Angela Carini tinha um sonho: ser campeã olímpica de boxe em Paris. Havia contas a ajustar com o passado e uma promessa para honrar. Desejava dedicar o título ao seu pai, tragicamente morto poucos dias depois de, nos Jogos Olímpicos de Tóquio, a lutadora de 26 anos ter sido eliminada sem apelo nem agravo logo no primeiro combate que disputou. Giuseppe não era apenas o seu pai: era o seu treinador e mentor desde que a convencera a trocar uma carreira tranquila e bem sucedida no tiro ao prato – foi campeã italiana – pela fúria indomável dos ringues de boxe.
Logo a seguir à sua qualificação para os Jogos de Paris, Carini tirou com orgulho o telemóvel do bolso, exibindo à imprensa a imagem do seu pai no ecrã, enquanto afirmava: “Ele disse-me: ´Angela, um campeão no boxe é mais ou menos a mesma coisa que um ciclista. Quando vê o último quilómetro sabes o que faz? Pedala ainda mais forte. Por isso, continua até ao fim porque eu estarei sempre contigo’.” Ontem, a italiana não chegou ao último quilómetro porque para que tal sucedesse teria obrigatoriamente de percorrer os primeiros metros, coisa que não fez por culpa de Imane Khelif, uma pujante jovem argelina de 25 anos que em apenas 46 segundos lhe esmagou a fantasia com um par de golpes que a deixaram de joelhos a reclamar da enorme “injustiça” de que alegadamente fora alvo.
Pensava-se que em matéria de espancamento estávamos falados no momento em que a italiana desistiu, mas na verdade a conversa acabara de começar. Isto porque logo a seguir ao combate, distintas figuras da ciência como Elon Musk, J.K. Rowling ou a sempre sábia Rita Matias, decidiram vingar a indefesa Angela no ringue das redes sociais (where else?), partilhando generosamente com os ignaros algumas lições sobre o sempre fascinante universo da genética. Entre outras afirmações igualmente rigorosas, a cientista Matias qualificou Imane Khelif como um “homem biológico”, um “homem trans” e, detalhe não negligenciável, “um homem que bate em mulheres”.
Problema: Imane de facto bate – e bate forte – em mulheres, mas não é um homem nem é trans. Na verdade, é comprovadamente uma mulher “cis” que sempre se identificou com o género que lhe foi designado à nascença (feminino). Por esse motivo, bate em mulheres desde criança – e, já agora, também apanha, e apanha forte. Basta olhar para o seu currículo para facilmente perceber que também já lhe calhou não chegar ao último quilómetro de que falava o pai de Angela. Exemplos: em 2018, no Campeonato Mundial de Boxe Feminino em Nova Delhi ficou em 17.º lugar. Nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2020, não passou dos quartos de final.
Aparentemente, o que inquieta Rita Matias e a restante vanguarda da genética que energicamente a secundou nos compêndios do X e do Instagram é a circunstância de Imane produzir níveis de testosterona acima do normal para uma mulher, o que na prática fará dela um homem. Talvez por andar demasiado ocupada a gravar vídeos para o Tik Tok, a iluminada Matias não se preocupou em actualizar os seus já vastíssimos conhecimentos antes de dar início à sessão de pancadaria na internet. Se o tivesse feito, constataria que também ela, mulher clássica, conservadora e delicada, produz testosterona. Mais: como bem explicou a Salomé Leal num fact-check sobre o assunto, uma pessoa do sexo feminino pode ter níveis altos de testosterona, como é o caso de Khelif, sem que isso afete o seu sistema reprodutor, algo que a própria Rita Matias considera essencial para definir alguém como sendo mulher. Mais ainda: os estudos – veja-se este artigo publicado na Scientific American em 2021 – não demonstram relação directa entre os níveis naturais de testosterona e a capacidade atlética em mulheres.
Resumindo, baralhando e concluindo: embora não conste que sofra de qualquer espécie de distúrbio hormonal, Rita Matias parece padecer de confusão crónica, uma patologia que precisa de tratar, sob pena de nunca chegar àquele quilometro final que faz a diferença entre os wanna be e os verdadeiros campeões. André Ventura, seu pai político e apaixonado por ciclismo desde a infância, seria a pessoa certa para, como a seu tempo Giusieppe fez com Angela, lhe explicar os segredos das últimas pedaladas. Problema: depois do douturamento em Direito, Ventura também se dedica agora ao estudo das artes da porrada – matéria em que, como é bom de ver, Rita não recebe lições de ninguém.