“Tomei a decisão de avançar com uma operação militar especial“, anunciou o Presidente da Federação da Rússia, Vladimir Putin, em discurso transmitido via televisão no dia 24 de fevereiro de 2022. Que justificou com a necessidade de “parar imediatamente este pesadelo” do “genocídio contra os milhões de pessoas” que vivem na região ucraniana de Donbass, prometendo que “lutaremos pela desmilitarização e desnazificação da Ucrânia“, embora ressalvando que “os nossos planos não incluem a ocupação de territórios ucranianos“.
Nas horas seguintes ao anúncio de Putin começaram a ser lançados mísseis contra alvos na Ucrânia e iniciou-se uma invasão terrestre por forças militares russas, não apenas na região de Donbass mas também na direção da capital Kiev. Além de justificações falsas (não há indícios minimamente consistentes de “genocídio”, nem de um suposto regime “nazificado”), a propalada “operação militar especial” de Putin revelou desde logo consistir numa guerra clássica de conquista de territórios, culminando entretanto na anexação de quatro regiões ucranianas: Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhia.
O logro e a “novilíngua” (os cidadãos russos estão proibidos de evocar a palavra “guerra” para descrever o que está a acontecer na Ucrânia, sendo assim limitados à fórmula oficial de “operação militar especial”) são elementos-chave do padrão de atuação de Putin desde a brutal guerra na Tchechénia e subsequente ascensão ao poder na Rússia – uma história contada ao pormenor por jornalistas como Anna Politkovskaya (“A Rússia de Putin”, Pedra da Lua, 2007; “Tchechénia – A Vergonha Russa”, Alêtheia, 2008) ou David Satter (“Quanto Menos Soubermos, Melhor Dormimos”, Zigurate, 2022). No caso de Politkovskaya, custou-lhe mesmo a vida.
Esse padrão de atuação já tinha voltado a ser evidente no processo de anexação da Península da Crimeia, em 2014, mas desta vez a inaudita escala de resistência dos ucranianos obrigou a uma intensificação que já não se verificava praticamente desde a Tchetchénia. Sobretudo ao nível da desinformação: desde as “encenações” do massacre de Bucha e da destruição de um hospital em Mariupol, até aos alegados laboratórios de armas biológicas financiados pelos EUA, passando por vídeos deepfake com a imagem e voz do Presidente Volodymyr Zelensky a anunciar a rendição da Ucrânia. Em muitos casos, essa desinformação foi propagada através de canais oficiais, nomeadamente a página de Twitter da Embaixada da Rússia no Reino Unido.
Como em quase todas as guerras militares, os fluxos de propaganda e desinformação não são unidirecionais, ou exclusivos de uma das partes beligerantes, e o Polígrafo nunca deixou de verificar e sinalizar também as fake news de sentido oposto: as histórias da Ilha das Serpentes e do “Fantasma de Kiev” são os exemplos mais paradigmáticos. Mas a escala e a gravidade não são comparáveis, de todo. As valas comuns em Bucha (onde há indícios de genocídio, mas perpetrado por soldados russos) reavivam a memória do horror de Srebrenica (1995), em solo europeu, quando se tinha prometido novamente que “nunca mais”.
Atribuímos assim a classificação de “Mentira Internacional do Ano” de 2022 ao discurso de Putin, replicado ao longo dos quase 10 meses de guerra e exponenciado por fluxos de propaganda e desinformação que não deixaram de atingir Portugal, com especial incidência nas redes sociais. E também no discurso oficial de um dos partidos constituintes da democracia portuguesa: no primeiro comunicado do PCP, logo no dia 24 de fevereiro, a guerra na Ucrânia foi descrita como “operações militares de grande envergadura da Rússia na Ucrânia”. Sem uma única referência a “invasão”, ou “agressão”, por entre eufemismos como “tensão” ou “conflito”.