadeira – conclui-se que a recém-eleita deputada à Assembleia da República não tem nacionalidade portuguesa, pelo que deveria ser impedida de assumir o mandato.

“Joacine Katar [Moreira] nem portuguesa é. Como é possível ser deputada no Parlamento português”, acusa-se na mensagem que acompanha uma dessas publicações. E nas caixas de comentários abundam os exemplos de discurso de ódio, racismo e xenofobia: “Fora com canalhada como esta”; “Vá para o país dela e já pode descascar bananas”; “Se agora está assim, um indiano, uma senegalesa, uma angolana e mais dois não sei de onde, na próxima legislatura podemos ter chineses, brasileiros paquistaneses, romenos, ucranianos…”

Sim, é verdade que JKM nasceu na Guiné-Bissau, mas vive em Portugal desde 1990, aos oito anos de idade, e tem nacionalidade portuguesa. Aliás, se não tivesse nacionalidade portuguesa (ou brasileira), JKM não poderia ter-se candidatado à Assembleia da República. De acordo com informação disponibilizada na página da Comissão Nacional de Eleições (CNE), só podem ser candidatos em eleições legislativas “os cidadãos portugueses e os cidadãos de nacionalidade brasileira, residentes e recenseados em território nacional, que possuam o estatuto de igualdade de direitos políticos“.

O facto é que JKM tem dupla nacionalidade: portuguesa e guineense. Pode ser candidata tendo dupla nacionalidade? “Sim, desde que não exerça, em órgãos do Estado do país da outra nacionalidade, cargos políticos ou altos cargos públicos equiparados a estes”, informa também a CNE.

As publicações nas redes sociais que lançam dúvidas ou garantem mesmo que JKM não tem nacionalidade portuguesa estão a difundir uma evidente falsidade, mas já acumulam milhares de partilhas e instigam uma torrente de mensagens de ódio, racismo, xenofobia, entre outras formas de violência.

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JKM estudou “à conta do contribuinte” português

Outra fonte de desinformação e difamação contra JKM é uma série de publicações que lançam o “desafio da Joacine”, consistindo na suposta inversão do percurso de vida de JKM trilhado (imaginariamente) por alguém nascido em Portugal que emigra para a Guiné-Bissau e acaba por ser eleito deputado à “Assembleia da Guiné” (presume-se que à Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau, pois JKM nasceu na Guiné-Bissau e não na vizinha República da Guiné).

Estas publicações – apesar das recorrentes mensagens insultuosas que as acompanham – parecem enquadrar-se no âmbito do exercício de sátira e humor, mas têm sido difundidas em páginas ligadas a outros partidos políticos (nomeadamente o Chega) e extravasam claramente esse âmbito ao sugerir que JKM “entrou ilegalmente” em Portugal (sem qualquer sustentação factual) e que “tirou a licenciatura, mestrado e doutoramento à conta do contribuinte” português.

No que respeita aos estudos de JKM, a própria descreveu essa fase da sua vida em recente entrevista ao jornal “i” (edição de 26 de agosto de 2019), da qual destacamos a seguinte passagem: “Fui alguém que entrou na universidade fazendo exames nacionais para as várias disciplinas. Fiz a minha licenciatura com imensas dificuldades, não houve um ano em que eu não pusesse a hipótese de desistir, porque não tinha dinheiro. Era a mais velha de 11 irmãos e não achava que iria ser eu a começar a exigir aos meus pais que me pagassem a universidade. Eles tinham mais era que se esforçar para meter água em casa, alimentar os meus irmãos e por aí fora. Portanto, trabalhei durante a minha licenciatura quase inteira. E, no último ano, consegui uma bolsa ligeiramente maior, era uma bolsa de 200 e tal euros ao mês e  como estava numa residência universitária e recebia esses 200 e tal euros, a minha média disparou para 17 a 18. Antes disso, trabalhava, às vezes oito horas ao dia, outras só da parte da manhã, porque tinha aulas à tarde e a seguir compensava trabalhando no fim-de-semana das 9h às 23h“.

“Trabalhei em lojas e como empregada de quartos… Também trabalhei com empresas de marketing. Andava de hipermercado em hipermercado a dizer: ‘Minha senhora, boa tarde, já conhece a nova linha de produtos da Garnier?’. As minhas colegas da universidade iam ter comigo na minha hora do almoço, que era a única que tinha, para preparar os trabalhos da universidade”, acrescentou JKM, na mesma entrevista.

Questionada sobre qual era “a sua média nesses anos em que teve que conjugar os estudos com o trabalho“, JKM respondeu que “era de 14, 15… O que era já uma média alta para uma licenciatura de História, porque raramente te davam mais do que um 16. Nesse último ano tive a noção objetiva de que poderia ter feito a licenciatura com uma média altíssima, se tivesse tipo a hipótese de ficar horas na biblioteca a estudar e a fazer as coisas, sem estar com a ansiedade em alta com dinheiros e propinas. Falo nisto porque normalmente sou usada para [veicular] a ideia do ‘olha, se se esforçarem… aquela não tinha recursos financeiros mas estudou e agora tem uma licenciatura, um mestrado, um doutoramento’. Nada disto. Isto é a falácia da meritocracia, que arrasa com todas as hipóteses de ascensão social”.

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JKM “ergueu a bandeira da Guiné-Bissau” ao celebrar a eleição

Na madrugada de 7 de outubro de 2019, quando foi confirmada a eleição de JKM como deputada à Assembleia da República, as principais estações de televisão portuguesas transmitiram imagens dos festejos de militantes e apoiantes do Livre reunidos na Fábrica do Braço de Prata, em Lisboa. Foi nessas imagens que, durante breves segundos, apareceu uma bandeira nacional da Guiné-Bissau empunhada por um indivíduo que estava atrás de JKM no palco.

É notório que não era JKM quem estava a erguer a bandeira e a própria já explicou isso mesmo em entrevista à SIC, ontem, dia 10 de outubro, no “Programa da Cristina” (pode ver aqui). Não obstante, a vaga de ódio, mentiras e desinformação contra JKM voltou a intensificar-se por causa dessas imagens da bandeira da Guiné-Bissau que, aliás, motivaram o lançamento de uma petição pública visando o “impedimento de tomada de posse da impatriota Joacine Katar Moreira”, já com mais de 19 mil signatários.

No texto da petição em causa remete-se para o Artigo 11º (Símbolos nacionais e língua oficial) da Constituição da República Portuguesa (CRP), onde se determina que “a Bandeira Nacional, símbolo da soberania da República, da independência, unidade e integridade de Portugal, é a adotada pela República instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910”.

Salta-se depois para o Artigo 12º (Princípio da universalidade), no qual se estabelece que “todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição”, para concluir que “o comportamento da suposta cidadã, Joacine Katar Moreira, fica novamente em causa por se verificar um comportamento anti-patriótico“, consistindo no “acto” de “deixar que nos festejos da sua eleição fosse exibida a bandeira da Guiné-Bissau” (ao contrário das publicações referidas anteriormente, no texto da petição não se acusa JKM de ter erguido a bandeira, mas de ter “deixado” que o fizessem).

Ora, o Artigo 11º da CRP apenas determina qual é a bandeira nacional da República Portuguesa, não fazendo qualquer referência à exibição de bandeiras de outros países quando se festeja a eleição de uma deputada à Assembleia da República. Acresce o facto de não ter sido a própria JKM a erguer a bandeira em causa, pelo que nem sequer poderia ser diretamente responsabilizada por essa situação. Ou seja, não tem fundamento a alegada violação da CRP por parte de JKM e o mesmo se aplica ao suposto “comportamento anti-patriótico”.

Quanto à Lei Nº34/87 de 16 de julho, também invocada no texto da petição, “determina os crimes da responsabilidade que titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos cometam no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhes são aplicáveis e os respectivos efeitos”. Mas JKM não exercia qualquer cargo político quando proferiu os discursos dos “vídeos disponibilizados na Internet” que servem de base à acusação de “traição à Pátria“. Mesmo que essa acusação tivesse algum fundamento, não teria aplicação legal. Trata-se de mais uma efabulação.

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