Se o mundo contemporâneo fosse um filme, Elon Musk e Donald Trump seriam protagonistas excêntricos. Daqueles que nos fazem rir, chorar e perder a paciência, como numa comédia que se confunde com tragédia. Ambos polarizam. Incitam o tribalismo: o “nós” e “eles”. Fascinam e influenciam profundamente o rumo político e social, tal como as séries mais vistas de uma qualquer plataforma de streaming atraem o público — só que com consequências mais sérias, embora também repletas de drama.
O casamento (ao que tudo indica legalizado e com um copo-de-água que custa 1 milhão de dólares por dia) reacendeu o debate sobre o impacto das redes sociais — nomeadamente do X — enquanto ferramentas de poder, capazes de definir discursos e campanhas. Se é verdade que é fácil encontrar desinformação nas redes sociais, é também verdade que ainda é mais fácil encontrá-la no X.
Com a liderança de Musk no mundo das big tech, surgiram mudanças profundas. O principal ingrediente é a desinformação disfarçada de ativismo pela liberdade de expressão. Mas só para alguns. Desde que comprou o X, aceitou múltiplos pedidos de Governos para bloquear e censurar contas. Entre os países requerentes destacam-se a Turquia e a Índia que, coincidência ou não, têm interesse em receber nos seus territórios uma nova fábrica da Tesla.
Ao escrever estas linhas, lembrei-me da frase genial de George Orwell, em 1984, que, entretanto, já virou cliché: “Liberdade é poder dizer que dois mais dois são quatro. Se isso for garantido, tudo o resto vem por acréscimo.” Em 2024, estas palavras são quase revolucionárias. Hoje, a verdade objetiva é arrastada pela corrente de visões distópicas que, muitas vezes, são somente licenças para mentir.
As verdades objetivas escasseiam na esfera pública como os guardanapos de papel nos cafés à hora de almoço (já tinham reparado?).
Musk parece acreditar que um espaço sem moderação (independente e profissional) é sinónimo de uma arena onde a verdade naturalmente prevalece. Mas, quando se deixa uma porta aberta sem filtros, o que entra pode ser um furacão de desinformação. Ninguém está imune, mas os jovens estão muito mais vulneráveis. E é exatamente aqui que reside o maior problema. Um estudo da Universidade de Stanford, de 2016, já mostrava que 82% dos jovens não conseguiam distinguir uma notícia verdadeira de uma falsa quando a veem nas redes sociais. Este cenário só tende a piorar.
Não me cabe julgar as intenções de Musk. Mas permitam-me, no mínimo, observar que as mentiras e teorias da conspiração estão a prosperar, provocando um caos premeditado onde já ninguém tem tempo para ler, ver ou ouvir nada que não venha entregue na bandeja de um qualquer feed. E isso acarreta perigos inimagináveis.
As empresas de tecnologia preparam-se para ter mais poder do que qualquer Governo, quer seja democrático ou não. Ian Bremmer já o dizia, em 2023, numa famosa TED Talk chamada The next global superpower isn’t who you think. Aconselho que levem o alerta a sério. E a repórter Rachel Leingang, do The Guardian, dá-nos uma boa visão do que nos espera, lembrando que as eleições de 2024 serão um grande teste para a influência futura de plataformas como o X.
No meu trabalho diário no Polígrafo, aquilo que mais me espanta no contacto com os feeds das redes sociais é a ideia de que uma verificação de factos é: 1) censura; 2) opinião; 3) doutrina.
Ora, é simples: 1) uma verificação de factos não elimina informação, adiciona-a; 2) uma verificação de factos baseia-se, sem juízos de valor, em estudos, especialistas, análises documentais e justaposição de declarações públicas contraditórias; e, por fim… 3) uma verificação de factos não diz a ninguém em quem votar ou o que pensar.
Quem “poligrafa” o Polígrafo são mesmo os leitores, porque em todo o nosso trabalho existe uma metodologia que permite a qualquer pessoa, de forma transparente e independente, conhecer o processo que sustentou determinada conclusão. Consideremos então que nos factos não há lugar para tribos.
Voltando ao nosso “Elon” de ligação. O multimilionário, longe de ser um salvador da “liberdade”, está a promover um ambiente digital onde as mentiras têm o mesmo peso que os factos. Trump, por outro lado, navega estas águas com a confiança de quem conhece as marés. O X tornou-se num fórum onde a linha entre o discurso político e a desinformação é tão fina que parece desenhada a lápis. Em Portugal, Trump pode estar a um oceano de distância, mas as suas ideias têm eco. No meio das sardinhas, do fado e do futebol, também não estamos imunes.
Um estudo conduzido pelo Observatório Ibérico de Media Digitais (Iberifier), no início de 2023, indica que as redes sociais são a principal fonte de informação de 87% dos inquiridos. O fenómeno está para ficar.
E então, o que fazer? Cabe às instituições, à imprensa e à sociedade civil proteger os factos, reforçar a literacia mediática e lutar contra a mentira.
As instituições não podem permanecer entorpecidas no sedentarismo burocrático. A imprensa, por seu lado, não pode continuar a olhar para si própria como intocável; também erra e precisa de evoluir. O jornalismo não pode continuar a olhar para si próprio como salvador quando, às vezes, é ele próprio que está a precisar de salvação.
E todos nós? A sociedade civil? Temos de ser mais do que meros espectadores neste filme. Menos tribais, mais criteriosamente críticos e atentos aos factos. Porque, se há coisa que ninguém quer, é sair desta sala de cinema a saber que ninguém sobreviveu a este filme de terror.