A forma como olhamos para o passado não é imutável. Aliás, os conteúdos da disciplina de História vão-se reescrevendo e reformulando com os contributos dos novos investigadores e académicos, num “diálogo permanente” entre o passado e o presente. Tal decorre de novas descobertas, de novos métodos e técnicas de análise e, outrossim, do modo como a moral dominante e a perspectiva da sociedade sobre os factos do passado se vai alterando.

É assim claro para mim que a visão da gesta portuguesa de expansão marítima, comercial e militar, encetada há 614 anos em Ceuta, seja hoje vista de forma diferente da que me foi transmitida enquanto jovem estudante nos anos setenta e oitenta do século passado. Por sua vez, a “minha” história da expansão portuguesa era já bem diferente da que tinha sido transmitida aos meus pais e avós, esta na tradição laudatória comum à Primeira República e ao Estado Novo.  É por isso absolutamente normal que figuras como, por exemplo, Afonso de Albuquerque, para citar o que, no meu entender, será o caso mais polémico, não é hoje visto como o corajoso portador dos valores da cristandade ao Índico mas antes como um guerreiro e administrador, tremendamente eficaz mas igualmente sanguinário, como aliás o eram a vastíssima maioria dos militares bem sucedidos da época. Isto era verdade com os seus contemporâneos com origens na Europa, na Ásia ou em África.

A nossa dinâmica demográfica tornará o país inviável em poucas décadas caso não consigamos atrair, acolher e fixar populações com origem noutras zonas, nomeadamente de fora da Europa.

A expansão portuguesa dos séculos XV e XVI, prenúncio seminal da globalização em que vivemos, deve-nos orgulhar enquanto nação: revelou o que de melhor temos em termos de ousadia, capacidade de inovação e improviso, adaptabilidade e sentido de desafio. Teve, é claro, episódios lamentáveis e condenáveis aos olhos de hoje, incluindo muita violência de todo o género. Não era exclusivo dos portugueses do final da idade média e do Renascimento nem desapareceu do Mundo em que vivemos. Infelizmente.

O passado não pode ser esquecido nem os erros ignorados. Devem constituir memória que nos vacine contra os desmandos do passado, nunca leitmotiv para mais confronto e destruição no presente e no futuro.

Vem isto a propósito da arrogância com que alguns, sobretudo os que privilegiam o confronto como método de evolução social, usam o passado como instrumento de luta política no presente. Não só não aprecio o confronto e luta permanente como modelo de vida em sociedade como, no que ao tema diz respeito, penso ser de uma enorme injustiça e mesmo desconsideração, julgar factos e figuras de um passado com centenas de anos à luz dos cânones actuais. Uma coisa é considerarmos que os actos nos horrorizam e os repudiarmos com veemência, outra é a injustiça de condenarmos e vituperarmos os protagonistas à luz dos nossos princípios e valores, passado que foi meio milénio. Pior ainda, é transpor o anátema da condenação para os seus remotíssimos parentes da actualidade. Não é aceitável e nada ajuda à construção de uma sociedade verdadeiramente inclusiva e justa.

Dos que por cá estão, dos que chegaram mais recentemente e dos que hão de vir, espera-se a partilha de valores comuns de tolerância e inclusão, o privilégio da harmonia sobre a confrontação e a noção inequívoca de que a diversidade é um activo inestimável, mas que pressupõe respeito mútuo, colaboração e tolerância.

O que se passou na Europa no pós-Segunda Guerra Mundial ilustra eloquentemente este ponto. Se os franceses, ingleses, belgas, holandeses e tantos outros tivessem posto de lado a hipótese de, conjuntamente com alemães e italianos, construir um projecto comum em serenidade e com respeito mútuo, nunca teríamos nem a prosperidade, nem o estado social, nem a paz de que desfrutamos nos últimos 75 anos neste continente.  Mais, são os que não valorizam a inclusão, a paz e a justiça, aqueles que mais tentam vilipendiar e destruir, na actualidade, o modelo que os estadistas do pós-guerra imaginaram e concretizaram, com inegável sucesso, em benefício de todos.

A nossa viabilidade colectiva implica um esforço reforçado de criação de uma sociedade harmoniosa, inclusiva e justa.

Esta questão ganha particular importância em Portugal no futuro próximo. A nossa dinâmica demográfica tornará o país inviável em poucas décadas caso não consigamos atrair, acolher e fixar populações com origem noutras zonas, nomeadamente de fora da Europa.  Consequentemente, a nossa viabilidade colectiva implica um esforço reforçado de criação de uma sociedade harmoniosa, inclusiva e justa, tirando o máximo valor da diversidade num contexto de harmonia e paz.  Assim sendo, custa-me particularmente assistir aos que usam todos os pretextos, de um lado e de outro, para perpetuar a memória da barbárie como método de actuação e recolha de dividendos políticos.  O passado não pode ser esquecido nem os erros ignorados. Devem constituir memória que nos vacine contra os seus desmandos, nunca leitmotiv para mais confronto e destruição no presente e no futuro. Dos que por cá estão, dos que chegaram mais recentemente e dos que hão de vir, espera-se a partilha de valores comuns de tolerância e inclusão, o privilégio da harmonia sobre a confrontação e a noção inequívoca de que a diversidade é um activo inestimável, mas que pressupõe respeito mútuo, colaboração e tolerância. O confronto como arma de arremesso para outros fins é que não, sejam quais forem os argumentos. Portugal não aguentará.

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