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Jornalismo e justiça: Simbiose, parasitismo e outras formas menores de relações ecológicas

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Este artigo tem mais de um ano
Um Jornalismo potenciador do boato e da mentira, que esquece o dever de confrontar os visados com os factos que alguém lhes imputa (...) nunca poderá ser factor de mudança em qualquer sociedade.

I – Introdução

Nunca, como actualmente, tanto se tem discutido acerca das relações entre a Justiça e a Comunicação Social. Recordo uma primeira conferência que dei na Figueira da Foz, precisamente subordinada a esse tema, já no ano de 2015. Promovida pela Ordem dos Advogados, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses e o Sindicado dos Magistrados do Ministério Público, foi assistida por pouco mais de meia centena de profissionais do foro: juízes, poucos, advogados, alguns, magistrados do ministério público, em maioria. Imagino, sem certezas, que inexistiam jornalistas presentes na assistência.

Desde então até hoje voltei a ser chamado a escrever sobre o tema, para um jornal e uma revista de associações de magistrados.

Isto significa que, pelo menos no seio das profissões jurídicas, a consciencialização do “problema” que tal relação constitui, foi assumida a meio de uma década de processos judiciais altamente mediatizados, todos da área criminal. Mais concretamente da área da criminalidade económico-financeira ou da criminalidade envolvendo titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos.

Estas reflexões passadas permitem-me confessar que a compreensão plena das dimensões das relações emergentes do binómio Justiça-Jornalismo não foi de início algo que tenha sido capaz de visualizar. E não tive essa compreensão plena porque o correr do tempo me permite hoje abarcar um espectro mais alargado dessas mesmas relações do que inicialmente fazia.

Agora, se já consigo ou não ter uma compreensão plena de todas essas dimensões, é algo que só o futuro permitirá ajuizar. Amiúde só a imaginação da vida nos permite a nós, Homens do Direito, ver que o que antes víamos era ainda uma parcela muito ínfima da realidade.

Tentarei concretizar, nesta opinião, o porquê desta afirmação introdutória, ao longo do breve caminho que tentarei percorrer nas linhas seguintes sobre a questão enunciada em título.

Assim que procurarei encontrar relações possíveis, já documentadas ou meramente hipotetizadas, de simbiose, de parasitismo e de outras formas de relação entre Justiça e Jornalismo, para tanto lançando mão de cristalizados conceitos da biologia sobre tais tipos de relacionamento animal ou vegetal.

Por outro lado, tentar projectar o que possa vir a ser o futuro, antevendo a importância de um Quarto Poder forte, no cumprimento dos seus deveres e no exercício das suas funções, para defesa do próprio Estado de Direito Democrático ocidental, que tanto prezamos e que em tão grande risco de perecimento se encontra.

II – A simbiose ou mutualismo

A simbiose, ou mutualismo, em biologia, é a categoria das relações ecológicas que se caracteriza pela existência deuma associação de dois seres vivosduas plantas, ou uma planta e um animal, na qual ambos os organismos recebem benefícios, mesmo que em proporções desiguais. Significa vida em comum, ou concubinato na natureza.

Deste tipo de relação encontramos imensos exemplos práticos nos contactos da Justiça com o Jornalismo.

Aliás, a consciencialização da necessidade de Gabinetes de Imprensa, ou de Assessores de Imprensa, em instituições da Justiça, é a demonstração clara da vontade destas de, concedendo o benefício do esclarecimento, acerca das suas decisões ou actuações, ao público, através do Jornalismo, simultaneamente deste colher o benefício de algum respeito institucional. Rectius, o benefício de não ser criticado por este mesmo Jornalismo, isto mercê da assumpção de uma realidade indesmentível: o Jornalismo só muito dificilmente consegue ser higiénico na transmissão da notícia, conlevando, por imposição da natureza humana, a coloração dessa mesma transmissão com as lentes daquele que procede à difusão.

Quero com isto significar que nesta relação simbiótica, a Justiça procura alcançar o público em geral através da única via pela qual tal é possível nesta sociedade post-moderna: a comunicação social.

Ao fazê-lo, por definição, não pode deixar de tentar dar de si uma imagem que permita granjear um mínimo de respeito público, senão mesmo de admiração, se tal for possível, tudo com o objectivo final de adquirir uma legitimação pelo todos (1). Quer no plano ontogenético, quer no plano filogenético, o Humano busca sempre dar de si a melhor impressão possível, ainda que irreal. Tudo se prende com dois conceitos básicos da psicologia, o do estatuto e o do papel que todos procuramos exteriormente projectar de nós próprios. E que pode nada ter que ver, substancialmente, com quem somos e com o que fazemos. Conclusão: o que a Justiça procura fazer na relação com o “outro”, que é aqui a comunidade mediada pelo Jornalismo, é o que todos e cada um de nós, humanamente, fazemos diariamente nos nossos contactos com o “outro”.

Outro” que, lembremo-nos, foi já qualificado como o “Inferno”. Mas neste ponto convém repor o significado real de tal expressão usada por Sartre, não vá daqui alguém extrair uma consequência oposta ao pensamento que defendo.

Com esta afirmação o filósofo não queria demonizar o outro, afirmando que são os outros que fazem das nossas vidas um inferno; ao invés, queria sublinhar que habitualmente não assumimos as consequências das nossas atitudes, e do mesmo passo não assumimos as consequências que as nossas atitudes têm na vida dos outros.

Outro” que, lembremo-nos, foi já qualificado como o “Inferno”. Mas neste ponto convém repor o significado real de tal expressão usada por Sartre, não vá daqui alguém extrair uma consequência oposta ao pensamento que defendo.

Ora, pelo menos numa perspectiva linear, o outro nunca é responsável pelas consequências  que sofrem das nossas atitudes (será no máximo uma das múltiplas concausas do nosso agir). Termos em que o inferno a que alude Sartre é aquele que emerge da nossa autoconsciência profunda disso mesmo – das consequências que as nossas atitudes têm perante os outros.

E é na gestão dessas consequências que as atitudes da Justiça têm perante o outro, concretamente afectado pelas decisões judiciárias, e perante os outros, a colectividade em geral, que a Justiça se socorre actualmente do Jornalismo. E habitualmente para tentar justificar essas consequências, fá-lo de molde a motivar as razões da decisão, assim a legitimando socialmente, ou a suavizar a consequência da decisão. Outras vezes, sabendo que a comunidade não aceita outra via que não a da dureza implacável, e como tal injusta, que o Direito não permite e que a Justiça enquanto integrante do plano axiológico comunitário nunca legitimaria, a comunicação através do Jornalismo busca precisamente obter a compreensão do colectivo para as razões que não autorizariam maior ferocidade da resposta da Justiça.

Mas a Justiça não perde, com esses propósitos, a consciência de que o canal pelo qual a transmissão é feita não é inerte, não é higiénico ao pensamento e a um autónomo sistema de valores (próprio do mundo do jornalismo, muitas vezes mais próximo do sentir comum do cidadão do que das especiosidades caracterizadoras do razoar jurídico). Daí haver uma preocupação da Justiça em criar um ambiente de simpatia, quando não mesmo de permeabilidade, por parte do Jornalismo, a esses sistemas de valores, a essas causas que no entender daquela justificam ou até desculpabilizamalguma decisão a priori não facilmente compreensível, seja pelo mensageiro, seja pelo destinatário da mensagem.

E aqui a epítome da simbiose ocorre: o acesso privilegiado do Jornalismo à notícia de Justiça! Que constitui o primeiro passo para a cristalização da relação simbiótica, que pressupõe a existência de benefícios mútuos para ambos os polos da relação de simbiose. Outro passo nessa relação simbiótica acontece quando, de entre vários meios de comunicação social, um deles consegue um acesso privilegiado a tais notícias, seja pela antecipação, seja pela profundidade dos conhecimentos transmitidos, seja até pelo acesso directo aos actores judiciários.

Esta relação, de simbiose, permite com facilidade a comunicação da Justiça com o povo para quem, e em nome de quem, a Justiça é administrada, permitindo também tentar gerir o grau de legitimação que as decisões judiciárias assumem no plano social da comunidade – pelo menos no plano mais relevante dessa comunidade, i.e., aqueles que podem, por terem também acesso aos canais de comunicação do Jornalismo, aplaudir, ou demolir, o decidido.

Mas se até aqui procurámos entender, e desenhar, a relação Justiça-Jornalismo neste mesmo sentido dos termos do binómio, convém não esquecer que a característica mais intrínseca da simbiose é a mútua atribuição de benefícios a ambos os intervenientes no mesmo.

Todo o Jornalismo procura aquele “furo”, procura aquela “cacha”! O desejo é ser o primeiro a noticiar, a noticiar com mais pormenores, a noticiar com maior possibilidade de atrair o seu público, a colectividade em geral.

E como já atrás antecipámos, também o Jornalismo aufere benefícios nesta relação simbiótica com a Justiça. E aqui partimos de uma consideração que é também hoje da ciência comum: o Jornalismo vive, em qualquer sociedade, no mesmo campo concorrencial, de mercado, da maioria dos negócios em que não existe oligopólio. O jornalista, e a empresa jornalística para que aquele presta o seu serviço, enfrentam um mercado de dura competição, de concorrência feroz, que se traduz na necessidade de ter a sua própria relevância pública, i.e., e aqui, quota de mercado, para o que concorre imperiosamente e em primeiro lugar a importância social e actualidade da notícia. Todo o Jornalismo procura aquele “furo”, procura aquela “caixa”! O desejo é ser o primeiro a noticiar, a noticiar com mais pormenores, a noticiar com maior possibilidade de atrair o seu público, a colectividade em geral.

Tudo porque, como resulta óbvio numa sociedade aberta de mercado e pelo menos aparentemente de livre concorrência, quem melhor serviço entrega ao consumidor, mais garante a fidelidade deste e aumenta o seu próprio valor. Que depois esgrime com os patrocinadores e investidores dispostos a manter a empresa jornalística capitalizada, e, por vias disso, viva!

Assim, o benefício para o Jornalismo da sua relação simbiótica com a Justiça é óbvio: na medida em que boa parte das grandes notícias emergem hoje em dia de casos lidados por esta, o Jornalismo tem de garantir uma proximidade até hoje nunca necessária com os actores da Justiça. Ganhar a confiança destes. Garantir que havendo notícia, a mesma lhes é facultada, se em condições de lhe permitir ter um avanço qualitativo ou temporal em relação aos seus concorrentes, melhor (aquilo que em biologia se chama de competição interespecífica (2).

Todo o Jornalismo procura aquele “furo”, procura aquela “cacha”! O desejo é ser o primeiro a noticiar, a noticiar com mais pormenores, a noticiar com maior possibilidade de atrair o seu público, a colectividade em geral.

Prova disto mesmo é, em tantos casos, a selecção dentro do mundo jurídico daqueles que o Jornalismo considera melhores para a análise e comentário às notícias de Justiça. Não basta já dar a notícia, não basta já dá-la o mais cedo possível por relação com os outros, não basta já ter acesso a mais pormenores do que qualquer outro concorrente, tem de se garantir ter ao dispor aqueles que possam, comentando, decifrar e melhor transmitir à colectividade o sentido, bondade, razoabilidade e justiça do decidido pela Justiça. Não é a toa que em notícias de relevo da área da Justiça, um debate com estes intermediadores entre a Justiça e a Colectividade é quase sempre usado pelo Jornalismo. E nem poderia ser de outro modo: dadas as peculiaridades do labor da Justiça, e até do seu léxico e sistema axiológico subjacente, uma tradução em linguagem comum é imperiosa para que a mensagem atinja os destinatários visados: a colectividade no seu todo, ou estalões desta mesma colectividade, que possam também eles legitimar, ou não, o produto da Justiça, mas que inequivocamente sempre legitimam o trabalho do Jornalismo. Daí tantas vezes existirem abordagens prévias por parte do Jornalismo a peritos ou homens experientes em questões de justiça, para garantir que o produto final do trabalho jornalístico segue para a divulgação dotado de todas as correcções, análises e esclarecimentos que lhe permitam um maior grau de qualidade técnica nesta específica área do saber.

Diria, pois, que até aqui descrevemos a relação simbiótica a funcionar na sua pureza linear, sem entrecruzamento de quaisquer outros factores espúreos – ainda assim tão humanos –, que possam desvirtuar a relação.

Porém, como em qualquer actividade humana, principalmente quando produto de uma relação simbiótica, a patologia pode surgir.

E com patologia quero sublinhar as situações em que esta pureza relacional descrita sofre desvios, mais ou menos censuráveis (dependendo do código axiológico que usemos, ou nenhum), que podem inclusivamente desvirtuar totalmente os propósitos positivos, e até nobres, da simbiose acima pensada.

Por isso entendi acima, em título, que também há relações entre a Justiça e o Jornalismo que melhor se classificam, fazendo de novo uso de classificações de relações ecológicas, de parasitismo e de outras formas menores desse relacionamento.

 

III – O parasitismo

O parasitismo, em biologia, é a categoria das relações ecológicas que se caracteriza pela existência de uma espécie viver dentro ou junto do corpo de outras espécies, daí retirando alimento. Nestes casos pode acontecer que uma das espécies – o parasita – cause danos à outra – o hospedeiro.

Sucede que para alguns biólogos, o parasitismo é ainda uma forma de simbiose, mas imperfeita, em que apenas uma das espécies retira benefícios da proximidade com a outra. E noutros casos ainda, mais do que imperfeita, é mesmo patológica ao ponto de uma das espécies retirar benefícios e a outra colher malefícios da presença do outro polo da relação simbiótica imperfeita.

Também nas relações Justiça-Jornalismo encontramos situações claras de parasitismo.

Casos há que seriam já “de escola”, se fossem suficientemente conhecidos e divulgados para poderem ser assumidos publicamente com a realidade que têm (e não manterem-se discretamente escondidos, muitas vezes aos olhos de toda a gente, género Segredo de Polichinelo). E também aqui, atente-se bem, encontramos parasitismo de qualquer um dos polos do binómio relativamente ao outro.

Imaginem-se casos em que alguns actores da Justiça utilizam um meio de comunicação social para difundir os progressos dos seus labores, normalmente investigativos. Neste caso o papel do hospedeiro é desempenhado pelo Jornalismo. Tendo a seu lado, ou no seu seio, mais ou menos discretamente, um actor da Justiça que lhe transmite informação que não é pública, nem o poderia ser à luz das regras legais e de justiça aplicáveis. Na posse desse furo, o Jornalismo não pode muitas vezes deixar de proceder automaticamente de acordo com os seus objectivos, propósitos e funções. E o que faz? Difunde para a colectividade uma informação que deveria ter sido deixada a bom recato nos fólios que constituem um processo em segredo de justiça. Aparentemente parece ainda estarmos perante uma relação simbiótica: o parasita atinge o propósito almejado, e o hospedeiro atinge os seus propósitos de lograr uma notícia a que mais nenhum dos seus concorrentes teve acesso.

Porém, o aparente proveito mútuo, nestas situações, a maior parte das vezes é isso mesmo: aparente! Pois o hospedeiro, rectius, o Jornalismo, acaba por se confrontar com um de dois resultados – descredibilizado pela divulgação de uma notícia a que faltava a característica da veracidade, e que apenas foi divulgada para uma gestão processual, ou da própria imagem,daquele concreto actor da Justiça; senão mesmo processado judicialmente pela prática de um crime de violação de segredo de justiça. Ainda por cima porque, tendo-se abalançado (muitas vezes conscientemente), a violar o segredo de justiça (a troco dos aparentes benefícios económicos da difusão do furo), não conta que parte do difundido não seja conforme à realidade, vendo-se depois confrontado com a realização de um trabalho de desinformação e não de informação.

Casos há que seriam já “de escola”, se fossem suficientemente conhecidos e divulgados para poderem ser assumidos publicamente com a realidade que têm (e não manterem-se discretamente escondidos, muitas vezes aos olhos de toda a gente, género Segredo de Polichinelo). E também aqui, atente-se bem, encontramos parasitismo de qualquer um dos polos do binómio relativamente ao outro.

 

Certo é que, para alguns actores do jornalismos, essa descolagem entre a realidade e a notícia não é propriamente um problema – mas nestes casos não estamos verdadeiramente a falar de Jornalismo, mas antes daquilo a que os nossos vizinhos Espanhóis chamam de periodismo amarillo… aquele que diz o que quer, travestido pelas lentes que quer, com um qualquer propósito ou agenda própria, que pouco tem que ver com o cumprimento dos objectivos do bom jornalismo. Mas, “ça va de soit”, diria! E havendo quem se afaste do consumo do produto deste jornalismo, por reputá-lo de desonesto, o grosso do consumidor pode nem sequer se aperceber dessa falsidade do difundido, pois é sabido que quem lê uma notícia, muitas vezes se choca de tal modo com o que acabou de saber, ainda que não seja verídico, que depois já não seja sensível a desmentidos que lhe permitiriam conhecer a verdade.

Quero com isto significar aqueles casos de parasitismo aparente que acabam, a final, por ser ainda profícuas situações de mutualismo. E há bastos exemplos disso na recente história Lusa. Apesar de tudo se basear em factos irreais, ou pelo menos muito diversos dos reais, acaba por se obter a final uma situação de win-win, como dizem os anglófonos…

Cabe-nos ainda ver, porém, o modus operandido mutualismo no sentido inverso do binómio apresentado, i.e., casos em que o parasita será o agente do Jornalismo, e hospedeiro o agente da Justiça.

Casos destes são bastante mais comuns, e por regra não terminam numa situação de simbiose, i.e., de proveito mútuo.

Penso aqui nos casos em que a Justiça, fiada nas informações aparentemente fidedignas que o Jornalismo divulga (ou pelo menos que, assentando em alguns factos reais, esquece outros com a virtualidade de demonstrar que os primeiros não têm os matizes com que aquele os colora), dá início ao seu labor, abrindo uma investigação póstuma à notícia ter sido divulgada. Mal tal sucede, novamente o Jornalismo faz o seu labor, divulgando agora não só os factos supostamente escandalosos e ilegais, mas também se engrandece com a difusão do facto de a investigação ter sido aberta.

Com o avançar do trabalho da Justiça, e dependendo da ferocidade desta, poderá chegar-se à conclusão de que, afinal, nada era verdadeiramente exacto no que havia constituído a notícia inicial. Nestes casos, um dos polos do binómio da relação parasitária obteve todos os ganhos pretendidos, e o outro tem de confessar ter sido demasiado lesto a responder ao clamor público, sem que verdadeiramente houvesse indícios suficientes para tal alarde da entrada da Justiça em campo. Nestas situações, amiúde, o hospedeiro fica com danos graves, pelo menos na sua imagem pública.

Com o avançar do trabalho da Justiça, e dependendo da ferocidade desta, poderá chegar-se à conclusão de que, afinal, nada era verdadeiramente exacto no que havia constituído a notícia inicial.

Graças à velocidade em que nestes tempos do efémero vivemos, contudo, esses danos são sempre meramente temporários, e o corpo desnutrido do hospedeiro, pela presença da ténia, acaba por recuperar o seu peso normal com o passar do tempo. Mesmo que o parasita lá continue alojado, ainda que hibernado temporariamente. Aguardando ambas as espécies nova hipótese de estabelecer nova relação de simbiose ou de parasitismo, em qualquer um dos sentidos.

IV – Outras situações menores – o Amensalismo e a Sinfilia

Os biólogos definem amensalismo como aquelas situações em que um indivíduo de uma espécie inibe ou impede o desenvolvimento de outras espécies. Normalmente a espécie inibidora segrega, na natureza, substâncias que impedem outra, a amensal, de se desenvolver. Nesta interacção a inibidora não se beneficia directamente da amensal, apenas o fazendo na medida em que concorrerá sozinha no nicho ecológico em que se desenvolve.

No mundo do binómio a que tenho aplicado esta imagem da biologia, normalmente este tipo de amensalismo ocorre mais precisamente entre indivíduos da mesma espécie, seja Justiça-Justiça, seja Jornalismo-Jornalismo.

Mas consigo hipotetizar situações que sendo atípicas do mundo natural, existem nesta nossa comunidade humana. Basta imaginar o caso de o actor da Justiça que, servindo-se do Jornalismo, inibe ou impede o surgimento de outros actores da Justiça a laborar no mesmo nicho ecológico que ele. E a inversa também poderá ser imaginável: um actor do Jornalismo que, servindo-se da Justiça e dos contactos privilegiados com algum(ns) actor(es) desta, acabam por secar o alimento constituído pelas notícias do “nicho ecológico” dos seus competidores.

Estranha protecção esta, que se dá a troco da liberdade do cativo. Mas se é assim na biologia, poderá encontrar-se situação exactamente idêntica no âmbito do binómio que temos vindo a analisar. Pouca imaginação será necessária para encontrar situações de sinfilia nos dois sentidos neste binómio da Justiça-Jornalismo. O que fica como labor para ser desenvolvido pelo leitor.

Será seguramente uma situação, dir-me-ão com acerto, mais propriamente enquadrável naquilo que acima recordámos ser a competição interespecífica. Aceito. Mas nesta categoria, normalmente, também são agentes de uma espécie a afastar agentes de outra espécie, pelo que nesse aspecto nenhuma das categorizações quadra bem à realidade humana.

Porém, ao falar de amensalismo, vemos indivíduos de uma espécie a utilizar os de outra espécie para o propósito final da eliminação da concorrência dentro da própria espécie. E daí me parecer ser mais apropriado este tipo de adaptação da categorização biológica do amensalismo às situações descritas.

Por fim, há os casos de Sinfilia ou esclavagismo. Nesta situação descrita pela biologia um indivíduo de uma espécie mantém cativos outros de outra espécie para dele obter vantagens: é o típico caso das formigas que capturam pulgões, para se aproveitarem dos açucares que estes excretam para seu alimento. Biólogos afirmam, porém, que também nesta categoria de relação interespécies a espécie dominada, os pulgões, recebem algo da espécie esclavagista, as formigas: é que supostamente estas protegem aqueles de predadores, como as joaninhas, ao manterem-nos fechados como escravos nos seus formigueiros.

Estranha protecção esta, que se dá a troco da liberdade do cativo. Mas se é assim na biologia, poderá encontrar-se situação exactamente idêntica no âmbito do binómio que temos vindo a analisar.

Pouca imaginação será necessária para encontrar situações de sinfilia nos dois sentidos neste binómio da Justiça-Jornalismo. O que fica como labor para ser desenvolvido pelo leitor.

 

V – O Quarto Poder no exercício regular das suas funções

Deixei para o fim a análise do papel do Jornalismo como verdadeiro Quarto Poder em qualquer sociedade livre, justa e democrática de matriz ocidental.

Com efeito, acredito firmemente que um Jornalismo responsável, cumpridor da sua carta de princípios e códigos deontológicos, pode ser, nesta sociedade post-moderna (neste tempo de verdadeira alienação das colectividades quanto aos temas mais relevantes da vida política e de sociedade), extremamente importante, podendo mesmo erigir-se em mais um guardião, doravante, dos valores fundamentais que sustentam um Estado de Direito Democrático, em que os cidadãos, e as empresas, sejam verdadeiramente livres e iguais em estatuto e na prática quotidiana.

Quero com isto dizer, mais especificamente, que um Jornalismo cumpridor de todos os seus deveres para com a colectividade, pode realmente ser um colaborador imprescindível para a Justiça, o oficial guardião dos ditos valores, melhorando a qualidade desta e do produto do seu exercício funcional, além de ser a instância dotada dos melhores meios para, numa corrente de freios e contrapesos, impedir inacções ou desmandos dos demais poderes, incluindo o da própria Justiça.

Tal Jornalismo, contudo, não será seguramente aquele que esquece, quando noticia, as perguntas fundamentais que o devem nortear: o quê?; quem?; quando?; como?; e, porquê?

Não será o Jornalismo que acefalamente copia notícias de outros meios de comunicação social, esquecendo que se um erro houver naquela suposta informação, estará apenas a contribuir para a desinformação e para a propalação da mentira. Não será o Jornalismo que descurando, sob a capa de uma alegada liberdade de imprensa sempre tão lestamente agitada, o dever de procurar as diversas versões para cada polémica, o dever de confrontar os visados com o que deles se afirma, o dever de averiguar da veracidade do que propala, serve apenas como instrumento para o atingir, inviamente, objectivos confessados ou mal encobertos de indivíduos, grupos ou facções de qualquer disputa.

Não será seguramente o Jornalismo das fake news, do escândalo fácil, da substituição da colectividade no pensamento que a notícia impõe, o Jornalismo da manipulação das massas.

É outro, e bem distinto, o Jornalismo necessário para fazer crescer, e amadurecer, a democracia num Estado moderno; o Jornalismo capaz de jogar um papel insubstituível na melhoria das instituições do Estado; de ser decisivo na garantia de maior transparência e verdadeira concorrência de todos os agentes económicos numa sociedade livre, igualitária e de mercado; de contribuir para a meritocracia em todas as áreas da vida sócio-política.

Acredito, sinceramente, que esse Quarto Poder poderia ser, se quisesse, fundamental para a própria moralização da vida pública, para o auto-controlo dos três poderes do Estado, para a melhoria dos serviços públicos e até dos serviços privados essenciais à actual vida em sociedade.

Com efeito, acredito firmemente que um Jornalismo responsável, cumpridor da sua carta de princípios e códigos deontológicos, pode ser, nesta sociedade post-moderna (neste tempo de verdadeira alienação das colectividades quanto aos temas mais relevantes da vida política e de sociedade), extremamente importante (…) Não será seguramente o Jornalismo das fake news, do escândalo fácil, da substituição da colectividade no pensamento que a notícia impõe, o Jornalismo da manipulação das massas.

Mas para poder assumir esse papel de motor da mudança em sociedades como a nossa, que apesar da juventude da Democracia se encontra totalmente anquilosada pelas distorções criadas por oligarquias mal disfarçadas sob a capa do regular funcionamento das instituições democráticas, seria necessário um Jornalismo francamente distinto daquele que generalizadamente domina, hoje em dia, as massas.

Um Jornalismo potenciador do boato e da mentira, que esquece o dever de confrontar os visados com os factos que alguém lhes imputa, que usa de todo e qualquer meio, leal ou desleal, quando não mesmo ilegal, para aceder a informações, que desrespeita o segredo de justiça ou que contribui para a potenciação dessa ilegalidade, que viola os mais fundamentais deveres previstos no Código Deontológico que o rege nunca poderá ser factor de mudança em qualquer sociedade. A menos que se vise uma mudança no sentido da sua ainda maior degradação.

Também desnecessário, numa sociedade livre e democrática, é o Jornalismo cujos critérios editoriais fica dependente desta ou daquela fonte de financiamento, seja ela de um grupo económico ou da ditadura das audiências. Tanto há jornalismo manietado pelo poder financeiro de alguém, como o há pelo clamor popular por sangue na areia quente de qualquer Coliseu. Donde se conclui que mesmo meios de comunicação social auto sustentados no consumidor final podem ficar escravizados de modo tal que o que produzem não será verdadeiro Jornalismo, mas um qualquer produto de manipulação da opinião pública.

(…) é ténue a linha que separa a actuação desse Jornalismo, com a postura daquele outro Jornalismo que contribui precisamente para a degradação dessa mesma confiança, nomeadamente por vegetar numa estranha promiscuidade com alguns dos interesses que supostamente deveria servir para controlar.

E de tão óbvio que é, nem vale a pena sublinhar que também nos será totalmente inútil o Jornalismo norteado por qualquer cartilha político-partidária, o que é bem distinto da admissão de opiniões ou convicções ideológicas pessoais dos jornalistas. Ainda assim, aqui a diferença pode ser subtil, entre a publicação que é opinativa, da publicação que pretende ser noticiosa. Notícia deve ser notícia, não é crónica, nem editorial.

Por fim, não nos faz falta um Jornalismo sem memória, característica esta que será a que mais disseminadamente pode ser assacada à maioria do jornalismo que por cá se faz: aquilo que hoje é um escândalo capaz de abalar uma estrutura do Estado, amanhã cai no esquecimento, sem qualquer clarificação, bastando para tal que outro escândalo, mais sumarento, desvie as atenções mediáticas. Esta característica é tão manifesta, que é habilmente dominada por muitos, fazendo divertir as atenções quando necessário, numa verdadeira manipulação do próprio Jornalismo. Numa funcionalização do Quarto Poder a quaisquer circunstanciais interesses de quem sejam os responsáveis, na penumbra, da própria agenda mediática.

Em suma, o Jornalismo capaz de colaborar com a Justiça na defesa do Estado de Direito, na defesa dos valores fundamentais em que assenta uma democracia moderna de matriz ocidental, é o oposto de tudo quanto acabo de enunciar. O que, por exclusão de partes, mostra qual o Jornalismo de que precisamos.

Nunca, como hoje em dia, as Instituições que constituem os pilares fundamentais do Estado foram tão abaladas por gravíssimas suspeitas de ilícitos de toda a ordem. É confessada pelas mais altas instâncias do Estado, por personalidades de credibilidade insuspeita, que Portugal padece de níveis de tráfico de influências, de corrupção, de peculato, de abuso de poder, de branqueamento de capitais, e de tantos outros gravíssimos ilícitos criminais, incompatíveis com uma Democracia minimamente desenvolvida.

As suspeitas de condutas civil, administrativa e criminalmente ilícitas atingem transversalmente membros de magistraturas, de forças militares, de forças policiais, de titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos, etc.

Ora, para o desencadear de algumas das investigações, foi fundamental a denúncia pública feita pelo Jornalismo. E nessa medida, esse Jornalismo contribuiu para um aumento da confiança dos cidadãos no sistema. Mas é ténue a linha que separa a actuação desse Jornalismo, com a postura daquele outro Jornalismo que contribui precisamente para a degradação dessa mesma confiança, nomeadamente por vegetar numa estranha promiscuidade com alguns dos interesses que supostamente deveria servir para controlar.

O que ainda salva a imagem global do Jornalismo na sociedade, é que o conhecimento daquelas actuações positivas alcançam o grosso do corpo social, enquanto a divulgação destas actuações negativas fica confinada a um círculo mais ou menos restrito de quem acompanha o fenómeno mediático em Portugal.

Mas não nos enganemos! Ser Poder não é algo fácil. E todo o Poder inebria. Tal como todo o Poder tende, quando não controlado, para o absolutismo. Assim que um Quarto Poder independente e forte, não possa confundir-se com um Quarto Poder sem baias, sem regras, acima da Lei. Sob pena de se transformar em apenas mais uma estrutura de domínio de massas, variando apenas quem seja o seu titular.

Pablo Saragoça da Matta é advogado

 

Notas:

[1]Expressamente não uso a expressão legitimação democrática, por entender que não é essa a preocupação dos titulares dos órgãos de soberania ou das instituições judiciárias em si mesmas, em Portugal. Por isso, a legitimação a que aludo é a legitimação da aceitação e até da consideração, numa tentativa de fazer aderir, conforme em seguida refiro no texto, o estatuto de que goza com o papel que desempenha.

[2]Um bom exemplo é o da Rémora e o do Peixe Piloto, que disputam entre si os despojos das refeições dos Tubarões. Operando no mesmo nicho ecológico, acabam por disputar por espaço e por alimento nesse mesmo nicho.

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