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Animais em campanha. Gatos, cães e coelhos não aparecem por acaso e são parte importante na “humanização dos atores políticos”

Este artigo tem mais de um ano
Berlusconi resgatava cordeiros, Obama ficou lembrado pelo Cão de Água Português, Roosevelt tinha um galo perneta e Putin chegou a ter um labrador, um pastor búlgaro e um Akita inu. Separados por ideologias, uniram-nos os animais de estimação que, de forma quase planeada, mostravam ao mundo em ensaios fotográficos e produções pomposas. Em Portugal, "Zé Albino", "Acácia", "Bala", "Camões" e "António" também entraram na "competição". São "animais políticos" que, entre fotos caseiras e despretensiosas, vão passando aos eleitores uma imagem há muito planeada. Aquela que se quer "construir e alimentar sobre os mesmos".

“O homem é um animal político. Um homem que vive isolado ou é um Deus ou uma Besta”

Quando Aristóteles desdobrou o conceito de “animal político” e o atribuiu ao Homem, lembrou que aquele que não o é só se pode assemelhar a um pássaro que voa sozinho e que, aquele que o é, dispõe do poder da fala e do raciocínio moral. O que faltou a Aristóteles não foi só uma preposição, mas antes uma conta no Twitter ou uma entrada direta para a Casa Branca, onde há anos os animais são fotografados ao colo de presidentes norte-americanos.

Em Portugal, ao lado do animal político, que anda por esta altura em campanha eleitoral pelo país, tem estado o animal do político, cuja escolha pouco ou nada parece ter a ver com ideologias. Se assim fosse, aliás, Rui Rio não partilharia o gato com Rui Tavares e este, por sua vez, não o partilharia com André Ventura. Há quem diga, aliás, que a coelha “Acácia” em nada se adequa às ideologias do líder do partido que a acolheu, mas pode um coelho dizer alguma coisa sobre quem o adota?

O Polígrafo falou com líderes de partidos, especialistas em comunicação política e ainda dois médicos veterinários. Afinal, há ou não um propósito na partilha de fotografias de animais em tempo de campanha? Podem os olhos amorosos de um gato preto e branco anular as convicções mais extremistas de um líder político? E o sorriso que uma cadela dá à máquina fotográfica pode ou não valer o voto de um indeciso?

Quem não tem cão…

Quando, em 2019, André Ventura apresentou ao país a coelha que tinha comprado há sete anos, a reação geral foi de gozo, espanto, alguma admiração e, sobretudo, humanização de um candidato que propunha, à data, o fim da educação e saúde públicas. Havia quase que uma contradição entre aquilo que o líder do recém-formado Chega defendia publicamente e a forma como dava colo à coelha “Acácia”, que aliás tinha sido comprada como sendo um coelho.

“O animal de estimação evidencia normalmente esse lado mais pessoal do ator político. Tendencialmente, somos mais tolerantes com os erros e menos exigentes com a conduta dos amigos. Há, nessa medida, vantagens em associar um político a essa figura mais próxima”, considera Sofia Aureliano, especialista e coordenadora da Pós-Graduação em Comunicação e Marketing Político do ISCSP.

“O animal de estimação evidencia normalmente esse lado mais pessoal do ator político. Tendencialmente, somos mais tolerantes com os erros e menos exigentes com a conduta dos amigos. Há, nessa medida, vantagens em associar um político a essa figura mais próxima”.

Mas porquê um coelho? Ao Polígrafo, os médicos veterinários Diogo Sá Campos e Luís Nuno Silva explicam que esta escolha se prende “primeiramente com o facto de se gostar do animal em si e da sua aparência. Depois, é também um animal que não tem tanta necessidade de interação com os humanos como um cão ou um gato, pelo que talvez seja mais ajustado para pessoas que passem pouco tempo em casa, por motivos profissionais”.

Os coelhos tendem mesmo a não exigir “tanta atenção no sentido emocional (apesar de conseguirem criar laços com as pessoas e até gostar dessa companhia)”, embora necessitem que “mudanças na sua saúde sejam rapidamente detetadas, uma vez que são animais que não podem passar muitas horas sem ingerir alimento e rapidamente deterioram o seu estado”.

Cerca de um ano depois, já no início de 2021, soube-se que Ventura tinha adoptado um gato vadio, cuja residência seria a sede do partido Chega, em Lisboa. “António” de batismo, o “chegato” (assim lhe chamou o canal de apoio ao partido) começou a aparecer sucessivamente com o líder em fotografias caseiras, todas elas registadas por Ventura e divulgadas na sua conta pessoal no Twitter (pode ver aqui, aqui, e aqui).

[twitter url=”https://twitter.com/AndreCVentura/status/1366783449454039048″/]

Este processo, nem demasiado óbvio nem deixado ao acaso, valeu a Ventura várias partilhas, “likes” e comentários. Mas será que podemos assumir que foram divulgações propositadas? “Se não são, deviam ser”, afirma ao Polígrafo Sofia Aureliano. “Os políticos, assim como os titulares de outros cargos, têm de compreender que o exercício de funções e a visibilidade pública associada faz com que não possam ter (ou não devam ter) um registo pessoal, mesmo em plataformas desse género. Têm persona pública que têm a responsabilidade de preservar, com os constrangimentos e limitações que isso exige”.

“Os políticos, assim como os titulares de outros cargos, têm de compreender que o exercício de funções e a visibilidade pública associada faz com que não possam ter (ou não devam ter) um registo pessoal, mesmo em plataformas desse género. Têm persona pública que têm a responsabilidade de preservar, com os constrangimentos e limitações que isso exige”.

Não significa isto, conclui a especialista, “que todas as publicações sejam desprovidas de genuinidade ou com intenção de atrair eleitorado. Podem ser verdadeiras sem esse objetivo. Os políticos têm ideias, pontos de vista que gostam de expor, naturalmente. Às vezes, até sabem que as ideias que defendem podem afastar eleitorado. Desde que sejam genuínas e coerentes com a sua ação, não devem prejudicá-los grandemente. Mas nunca podem ignorar o papel que têm e a responsabilidade associada”.

Mas se este ser engravatado pode transmitir uma imagem de proximidade, o que dizer de João Cotrim de Figueiredo, líder do Iniciativa Liberal, que surgiu já por duas vezes no Twitter com a roupa casual que não lhe é comum em televisão e, sobretudo, com animais nela pendurados? O líder responde: “A rede social Twitter tem uma linguagem muito própria, rápida, que convida a interações visuais e algumas brincadeiras, possibilitando também mostrar um lado mais pessoal.”

[twitter url=”https://twitter.com/jcf_liberal/status/1483916312409686016/photo/1″/]

Quanto à “cadela liberal Bala”, Cotrim diz ao Polígrafo que se trata de um membro da família e que assim se chama por ser “incrivelmente veloz”. Numa outra foto, o líder do IL surge ao lado de um “rafeiro”, no Alentejo. Mas será que também a escolha do animal importa na hora de nos identificarmos com um político?

No que respeita à raça, Diogo Sá Campos e Luís Nuno Silva consideram que a compra pode ter por base “fatores estéticos ou de moda (como atualmente ter um bulldog francês), ou por já se ter experiência com uma raça e gostar da personalidade, atividade e aparência dessa raça”. “É relativamente fácil prever como será no geral a personalidade de um cão de uma determinada raça. Algumas pessoas gostam de determinados traços de carácter em cães e gostam de saber que com outro cão da mesma raça vão provavelmente repetir as mesmas características. Em gatos é bem mais difícil de prever o que vai sair dali em termos de personalidade, mesmo em raças específicas”, indicam os veterinários.

Ainda assim, os especialistas não acreditam que “comprar um animal de raça divulgue alguma coisa menos boa sobre alguém”. “Há muitos animais abandonados e a necessitar de um lar, mas isso não faz das pessoas que os adotam pessoas melhores do que as que compram. Importante é dar amor e uma vida boa aos animais que escolhemos para a nossa família”, fundamentam.

“Gato Preto, Gato Branco”

Mais de 54% dos lares portugueses tinham, em 2020, pelo menos um animal de estimação, sendo que, no mesmo ano, havia mais de 2,6 milhões de animais de estimação registados em Portugal. Destes, quase 2,4 milhões eram cães, havendo ainda mais de 241 mil gatos e 1.191 furões. Significa isto que seria mais inteligente do ponto de vista político posar ao lado de um cão? Não.

Do ponto de vista de preferências, e de acordo com os resultados de um estudo realizado pela Budget Direct Pet Insurance, os gatos são mesmo mais populares do que os cães em mais de 90 países. Este relatório teve por base as publicações em contas de Instagram e ainda as hashtags que dizem respeito aos animais de estimação. Na Europa, e especificamente em Portugal, os gatos levam vantagem na preferência.

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Tanto o médico veterinário Diogo Sá Campos como Luís Nuno Silva consideram que a escolha de um animal pode refletir muito sobre a personalidade de quem o adota: “Há pessoas mais fascinadas pelo sentido de lealdade dos cães, enquanto outras são seduzidas pela personalidade mais marcada dos gatos.”

“Não creio que seja possível ‘adivinhar’ a personalidade de alguém só pelo facto de ter gatos, mas o que creio é que a maior parte dos tutores de gatos aprecia nestes animais a sua agilidade, coordenação, o facto de terem realmente uma personalidade marcada e única e de serem na sua grande maioria independentes. Ao mesmo tempo podem ser bastante próximos das pessoas para terem afetos e atenção/comida. Costuma dizer-se que os gatos têm o seu staff (os seus humanos). Um tutor de um gato é alguém que não se importa de ter esta ‘função’ perante os seus gatos”, acrescenta Sá Campos.

A construção da imagem pública depende também disto, refere Sofia Aureliano, que lembra que a “presença de animais no storytelling de políticos tem o objetivo de consolidar uma imagem que se pretende construir e alimentar sobre os mesmos. Veja-se [Vladimir] Putin e os cavalos, animais fortes e robustos, com quem ele fotografa em momentos de introspecção e com semblante carregado. Sempre com cenários muitíssimo bem preparados, em que o domínio e a liderança são palavras de ordem”.

A construção da imagem pública depende também disto, refere Sofia Aureliano, que lembra que a “presença de animais no storytelling de políticos tem o objetivo de consolidar uma imagem que se pretende construir e alimentar sobre os mesmos.

Os veterinários consultados pelo Polígrafo acreditam, por outro lado, que as preferências em relação aos animais são mutáveis e que não relevam muito sobre o seu dono. “Há alturas em que a nossa vida se adequa mais a ter um cão, ou um gato, ou outro animal. Não creio que defina traços da nossa personalidade de esse modo decisivo. No entanto alguns estudos feitos na Universidade do Texas indicam que, por exemplo, 11% dos tutores de cães são mais autodisciplinados, têm forte sentido de dever e tendem a criar mais planos para a sua vida”.

Por sua vez, segundo o mesmo estudo, “15% dos tutores de cães são mais extrovertidos, 11% dos tutores de gatos consideram-se pessoas mais abertas e destacam-se em campos como a curiosidade, criatividade e arte e 12% dos tutores de gatos são mais neuróticos que os de cães (facilmente stressados, ansiosos e com preocupações)”.

O ‘bicho’ quis mesmo aparecer?

Com sorte, e porque as sondagens não o preveem, o “Zé Albino” de Rui Rio pode valer alguns dissabores a António Costa. Mas porquê divulgá-lo pela primeira vez a 8 de janeiro deste ano? “Tendo em conta o momento em que são publicados, é difícil não fazer uma leitura eleitoral desse tipo de posts“, considera Rita Figueiras, investigadora na área da comunicação política e professora na Universidade Católica Portuguesa.

“Independentemente da sua relevância, estas são publicações que pretendem ter algum humor e ironia com a ajuda de animais — estratégias que potenciam o alcance e disseminação da mensagem. Permitem também uma forma diferente de intervenção política“, acrescenta a investigadora.

Se assim é, Rui Tavares, do Livre, leva um avanço significativo em relação aos seus oponentes. Entre tweets originais e interações com outras contas, Tavares já divulgou um total de 24 fotografias e um vídeo no Twitter com o seu gato laranja “Camões”, a quem “vazou um olho”. Ainda assim, e com mais uma vantagem em relação a Rio, Ventura e Cotrim de Figueiredo, o líder do Livre parece ter clonado o gato mais “famoso”, com “Emílio” e “Leôncio” a aparecerem por várias vezes nas fotografias divulgadas (pode ver aqui, aqui, aqui e aqui, por exemplo).

Sofia Aureliano não lhe chamaria uma jogada política, mas confessa que esta é uma “ação típica de uma estratégia de marketing político, já bem consolidada, que é a da humanização dos atores políticos. Os eleitores associam normalmente o político a um ser distante e frio, engravatado e de imagem rigorosa. Por isso, há necessidade de demonstrar um lado mais humano, mais próximo, do dia-a-dia, do pai de família, que transforma o político num ser ‘como todos nós'”.

“Os eleitores associam normalmente o político a um ser distante e frio, engravatado e de imagem rigorosa. Por isso, há necessidade de demonstrar um lado mais humano, mais próximo, do dia-a-dia, do pai de família, que transforma o político num ser ‘como todos nós'”.

Também Rita Figueiras acredita que, na era da comunicação política profissional, “é difícil imaginar políticos sem consciência mediática. E mesmo que não tenham essa intenção, ela é-lhes atribuída e rapidamente percebem que determinadas mensagens lhes dão visibilidade (positiva ou negativa)”.

Inês Sousa Real, do PAN, que não tem tido particular participação nesta campanha “animal”, congratula as restantes forças políticas que “finalmente despertam para a causa animal”. A líder do partido espera ainda que, “no resto do ano e não apenas em momentos de campanha eleitoral, esse despertar de consciência se traduza em aprovações de iniciativas legislativas, porque a proteção animal não se faz só de tweets“, alertando nomeadamente para a necessidade do “alargamento do código penal a outros animais, que não apenas os de companhia”.

Sousa Real tem dois animais de estimação, um gato (“Mikas”) e uma cadela (“Luna”). “Quando era pequena, por causa dos Marretas, os nossos pais chamavam-me a mim Becas, ao meu irmão do meio Egas e ao meu irmão mais novo Micas. Já tive uma gata, a “Bekas” e o gato ficou o “Mikas”. Está-nos a faltar um Egas”, afirmou a líder do PAN. “Luna”, por sua vez, “é uma alusão à Lua, que considero muito inspiradora”.

Acácia, Madeira dessa árvore

Daqui partimos para uma outra questão essencial. Será que os nomes (“Acácia”, “António”, “Bala”, “Camões”, “Zé Albino”) dos patudos dizem alguma coisa sobre os seus donos? Sofia Aureliano confessa não conhecer “nenhum estudo sobre este tema para poder consubstanciar uma opinião”. Ainda assim, a investigadora afirma que, pessoalmente, “diria que o nome do animal não tem relevância do ponto de vista da estratégia política, nem o facto de o partilharem”.

Rita Figueiras, por sua vez, corrobora a ideia de aproximação da persona política: “A política tem uma dimensão pessoal e humana cada vez mais relevante. A personalização da política inclui a revelação, aqui ou ali, de certas dimensões da vida privada: família, história de vida, detalhes da casa. Ou, no caso em concreto, revelando o nome do animal.”

No estrangeiro, mais do que em Portugal, este método é conhecido e o sucesso na abordagem também. Segundo Rita Figueiras, “na política internacional, e em particular na norte-americana, os animais de estimação têm desempenhado um papel não despiciendo junto de um determinado tipo de eleitorado e são relevantes para um determinado tipo de cobertura mediática”, ajudando a “estabelecer uma ligação com o eleitorado, a humanizar os políticos e a mostrá-los com uma vida semelhante a uma grande parte da população”.

Sofia Aureliano lembra ainda que Barack Obama, por exemplo, “escolhe(u) ser fotografado com o seu cão de água português, “Bo”, a brincar, a correr pelos corredores da Casa Branca, cultivando uma imagem despretensiosa e divertida“. Ao contrário de Putin, de quem já falamos, Obama transmite a ideia de que “está mais próximo e é mais acessível”. Ainda assim, “os dois são extremamente eficientes na construção da imagem pública. Nada é ao acaso, e Putin não ganharia com uma imagem de ser humano mais emocional e divertido. Ganha (muito) com a imagem do líder mais austero e robusto“.

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