A morte dos pequenos prazeres da vida, de fumar e de beber, é a morte. É também a liberdade. É a liberdade em acto. Como é possível que a realização da liberdade seja tão pouco ou a respeito de tão pouco? Mas o homem que não domina os seus vícios é um homem perdido. Ouvia-o de meu pai. Sempre me assolou esta frase. O vício está ligado ao prazer fora de controlo. É um prazer que toma conta da vida de alguém. É tóxico. Há uma ligação intrínseca entre vício e prazer. Não é só escravidão. É liberdade, gozo, fruição. A partir de determinada altura, contudo, o que dava prazer não tem graça nenhuma. Faz mal. Mas já não se consegue parar. A sensação de liberdade que o prazer dava, resultante da fruição, da alteração do estado da consciência, do prazer intenso que se sentia no corpo, perde-se e transforma-se no seu oposto. Os antigos pensaram muito na lógica intrínseca da adição, no excesso, no prazer, na gratificação imediata. E nas análises de Platão nunca foi negado o prazer. O prazer não é uma inexistência. Existe e é extremo. Só assim pode ser equacionado como o bem. O prazer sente-se no corpo e sente-se na alma, invade todas as dimensões do ser humano e da vida. Mas é a pergunta pelo seu sentido que nos deixa perplexos. Qual a possibilidade de perguntarmos pelo prazer? Em que circunstâncias perguntamos pelo prazer? Perguntamos pelo prazer quando não há, quando acabou, quando o que dava prazer deixou de dar prazer, quando em sua lugar, pela sua ausência, há vazio, a ressaca. A lógica da adição identifica claramente a relação com o prazer obtido com determinadas substâncias, conteúdos do mundo: sexo em todas as suas formas, físico, fantástico, pornográfico, álcool, drogas, comida, jogo, o que quer que seja e tudo o que nós associamos a “um prazer intenso”, tudo o que “dá um gozo enorme”, o que “leva à loucura”. A expectativa do prazer permite perceber que a relação com o prazer é de expectativa, vivemos em momentos de antecipação quando esperamos prazer, estamos nos “preliminares”, na lógica complexa do aumento da tensão máxima, sem ceder. Toda a teologia interpreta este facto como tentação. Não haveria nunca tentação, nunca seríamos tentados, se o nosso ponto de vista fosse apenas o do presente do indicativo, se o nosso acesso à realidade fosse estritamente o da percepção. O que nos tenta vem do futuro. O acesso ao futuro abre-nos ao prazer. Não é necessariamente de forma positiva ou obrigatória nem proibitiva. Ainda que se diga e compreenda que o fruto proibido seja o mais apetecido, o apetite é aguçado de diversas maneiras e saber aguçar o apetite é coisa que o prazer sabe fazer a partir de si próprio, pela personalidade própria e fortíssima que tem. Dizer que não se pode ter, a nossa relação com quem se nos nega a nós, com o que não se pode ter, com o que nos está interdito, com o que é proibido em todas as frentes da vida, pode abrir campos de desejo com os seus prazeres específicos, mas pode também não nos aquecer nem arrefecer. Podemos ter vários campos de prazer. Podemos não ter inibições de qualquer espécie ou trabalhar para inibir as próprias inibições, para desactivar proibições e interdições. Todas as nossas iniciações na vida não foram senão uma desactivação com a nossa própria experiência de desinibição de inibição. Portanto, seja por necessidade, sentido obrigatório, seja por uma direcção positiva ou orientação claramente assomada no horizonte, seja por proibição, por interdição, por inibição a nossa relação com o prazer é múltipla e complexa e antecipa-o se não lhe for indiferente. Interpreta-o como o compreende: potencia a vida, é bom, deixa-nos num estado melhor do que aquele em que estamos, afugenta-nos da estagnação, da paragem, do vazio, da ausência, da morte.

Os antigos pensaram muito na lógica intrínseca da adição, no excesso, no prazer, na gratificação imediata. E nas análises de Platão nunca foi negado o prazer. O prazer não é uma inexistência. Existe e é extremo. Só assim pode ser equacionado como o bem. O prazer sente-se no corpo e sente-se na alma, invade todas as dimensões do ser humano e da vida.

Não importa como se estabelece a ligação com os diversos conteúdos de prazer que vêm a transformar-se em conteúdos de adição e depois viciantes. Importa perceber que prometem prazer e dão o que prometem. A lógica da nossa relação com eles obriga-nos ao aumento da dose inicial porque nos habituamos à sua assimilação, com o tempo, e à frequência com que os absorvemos (ingerimos, comemos, inalamos, introduzimos no corpo). Podemos abrir campos de adição. Um abre o caminho para outros ou para todos os outros, mesmo que não percebamos fisicamente como estão relacionados entre si. Formalmente têm a mesma essência. São conteúdos de adição. Fazem-nos cair em tentação. São viciantes.

O facto de haver adições a substâncias que dão prazer mas são nocivas à saúde em diversos níveis, podendo chegar até a ser causa de morte mostra claramente que há um problema na igualdade prazer e bem, neste caso prazer e saúde. É também um facto que é extraordinariamente difícil deixarmo-nos de comportamentos aditivos. A substituição do consumo de substâncias nocivas por substâncias ainda nocivas mas menos nocivas permite compreender este facto. Nem tudo o que dá prazer é saudável e, embora possa haver coisas saudáveis que dêem prazer, nem tudo o que faz bem, dá prazer.

A morte dos pequenos prazeres da vida, de fumar e de beber, é a morte. É também a liberdade. É a liberdade em acto. Como é possível que a realização da liberdade seja tão pouco ou a respeito de tão pouco?

A interpretação do prazer como algo de bom, que nos deixa melhores, os maiores, o máximo procura encontrá-lo em todas as frentes em que pode encontrá-lo mesmo que não sejam óbvias, tenha de trabalhar para as abrir, não sejam campos partilhados com todos. Mas há obviamente diferentes níveis de perigosidade atribuídos às diferentes substâncias que alteram o estado da consciência. As substâncias tóxicas dão um prazer extremo e são absolutamente perigosas física e mentalmente. Alguém “agarrado”  por qualquer substância com níveis diferentes de efeito provocado na sua vida dificilmente a “larga”, a sua vida pode girar em torno dessa mesma substância de manhã à noite, em todos os seus gestos desde que acorda até que se deita, todos os seus comportamentos com os outros, toda a sua percepção do mundo em redor e toda a sua compreensão de si é feito no interior da “trip” em que se encontra a sua vida, seja álcool ou drogas. Mas pode ser a ludopatia, a pornografia, o tabagismo, crossfit, ioga, desportos de combate, qualquer forma de estudo intelectual excessivo, toda a dedicação devota a uma matéria, o comprometimento político, paroquial, profissional.

Há uma ligação intrínseca entre vício e prazer. Não é só escravidão. É liberdade, gozo, fruição. A partir de determinada altura, contudo, o que dava prazer não tem graça nenhuma. Faz mal. Mas já não se consegue parar. A sensação de liberdade que o prazer dava, resultante da fruição, da alteração do estado da consciência, do prazer intenso que se sentia no corpo, perde-se e transforma-se no seu oposto.

A ideologia do prazer leva a procurarmos fazer apenas “aquilo que dá gozo”. O importante é que dê gozo. Quando não dá gozo, então o melhor é vir embora, porque é por que algo já acabou. Pela ideologia do prazer todas as nossas acções, comportamentos, relações, todos os nossos gestos, têm como critério o prazer que dá o gozo e retrospectivamente abre já actuando retroactivamente sobre cada um de nós. O prazer é o futuro que nos vira já para si e dá sentido a todas as nossas acções. Tem danos colaterais, mas tudo tem danos colaterais.

Mas os danos colaterais são irreversíveis no prazer. Invade-nos a vida e ocupa-nos a existência, só para fazermos o que nos dá gozo e o que ele quer. Obriga-nos a compreender que fazemos o que queremos e dizemos até que só fazemos o que queremos, mas fazer o que se quer está fundamentado no prazer. Ora o prazer não está em nós mas está em algo ou alguém fora de nós e dura um instante. O conteúdo de prazer é claramente nocivo e encontramos subterfúgios e desculpas para continuarmos a retirar prazer de substâncias nocivas. Às vezes adoptamos medidas para podermos continuar no vício. Podemos comer bem e fazer desporto para continuar a fumar. Sempre é melhor do que fumar sem comer saudavelmente nem praticar desporto. Mas não fazemos a mínima ideia se assim é. Com substâncias alteradores do caracter e perigosas como álcool e drogas é óbvio que a maior parte do tempo em que nos encontramos sob a sua influência não estamos lá, não somos nós. E aqui percebemos um problema. Como escolhemos não ser nós? Como temos prazer em não ser nós?

O conteúdo de prazer é claramente nocivo e encontramos subterfúgios e desculpas para continuarmos a retirar prazer de substâncias nocivas. Às vezes adoptamos medidas para podermos continuar no vício. Podemos comer bem e fazer desporto para continuar a fumar. Sempre é melhor do que fumar sem comer saudavelmente nem praticar desporto. Mas não fazemos a mínima ideia se assim é.

O que nos leva a querer deixar de fumar ou beber ou tomar drogas ou comer desenfreadamente? Há qualquer coisa no ser humano que o faz não gostar de se encontrar submetido ou sujeito a nada. O homem que não domina os seus vícios está perdido. A frase pode ser lida de muitas maneiras. Dominar quer dizer erradicar, ficar sem vício? Quer dizer ceder à tentação o menor de vezes possível, controlar a quantidade e a frequência? Há substâncias que obrigam a um controlo. Não podemos abster-nos de as tomar. É o caso da comida. Alguém viciado em comida não pode abster-se de comer ou então morre. Há fármacos que admitem controlo de dose e frequência, conforme o indivíduo que as consome. Mas há substâncias que obrigam à abstinência total, por motivos de saúde ou porque são tão nocivas que levam à morte. Pode haver também uma motivação ideológica. Alguém pode não querer ser dominado por um vício, pode não querer ser visto como alguém que se rende a uma tentação de um determinado teor. E quer libertar-se. Quer, por exemplo, deixar de fumar. Podemos perceber que fumar não altera a consciência como a cocaína, heroína ou álcool, mas a nicotina é uma substância altamente aditiva e não faz bem a nada. Dá é um prazer absoluto a quem fuma, durante o tempo em que duram os seus efeitos. Pode não ser compreendido por quem não fume. Há até quem possa achar revoltante o cheiro do tabaco e a sua inalação. Mas quem fuma tabaco sabe perfeitamente que a sua inalação dá um prazer intenso, quase sexual, toldando o espírito e o corpo. Uma das maiores dificuldades envolvidas na abstinência é que de algum modo as substâncias são “sexy”. Tanto que, sem se perceber bem como, dão um prazer ligado à estimulação sexual, ao orgasmo sexual, aos preliminares, ao acto sexual e ao orgasmo. Tudo. A estrutura formal é idêntica: prazer de antecipação, preliminares, calma ou avidez na aproximação ao objecto, aspiração, alteração do corpo e da mente, a primeira passa tragada, tudo envolve em si as fases do acto sexual. O cigarro fica ainda a sentir-se presente depois de ter sido fumado.  O que se passa com o cigarro, passa-se com o copo, passa-se com a linha de coca, passa-se com uma tablete de chocolate, passa-se com sexo. Momento da antecipação, preliminares, o acto, o orgasmo, o post-acto ou post-coitum. Há diferenças óbvias respeitantes à interpretação do caracter viciante, nefasto, maléfico, danoso, e de natureza teológico e moral de que me abstenho de fazer aqui. Importa apenas referir que há uma rendição ao prazer do fumo e que o fumo passa a ser visto como viciante e prejudicial. Não apenas é “visto” teoricamente, mas é sentido fisicamente. Para além disso, há uma contrariedade que se sente em cada cigarro fumado. É uma derrota moral ou mental. É por isso que alguém sente que precisa deixar de fumar. Como?

Conseguimos esquecer do prazer que dá um cigarro? Conseguimos olhar para o abismo que apresentam as fotografias dos maços de tabaco e ver o mal que faz fumar? Não conseguimos nem esquecer o prazer que dá fumar nem acompanhar verdadeiramente as consequências de cada acto nosso de fumar. Eu lembro-me de ter tido esse prazer quando era miúdo e nunca mais o ter largado, mesmo que tivesse passado décadas sem ter fumado.

Podemos perceber que fumar não altera a consciência como a cocaína, heroína ou álcool, mas a nicotina é uma substância altamente aditiva e não faz bem a nada. Dá é um prazer absoluto a quem fuma, durante o tempo em que duram os seus efeitos. Pode não ser compreendido por quem não fume. Há até quem possa achar revoltante o cheiro do tabaco e a sua inalação. Mas quem fuma tabaco sabe perfeitamente que a sua inalação dá um prazer intenso, quase sexual, toldando o espírito e o corpo.

A vontade de fumar vem em ondas e depois vai, mas não se consegue perceber porque razão umas vezes as ondas são fracas outras vezes não estamos para aí virados. Não se pode falar sempre de cedência e não cedência. Assolam-me estes pensamentos: “medo de ficar sem respirar”, “prazer de fumar”.

Revejo o meu diário mental: Último cigarro foi sábado. Portanto: sendo hoje terça-feira, passaram-se 72 horas? Já não sei quanto tempo passou. Sábado, Domingo e Segunda. Ontem foi mais fácil do que anteontem. Sem dúvida alguma. Tive menos crises e consegui olhar para o relógio para ver se passavam de facto em cinco minutos.

Ainda não percebi bem é como surfar a onda, a que é que corresponde. A minha atitude tem sido mais a de ficar em baixo perfil. Procuro esconder-me da vontade de fumar, como se a vontade de fumar fosse uma pessoa má que viesse atras de mim.

A vontade que me dá de fumar faz dela, da vontade, uma pessoa. Às vezes, ela está aí à minha procura e eu tenho de me esconder. Como vem do meu interior, há uma enorme dificuldade em esconder-me. Mas não sou eu.

A vontade de fumar não sou eu. Não posso dizer que a vontade de fumar seja eu, porque EU não quero fumar, a vontade de fumar quer que eu fume, mas ELA é má e é OUTRA vontade diferente da minha, CONTRA mim, em disputa comigo.

Faço-me de pequeno. Finjo que não estou lá. Baixo-me, acocoro-me. Mas estas são atitudes do corpo, sem ser óbvio a que correspondem mentalmente. Respiro suave e lentamente como se a respiração traísse a minha presença. Tenho medo de que o debate contra a vontade de fumar, essa pessoa má que está aí e com a qual tenho de lidar, que quer que eu faça o que ela quer, resulte na minha derrota. Tenho cedido sempre. Não penso que lhe cedo. Digo até de mim para mim que é uma escolha minha. Pode até ter sido. Mas agora decidi fazer alguma coisa e é contra essa vontade.

Importa apenas referir que há uma rendição ao prazer do fumo e que o fumo passa a ser visto como viciante e prejudicial. Não apenas é “visto” teoricamente, mas é sentido fisicamente. Para além disso, há uma contrariedade que se sente em cada cigarro fumado. É uma derrota moral ou mental. É por isso que alguém sente que precisa deixar de fumar. Como?

É importante surfar a onda. A personalidade da vontade de fumar, ao impor-se-nos, é como as pessoas de grande personalidade que conhecemos. Impõem-se-nos. São intensas. Levam-nos com elas. A vontade de fumar como as vontades que nos dão têm estas personalidades fortíssimas que nos obrigam a fazer o que elas querem e nós fazemos o que elas querem.

Devíamos seguir com elas, ir até onde elas nos levam, mas não fazer o que elas querem, não acender o cigarro e aspirar o fumo, não fumar o cigarro inteiro. Uma passa é já uma derrota. Uma passa traz já consigo a cedência que nos deixa absolutamente rendidos ao prazer que nos dá.

Surfar a onda da personalidade da vontade de fumar, resistir ao que os brasileiros chamam “fissura”. Procurar fingir que não estou lá, que não é a mim que a vontade aparece, que não é a mim que a vontade de fumar me quer fazer querer. A vontade de fumar quer que eu queira o que ela quer para mim, mas eu não quero agora o que ela quer para mim, eu não quero fumar, eu não quero o que a vontade de fumar quer. Eu quero não querer.

A dificuldade tremenda é que a moeda com que a vontade de fumar negoceia são cigarros, a lei da oferta é a da necessidade, a necessidade é a do desejo, o desejo é a da falta tremenda que o cigarro faz. A oferta é o cigarro. Mas o cigarro, quando aspirado, traz prazer. A lei da oferta e da procura está resolvida de modo implacável: necessidade de fumar é um desejo de prazer e querer ter prazer é uma vontade de poder tremenda que se impõe como um ganho, um incremento, um crescimento, uma intensificação tremenda. E é.

Porque não quero eu fumar se quero eu fumar? Porque querer e querer não são a mesma coisa aqui. O primeiro querer, o que quer fumar, quer o prazer que não é saudável. O querer que não quer fumar quer, na abstinência, a saúde, apesar de a saúde ser obtida por um não, por um não querer. O estado em que fico, por fumar, é diferente do estado em que fico, por não fumar, embora no imediato sejam estados diferentes, um dá prazer e o outro é absolutamente desconfortável.

Mas o estado seguinte a ter fumado é desconfortável e não penso nisso quando fumo.

Revejo o meu diário mental: Último cigarro foi sábado. Portanto: sendo hoje terça-feira, passaram-se 72 horas? Já não sei quanto tempo passou. Sábado, Domingo e Segunda. Ontem foi mais fácil do que anteontem. Sem dúvida alguma. Tive menos crises e consegui olhar para o relógio para ver se passavam de facto em cinco minutos (...) Ainda não percebi bem é como surfar a onda, a que é que corresponde. A minha atitude tem sido mais a de ficar em baixo perfil. Procuro esconder-me da vontade de fumar, como se a vontade de fumar fosse uma pessoa má que viesse atras de mim.

Só procura pensar nesse estado quem quer deixar de fumar. É por haver esse estado, que as pessoas querem deixar de fumar. O mal-estar provocado pelos momentos seguintes a ter-se fumado (taquicardia, tosse, estimulação descontrolada, insónia, mal estar) leva as pessoas a querem deixar de fumar. É manifesto que a fissura cria uma necessidade incontrolável, um querer fumar, uma vontade insuperável de querer fumar, como se dessa vontade, desse prazer, desse desejo matado, dependesse a nossa vida. A sua lógica é a da adição. A lógica é a da erradicação da necessidade e da obtenção da gratificação pelo prazer sentido pelo desejo de prazer, a vontade de fumar traz essa vontade insuperável de querer, como se não houvesse momento seguinte.

A pessoa que quer e a pessoa que não quer são diferentes e coincidem no mesmo. Mas eu não posso desfazer a vontade de fumar como se não fosse a personalidade do momento, aquela que se impõe, fortíssima.

É a ela que eu tenho cedido, vou buscar o maço, tiro um cigarro, pressiono o isqueiro e aspiro o fumo. E fumo. O convívio entre querer fumar e fumar pode ser pacífico ou não. Quando deixa de ser pacífico, o vício não nos abandona facilmente. Não bate em retirada só por querermos. Faz parte da nossa vida e como uma amante despeitada vai ficar ainda mais presente do que outrora. Vai fazer sentir a sua presença se não ao minuto, pelo menos, de quinze em quinze minutos, por vezes, durante dez minutos de seguida sem parar. E nós sem termos como fugir.

A vontade arranja sempre maneira de aparecer. À nossa porta, no corredor, no caminho para a cozinha, até na retrete aparece. Mas quando aparece mais é mesmo nos lugares onde fomos felizes: à janela quando vemos chover e ouvimos a chuva cai no asfalto, soltar a fragrância do alcatrão ou então ao serão com cognac ou ainda logo pela manhã ou a seguir a um almoço pesado ao mesmo tempo que se toma um café.

A vontade surge-nos em todos os momentos em que fomos felizes e surge como se fosse pela primeira vez e na verdade, se cedermos é como se fosse a primeira vez, sobretudo se lhe tivermos fechado a porta durante dias. E fechamos a porta durante dias sempre sem saber como fomos fechar a porta ao que nos dá tanto prazer, só em nome do que é saudável. Não sabemos nós que só se vive uma vez? Que o fim é sempre dramático e que sabemos nós lá como vamos morrer? “Ele há gente que morreu de cancro nos pulmões e nunca fumou”. “Depois eu até pratico desporto e o organismo metaboliza até cinco cigarros por dia”. E tudo se desfaz quando fizemos os nossos votos. E fizemos tantas vezes os nossos votos, porque não gostamos de ser controlados pelos nossos vícios, um homem que não controla os seus vícios é um homem perdido, sem força interior e tenho sido esse homem sem força interior para controlar o seu vício há décadas, desde a infância. Sinto-o com uma enorme tristeza.

A vontade arranja sempre maneira de aparecer. À nossa porta, no corredor, no caminho para a cozinha, até na retrete aparece. Mas quando aparece mais é mesmo nos lugares onde fomos felizes: à janela quando vemos chover e ouvimos a chuva cai no asfalto, soltar a fragrância do alcatrão ou então ao serão com cognac ou ainda logo pela manhã ou a seguir a um almoço pesado ao mesmo tempo que se toma um café.

Às vezes sinto que vim parar a mim por uma personalidade voluntariosa que me levou à experimentação em breves instantes, por precipitação e depois esteve décadas a lidar com os estragos colaterais, danos pesados de más decisões, resultado do momento.

A vontade de fumar está aí. Respiro devagar e lentamente, como se assim ela não desse pela minha presença. Fico abaixo dela, como se estivesse a cobrir-me por uma vegetação imaginária para ela não me ver.

Mas ela vê-me e eu respiro ofegante. Dou golfadas de ar que aspiro fresco, procuro a hiperventilação, vou andar, desço as escadas. Paro e fico à espera que passe. Olho para o relógio e espero que passem cinco minutos, porque me disseram que a vontade de fumar é a presença indesejada, da stalker que dura a sua vinda cinco minutos. Não me disseram é que desaparece para aparecer logo a seguir, ou no mesmo sítio em que me encontro, no carro a conduzir ou a caminho da casa de banho. Pior: não me disseram que pode durar mais do que cinco minutos.

O pior de tudo é que toda a minha vida é avaliada. Sim: TODA. E o que resulta dessa avaliação é simples: a vida sem fumar não vale a pena, é muito chata, não dá prazer, não é apenas uma vida que fica erradicada da necessidade de fumar, mas é uma vida que fica sem esse prazer intenso. Não há prazer como o de fumar. Por mais que leia testemunhos de vida de quem deixou de fumar, não estou lá, é difícil perceber a que correspondem: os cheiros, dizem, são diferentes, respira-se melhor, dorme-se melhor. Ou seja: faz-se tudo melhor. É uma questão de qualificação? Mas não é fazer ou não fazer. É só fazer melhor.

Um homem que não controla os seus vícios é um homem perdido, sem força interior e tenho sido esse homem sem força interior para controlar o seu vício há décadas, desde a infância. Sinto-o com uma enorme tristeza.

Mas fumar torna tudo possível. A diferença entre fumar e não fumar é a que existe entre impossível e absolutamente extraordinário. É uma questão de incremento, de poder, de intensificação absoluta, de ir por aí além, de optimização, superlativação. Não é ser “melhor”. É ser. Quando sem fumar: não se é. Ponto final parágrafo.

Mas eu decidi não ceder, eu decidi deixar de fumar. Aparentemente são decisões negativas.

Mas há uma decisão positiva em que não penso habitualmente. Eu decidi-me pela saúde. Não fumar não é apenas não fumar o cigarro. Não fumar o cigarro é péssimo, porque é não ter o prazer que fumar traz. Mas não fumar é não ter o momento seguinte ao tempo em que se fumou com as consequências colaterais, péssimas que resultam do fumo: mal-estar generalizado: taquicardia, perda de concentração, sobre excitação generalizada, tosse, se for à noite, insónia, enxaqueca.

A vida de todos os dias do fumador é precária: dores no coração e nos pulmões, perda de vitalidade, impotência sexual, risco de doenças pulmonares, cardíacas. Não fumar age positivamente contra os malefícios associados ao tabagismo, mas que são sentidos invertendo a tendência de perda de vitalidade. Ganha-se vitalidade: primeiro porque se consegue dizer não e é sempre importante ter vitórias e que haja derrotados, sobretudo: vontades de fumar ou episódios em que a vontade de fumar aparece, ou as múltiplas vontades que são diferentes ou é sempre a mesma em momentos diferentes ao longo do dia. A descrição tem sido feita: depois das primeiras 24 horas, 72, sete dias, um mês, três meses, um ano, etc. e nunca se esquece uma amante que deu tanto prazer.

O ganho de vitalidade é concreto: concentração, vivacidade, noites bem dormidas e correspondente melhoria dos ritmos circadianos, prática de desporto, com maior rendimento, maior disponibilidade crescente para tudo: desde o simples descer escadas para ir pôr o lixo lá baixo e correspondente subir das escadas. Poder fazer uma data de coisas que não se podia fazer: físicas e mentais. O gozo que dá poder dizer não ao que não se quer e agir em correspondência e poder sim ao que se quer e agir em conformidade. Mas sobretudo o aumento, a intensificação, do sentido vital.

Eu decidi-me pela saúde. Não fumar não é apenas não fumar o cigarro. Não fumar o cigarro é péssimo, porque é não ter o prazer que fumar traz. Mas não fumar é não ter o momento seguinte ao tempo em que se fumou com as consequências colaterais, péssimas que resultam do fumo: mal-estar generalizado: taquicardia, perda de concentração, sobre excitação generalizada, tosse, se for à noite, insónia, enxaqueca.

A vontade de fumar e o não querer fumar sou eu? Tenho duplas personalidades? São fenómenos diferentes no interior de mim próprio com consequências diferentes. Não está nada resolvido. Agora neste momento, sinto que a vontade de fumar me está a dizer que nada está resolvido e que aparece com um ataque instantâneo, muito pouco duradouro, mas suficiente para perceber que me deu uma vontade de fumar, ainda que para desaparecer e deixar de estar presente e eu não fumaria a estas horas do dia, porque nunca me deu para fumar a estas horas do dia. Mas por estar a escrever sobre a vontade de fumar, a vontade de fumar assome ao horizonte e manifesta a sua presença para dizer que nada está resolvido definitivamente e que eu ainda vou ouvir falar dela ou que ainda me vai confrontar consigo. Eu que pensava que ela só me procurava quando eu bebia álcool ou café. Não era eu que a procurava. Ou era. Tenho de perceber se não sou seu a vontade. Porque autonomizo a vontade. Autonomizo a vontade? Mas agora que tenho estado sem beber, a vontade de fumar aparece-me manifesta-se tremendamente, ruidosamente, furiosamente para eu a tomar. Eu tenho resistido. Com que forças. A vontade é persuasiva. Sem ela não sou nada, a vida não vale a pena. É não ser. Com ela tudo faz sentido, incremento, intensificação, aventura. E, contudo, não a quero. Não quero uma vida com fumo, uma vida que me faça mal, uma vida cujas consequências são perda manifesta de vitalidade, decréscimo, desintensificação, menorização, apoucamento.

Faço-me pequeno quando vem a vontade de fumar, vem de todo o lado, de dentro e fica à minha frente, para onde quer que eu me vire, suba ou desça, mude de direcção, pare ou comece a andar, mas normalmente é paralisado que fico. Dá-me a vontade, como se me batesse, estivesse sempre presente, cria uma necessidade insuperável de fumar. Não me lembro de ir correr ou fazer ginástica ou ter qualquer actividade que não apenas não envolvesse fumar mas rejeitasse completamente o fumo, como ir correr ou fazer marcha ou abdominais ou o que quer que seja. Quando decido fumar é uma excitação infantil de cedência, um prazer vital tremendo, que é matricial, como se entrasse por  um portal adentro para uma outra dimensão, que dura apenas o tempo que demora a fumar o cigarro ou a meia-hora em que ainda sinto os seus efeitos no meu corpo para além dos menos óbvios.

O ganho de vitalidade é concreto: concentração, vivacidade, noites bem dormidas e correspondente melhoria dos ritmos circadianos, prática de desporto, com maior rendimento, maior disponibilidade crescente para tudo: desde o simples descer escadas para ir pôr o lixo lá baixo e correspondente subir das escadas. Poder fazer uma data de coisas que não se podia fazer: físicas e mentais.

A vontade aparece e eu já a espero a determinadas horas e em situações expectáveis, depois de terminar um trabalho como se fosse gratificante ou para passar de um prazer para outro ou porque deixei de ter um prazer e fiquei sem prazer. O cigarro colmata o movimento que deixou de ter tracção ou de ser empurrado. Em suspenso é difícil ficar a pairar. O cigarro dá sentido à existência, preenche-a, estimula-a, dá-lhe bem estar, prazer, intensifica-a, incrementa-a, eleva-a, etc., etc.. E ela vem e é claustrofóbica, quer um tête-a-tête comigo e não me deixa, quer que eu a possua, quer que eu fume, quer que eu ceda, quer que eu vá buscar um cigarro, acenda-o, aspire o fumo de um cigarro inteiro. A todos esses momentos eu resisto e durante décadas tenho perdido, quando me decidi deixar de fumar, a vontade de fumar tem feito pouco de mim. Eu e ela somos outros. Eu não consigo apagá-la nem sequer é da minha lembrança, é da minha vida. Eu nunca a esquecerei, mas por agora ela está presente, é a minha realidade. Como fazer que ela seja controlável? Posso eu fazer ascender uma necessidade com uma disposição tão marcada e uma personalidade tão forte que a vontade de fumar desapareça? Ou é pedir uma realidade psicológica que nunca acontecerá?

Respiro longamente, como se fosse para não trair a minha presença a um assassino. Faço tudo para que a minha presença não seja notada, como se eu fosse passar despercebido a um fenómeno que nasce da minha cabeça, a vontade é a minha vontade de fumar, sou eu quem fuma e em última análise sou eu quem pode deixar de fumar e mais ninguém pode deixar de fumar por mim. Quer grite ou fique em silêncio, a vontade de fumar é a minha vontade de fumar e quem acaba por fumar sou eu sem apelo mas com agravo.

Nunca esquecer a forma como a vontade se insinua. Nem sempre é como uma coisa má, uma vontade má que quer o que eu não quero e que impõe o que ela quer. Ela surge coo qualquer coisa que me deixa ceder sem má consciência, como agora mesmo, como se eu pudesse distinguir entre ceder com violência e consciência absoluta da derrota ou como se não houvesse derrota nenhuma e a cedência não fosse cedência. Mas é só o diabo a surgir de outra maneira a tentar convencer-me de outro modo diferente do violente. Agora já podes, agora que sobreviveste à violência e resististe, agora não vale a pena resistir porque não há cedência, vá fuma um cigarro porque já não fumas.

Passaram-se três semanas desde que fumei o último cigarro. Tenho pensado muito na infância. Houve um regressar à infância. Fez-me pensar que há um poder constitutivo na infância. A criança não retira só prazer do mundo quando brinca. É exuberante porque cria prazer a brincar, a jogar, com o mundo. Uma criança pode estar no sítio mais inóspito e é um palácio. O poder da sua plasticidade é o do êxtase, o seu horizonte vital está cheio de emoções que embriagam só por estar vivo. É difícil regressar a este manancial.

É tremendo o modo como nos quer enganar a vontade do mal. Agora que já não fumas, fuma. Agora que já resististe tantas vezes, cede. Agora que já não sentes a violência da resistência e o modo como a ofereceste, podes ceder sem violência nem oferecer resistência. Que brincadeira, que horror. Mas é sempre a assim, com toda a lógica da adição. Já não há a mesma violência da sobrevivência à fissura. Por isso a tentação tem de surgir de uma maneira completamente diferente, com uma outra roupagem.

Passaram-se três semanas desde que fumei o último cigarro. Tenho pensado muito na infância. Houve um regressar à infância. Fez-me pensar que há um poder constitutivo na infância. A criança não retira só prazer do mundo quando brinca. É exuberante porque cria prazer a brincar, a jogar, com o mundo. Uma criança pode estar no sítio mais inóspito e é um palácio. O poder da sua plasticidade é o do êxtase, o seu horizonte vital está cheio de emoções que embriagam só por estar vivo. É difícil regressar a este manancial.

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António de Castro Caeiro nasceu em Lisboa em 1966. É especialista em Filosofia Antiga e Contemporânea, que leciona na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas desde 1990. É membro da Sociedade Ibérica de Filosofia Grega, Mestre em Filosofia Contemporânea e Doutor em Filosofia Antiga.

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Este texto foi publicado na revista Torpor. Para o ler na sua versão original clique aqui.

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