Desde o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, a 24 de fevereiro de 2022, a cobertura mediática passou rapidamente da pandemia de Covid-19 para a guerra em curso. A tendência repetiu-se nas redes sociais e nos grupos de partilha de desinformação. Os mesmos utilizadores e canais que durante mais de dois anos se concentraram em divulgar informações falsas ou enganosas sobre a pandemia e as vacinas voltam-se agora para a partilha de a desinformação e propaganda pró-Rússia.

Passaram mais de dois anos desde o início da pandemia de Covid-19. O conteúdo desinformativo massivo sobre a doença, o seu tratamento e as vacinas entretanto desenvolvidas geraram aquilo que a OMS apelidou de uma "Infodemia". Um fenómeno que pode ser definido como "o excesso de informação, incluindo aquela que é falsa ou descontextualizada, em ambientes digitais e físicos, durante um surto de uma determinada doença".

Das teorias da conspiração mais excêntricas, à negação total e completa de uma doença que matou milhões em todo o mundo, gerou-se, principalmente nas redes sociais tradicionais, como o Facebook, um clima desinformativo sem precedentes. Depois de anos focados na pandemia, os negacionistas voltam-se agora para o centro da agenda mediática: a Guerra na Ucrânia.

Do negacionismo da Covid-19 à partilha de desinformação pró-Rússia

No dia 24 de fevereiro, depois de meses de tensão, a Rússia invadiu a Ucrânia, num ataque armado que poucos achavam possível. Naturalmente, o foco mediático virou-se para o leste europeu e a partilha de informação nas redes sociais atingiu novamente níveis propícios à disseminação veloz de falsidades.

Nos grupos online, onde outrora se negava a Covid-19, a mudança de barricada foi quase automática. Bastaram alguns dias de guerra para a partilha de informação nestas contas ser quase exclusivamente pró-russa e, na sua maioria, falsa.

Esta tendência preocupante foi detectada por fact-checkers em toda a Europa. O Observatório Europeu de Media Digital (EDMO) reuniu a informação fornecida por sete organizações, num esforço conjunto para entender as ligações entre a desinformação sobre Covid-19 e a partilha de informações falsas sobre a guerra

Como destacado por várias de plataformas de fact-checking que participaram no estudo, como a "Maldita" e o "Verificat", não só a mudança de foco desinformativo foi rápida e envolveu quase a totalidade dos conteúdos publicados, como os meios de propagação se mantiveram inalterados em relação à pandemia. O Telegram, que já era o meio privilegiado para os negacionistas da Covid-19, é também o espaço ideal para os apoiantes de Putin partilharem informação, que não é alvo de verificação, escrutínio ou sinalização pela plataforma ou por verificadores independentes.

Como destacado pelo EDMO, "as comunidades que foram mais expostas à desinformação do Covid-19 agora são mais propensas a serem os principais destinatários da desinformação pró-Rússia. Os defensores da não vacinação e os céticos da Covid-19 também não são necessariamente pró-Putin, mas essa exposição pode aumentar a probabilidade de desenvolverem uma perspetiva distorcida sobre o conflito em curso".

O tipo e forma da desinformação foram agora adaptados ao novo contexto. Enquanto a desinformação sobre a pandemia visava principalmente criar sentimentos de medo ou ceticismo entre o público em geral, a desinformação relacionada com a guerra na Ucrânia pretende dar voz aos partidários do Kremlin, minimizar as responsabilidades da Rússia nos ataques e apresentar a invasão como uma operação legítima ou até falsa.

Em declarações à Agence France-Presse (AFP), Tristan Mendès-France, especialista em desinformação e teorias da conspiração,  afirma ser claro que "uma parte da esfera da conspiração científica sobre a Covid-19 mudou claramente para a cobertura da Ucrânia". Para o especialista tal "não é surpreendente", uma vez que "o ambiente de desinformação é uma concha larga que se agarra aos tópicos quentes do momento".

Cenários diferentes, mas as mesmas técnicas desinformativas

A organização de fact-checking polaca, "Demagog", uma das participantes da análise do EDMO, tem verificado, desde o início da guerra, que a sobreposição entre o Covid-19 e a desinformação pró-russa não se fica pelas mesmas fontes, mas tende também a reciclar os mecanismos explorados para moldar e espalhar fraudes durante a pandemia.

Nos últimos dois anos, muitas foram as teorias da conspiração que se basearam numa suposta encenação da pandemia. Uma das falsidades era a de que estavam a ser utilizados manequins para fingir que os hospitais estavam sobrelotados. Também era recorrente ler-se nas redes sociais que eram utilizados atores para fazer o papel de médicos, doentes ou até de políticos. As mesmas teorias e técnicas estão agora a ser utilizadas em relação ao conflito na Ucrânia, espalhando-se a informação e supostas provas de que a guerra está a ser ficcionada.

Para sustentar esta ideia claramente infundada, os teóricos das conspirações estão a partilhar vídeos fora de contexto de atores verdadeiros a utilizar maquilhagem para parecer feridos, ou apresentaram imagens reais de ruas desertas em Kiev para tentar provar que a situação no país estaria afinal calma. Segundo o EDMO, esta narrativa de negação do conflito foi até levada ao extremo, "alegando-se que a guerra seria organizada apenas para encobrir algum 'plano' maior ou para nos distrair de outra coisa, como os efeitos colaterais das vacinas".

O cruzamento da desinformação e da propaganda russa

Um dos factos mais interessantes identificados por especialistas a estudar este fenómeno desinformativo é o de que existe um número substancial de contas no Twitter que reagem de forma positiva (através de gostos e partilhas) ao conteúdo publicado pelo Governo russo e que foram criadas a 24 de fevereiro ou poucos dias depois, ou seja, mesmo no início do conflito.

Timothy Graham, professor de Media Digital na Universidade de Queensland, na Austrália, concluiu que "existe claramente uma vasta rede de bots a estimular artificialmente ('gostando') os tweets do governo russo e da embaixada".

A partilha de desinformação por parte do Governo e embaixadas russas tem sido uma constante desde o início da guerra. Utilizam as contas oficiais, com grande alcance, para estimular a partilha de notícias falsas que acabam por chegar aos canais que habitualmente partilham desinformação.

Uma das falsidades mais popular partilhada sobre a guerra foi a alegação de que a fuga de mulheres grávidas da maternidade bombardeada em Mariupol não passava de uma encenação. Esta história falsa foi partilhada pela conta oficial da embaixada russa em Londres e acabou por ser removida pelo próprio Twitter, mas não sem antes se disseminar por completo em várias redes sociais, gerando muita desinformação.

O EDMO, através dos verificadores de factos que participaram na análise, concluiu que as histórias falsas ou enganadoras sobre a guerra e a pandemia são, da mesma forma, "adaptadas para se encaixarem nos contextos, interesses e inclinações dos diferentes países e públicos", acabando depois por se espalhar por todos os tipos de canais: redes sociais, sites e até órgãos de comunicação tradicionais.

Os grupos camaleónicos identificados por todo o mundo

A mutação de grupos de desinformação sobre a Covid-19 em meios de propagação de informação falsa sobre a guerra na Ucrânia foi observada em vários países.

Em Espanha, o Telegram foi o palco para muitas destas transições. O projeto de fact-checking "Maldita" analisou os grupos mais conhecidos por disseminar informação falsa sobre o novo coronavírus nesta rede social. A conclusão foi clara, logo após as primeiras horas de invasão russa na Ucrânia, a informação partilhada nos grupos passou a ser maioritariamente sobre a guerra em curso.

O fact-checker espanhol destaca vários grupos e canais nesta rede social com centenas de milhares de utilizadores que têm acesso diário aos conteúdos partilhados. O "Noticias Rafapal", com cerca de 140 mil subscritores e o “Quinta Columna”, com mais de 240 mil utilizadores inscritos, são dois dos canais com maior alcance no país vizinho. Ambos ganharam popularidade durante a pandemia por serem um espaço de partilha e defesa da "Plandemic" - teoria que defende que o vírus da Covid-19 foi criado em laboratório, com o objetivo de controlar, ou até de dizimar, a população.

A linha de raciocínio mantém-se na apresentação de desinformação sobre a Guerra na Ucrânia: tudo não passa de uma encenação. Por exemplo, o canal de Telegram "Noticias Rafapal" partilhou e disseminou um vídeo de um set de filmagens, utilizado como prova de que está a ser realizada uma "simulação da guerra", com atores contratados e efeitos especiais. No entanto, as imagens estão a ser descontextualizadas e dizem respeito às gravações de um filme de ficção científica, rodado em 2013.

créditos: "Maldita"

O "Maldita" observou, igualmente, que na maioria dos grupos de Telegram a palavra "Ucrânia" já foi referida mais vezes do que a expressão "Plandemic", apesar de o conflito apenas ter começado no final de fevereiro. A transformação no tipo de desinformação partilhada é clara.

Ainda em Espanha, os jornalistas do "Verificat" observaram a mesma tendência em vários grupos nas redes sociais e em sites de partilha de fake news. Exemplo disso é o "El Darrer Far", um site catalão criado em junho de 2020, que começou por partilhar teorias da conspiração sobre redes de tráfico de crianças e pedofilia geridas por elites globais. Mais tarde, focou-se na propaganda falsa sobre os alegados perigos das vacinas contra a Covid-19 e, nas últimas semanas, virou-se quase exclusivamente para a partilha de informação falsa sobre a guerra.

Em Itália, as conclusões são as mesmas. Os jornalistas do "Facta" analisaram o caso do site "Mag24.com", um dos maiores disseminadores de desinformação sobre a pandemia no país, que abandonou rapidamente o tema para colocar em destaque o conflito na Ucrânia. Mais uma vez, o estilo de partilhas mantém-se. Neste caso, o site utiliza sempre a mesma linha visual: imagens fortes com frases curtas e polémicas sobrepostas, sempre com tipos de letra e cores apelativos. O conteúdo é desenhado para circular nas redes sociais, com o objetivo de alcançar milhares de pessoas.

créditos: "Facta"

Desde março, o site começou a partilhar propaganda pró-russa. Foi um dos principais meios a propagar a informação de que a famosa foto da mulher grávida, que escapou com vida ao ataque de uma maternidade, na cidade Mariupol, reportava afinal uma encenação. O argumento utilizado para sustentar a teoria falsa foi o facto de, alegadamente, esta mulher trabalhar enquanto influenciadora digital.

Apesar de serem dezenas os casos de grupos que se viraram para a partilha de desinformação sobre a guerra, mantendo ou até aumentado o seu público, identificaram-se também grupos que perderam seguidores não alinhados com as teorias pró-russas.

Um investigação do "Corretiv" concluiu que, na Alemanha, e no caso concreto do site de desinformação "Reitschuster.de", foram muitos os apoiantes das teorias de negação da eficácia das vacinas contra a Covid-19 que não se converteram ao consumo de informação falsa sobre a guerra na Ucrânia. Desde 24 de fevereiro, o site já perdeu mais de 25.000 subscritores, de um total de 320.000. Num dos artigos recém-partilhados sobre o conflito, lê-se num comentário: "Esta é a pior história sobre a guerra que já li. Vocês são parciais e raivoso, parem de escrever sobre a Rússia e voltem à Covid!"

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