A Rússia vai criar uma associação internacional de organizações autoproclamadas de fact-checking. A iniciativa foi anunciada a 20 de novembro, num evento que juntou uma ilustre plateia de propagandistas do Kremlin. Um jantar de gala da verdade, se quisermos, em que tudo brilha, menos a transparência e a independência.
Os principais promotores incluem a TASS, a agência estatal de notícias da Rússia, e a ANO Dialog, uma organização sem fins lucrativos fundada em 2019 pelo departamento de informação e tecnologia de Moscovo. Apesar de se afirmar independente, a ANO Dialog é, na verdade, um braço da maquinaria de propaganda ao serviço de Putin.
A ideia de que a Rússia está a criar uma rede de fact-checking para combater a desinformação parece um enredo orwelliano. Não é piada, embora pudesse ser o início de um sketch. O Kremlin decidiu entrar na “batalha” pelos factos, não para combater a desinformação, mas para a redefinir. E, com isso, chega-nos um novo nível de sofisticação na propaganda russa, que continua a desafiar a resiliência das instituições democráticas.
Tenho de admitir: ainda mais do que ridículo, este movimento é estrategicamente excecional. Não basta inundar o espaço público com mentiras. Não. O passo seguinte é desacreditar os fact-checkers legítimos. E o truque, claro, é substituir a verdade por alternativas mastigadas que confundem ainda mais o público. Como quem joga xadrez com o destino das democracias.
Este “check” russo não é um movimento isolado. Há cerca de um ano, conversei com Jessikka Aro, uma jornalista finlandesa que se dedica há vários anos a investigar as operações de desinformação russa e os seus trolls nas redes sociais. Aro escreveu o livro Putin’s Trolls, no qual detalha as técnicas usadas para minar democracias ocidentais e silenciar vozes dissidentes.
Durante a nossa conversa, Aro, que já foi alvo de campanhas de assédio digital orquestradas por esses trolls, descreveu-os como uma verdadeira arma psicológica de destruição em massa. E, para ela, não há dúvida: o objetivo é radicalizar, polarizar e manipular audiências globais.
Aro, que sabe do que fala, descreveu a ação dos trolls como uma competição direta contra o trabalho dos jornalistas. Eles não estão apenas a espalhar desinformação; estão a tentar substituir os jornalistas na corrida pela atenção das audiências. E fazem-no de uma forma sistemática e impiedosa. A estratégia é simples: desacreditar os jornalistas sérios, independentes, que verificam os factos, enquanto se legitima os agentes da propaganda.
E, claro, os propagandistas jogam sujo. Não operam com a mesma base ética nem com o mesmo nível de transparência. A sua ética é mais parecida com a de um mágico que não mostra as mãos, mas nos rouba a carteira. A sua transparência é mais opaca do que os vidros dos veículos que transportam a maior parte dos chefes de Estado. Segundo Aro, o objetivo é projetar uma imagem de que os jornalistas – os verdadeiros – são corruptos, enviesados e fazem parte de uma conspiração para manipular as massas. Ora, quando Putin cria uma rede de fact-checking, é precisamente isso que está a fazer.
Mas o impacto da desinformação vai além das fronteiras da Rússia. De acordo com as conclusões de uma investigação de 2023, publicada na Science Advances, uma ligeira exposição a conteúdos propagandísticos – mais ou menos evidentes – pode ser o suficiente para transformar opiniões e, pior ainda, legitimar agressões. Este impacto devastador foi estudado antes mesmo da invasão da Ucrânia.
Com um painel representativo de cidadãos russos, foi demonstrado que uma dose leve de propaganda estatal aumentou o apoio à agressão militar de 8% para 48%. Entre os apoiantes de Putin, esse índice chegou aos 59%. Os dados reforçam uma lição importante: a manipulação narrativa não é uma questão de impacto marginal. Molda políticas, reescreve perceções e, tragicamente, alimenta guerras.
A nova rede russa de fact-checking é mais do que uma curiosidade autoritária; é um aviso. Mostra-nos como a verdade pode ser instrumentalizada e como as democracias podem ser minadas por dentro. Se não tomarmos medidas, o que hoje vemos como uma ironia grotesca pode tornar-se o novo normal. A guerra híbrida de Putin não é feita apenas de tanques e mísseis.
Mas, na realidade, isso prova outra coisa. Prova que o movimento – legítimo, transparente e profissional – de fact-checking é eficaz a combater as narrativas que desinformam premeditadamente. Se assim não fosse, esta fabricação russa não existiria. Não percamos esse farol de otimismo para nos manter no caminho certo.
Jessikka Aro deixou-me ainda com uma frase que não consigo esquecer: “Uma parte desta guerra de desinformação é convencer as pessoas de que a verdade é demasiado complexa para poder ser conhecida.” Talvez esse seja o maior perigo: não a mentira que vence, mas a ideia de que a verdade já não é alcançável.
Isso, caro leitor, é algo que não podemos permitir. Porque a guerra de desinformação não é apenas sobre mentir descaradamente. É sobre apagar a própria ideia de que existe uma verdade que valha a pena procurar. E, nesse campo, se o Kremlin sair vitorioso, a derrota será nossa.