O jornalismo local faz-me lembrar o cheiro do pão quente numa padaria de aldeia: é um sinal de que há vida, comunidade e alguma verdade em lugares mais ou menos esquecidos. Não há nada de extravagante nisso; é um ofício simples, mas essencial. Como o pão, a informação local alimenta as comunidades, mas a sua falta deixa um vazio que faz doer o estômago – um verdadeiro “deserto de notícias”, como os académicos Pedro Jerónimo e Marta Sánchez Esparza tão bem descrevem no seu estudo exploratório sobre jornalistas locais e fact-checking em Portugal e Espanha.
A desinformação sempre começou logo ali, na porta do lado, ainda nos tempos em que, para aceder à internet, tínhamos de escolher o horário em que a nossa avó não iria ligar, ocupando a linha com conversas sobre o tempo e o jantar.
Às vezes a desinformação começa mesmo dentro das nossas quatro paredes. Na infância, por exemplo, lembro-me de desinformar os meus pais sobre o tempo que dedicava ao estudo. Mas eles faziam o trabalho de casa: consultavam as fontes primárias (professores), analisavam dados documentais (as minhas notas) e ouviam o meu lado, dando-me oportunidade para me retratar ou me justificar. Faziam fact-checking.
O fact-check local poderia ser algo tão simples quanto verificar se o padeiro usa mesmo farinha biológica ou se os ovos são de galinhas felizes. Poderia ser somente confirmar que é pouco provável estudar 10 horas por dia e ter um mísero 3 a matemática, mas não é. É um trabalho complicado – por vezes ingrato – e muitas vezes inglório. E mesmo assim, cada vez mais importante.
O Polígrafo estreia esta semana uma nova secção chamada “Local”, mas que é muito mais do que o nome indica. É uma forma diferenciada de olhar para o território. É uma declaração de intenções. É uma vontade de olhar para todo o país que existe além de Lisboa e do Porto. É permitir que os cidadãos saibam que a Câmara da Póvoa de Lanhoso gastou “quase 15 mil euros” em bandeiras para os munícipes ou que, como afirmou recentemente Ramalho Eanes, a reduzida dimensão do círculo eleitoral de Portalegre ou Beja limita a possibilidade de um partido com 10% dos votos eleger deputados, criando potenciais problemas de representatividade.
O “Local” expande a esfera mediática sem ser preciso autoestradas ou linhas ferroviárias funcionais. Com a ajuda de parceiros – jornais locais – de várias regiões, desde as Regiões Autónomas até Trás-os-Montes, passando pelas Beiras, pelo Algarve, pelo Alentejo ou pelo Minho, vamos levar os factos mais longe e torná-los mais próximos das pessoas.
Com fact-checking de proximidade acreditamos que o país se pode tornar mais informado e menos frágil.
Quando falo de fragilidade não estou a recorrer a nenhuma espécie de hipérbole. Em 2022 já se sabia – graças a uma publicação do MediaTrust.Lab que 25,3% dos concelhos do país eram classificados como desertos ou semidesertos de notícias. Em 17,5% desses, não existia qualquer meio de comunicação local ativo, enquanto 7,8% tinham apenas cobertura noticiosa irregular ou insuficiente.
Além disso, 28,6% dos municípios estavam em risco iminente de se tornarem desertos noticiosos devido à presença de apenas um meio de comunicação com produção regular. Os dados eram, repito, de 2022. A tendência provavelmente piorou.
Essa mesma publicação inicia a sua apresentação com um testemunho definidor: “Somos notícia no verão, quando há incêndios, e no inverno, quando neva. Fora isso, que outros motivos de reportagem?”. A pergunta foi feita no 4.º Congresso dos Jornalistas Portugueses, em 2017, por um jornalista de uma rádio local do interior do país.
Há muitos mais motivos de reportagem. Mas estamos perante um duelo diário contra a desinformação e a falta de meios. O fact-checking local não é um luxo; é uma necessidade urgente. E aqueles que o fazem por essas redações fora –mesmo que de forma não estruturada, mesmo que apenas por uma pessoa – são, muitas vezes, os últimos bastiões contra a mentira institucionalizada.
O que os estudos nos dizem é simples, mas devastador: sem jornalismo local, as comunidades ficam órfãs de informação assente em factos – mesmo que algumas pessoas ainda não saibam o quão essencial é ter acesso livre aos mesmos.
O Polígrafo sabe e vai, a partir de agora, ficar mais próximo dos leitores.