Por: Polígrafo | 24 de julho, 2024, 15:30
A desinformação encontrada nas redes sociais sobre imigrantes e refugiados não é um fenómeno novo. Mas, em Portugal, estas narrativas ganharam maior tração nos três meses que antecederam as últimas eleições europeias, no dia 9 de junho. Alegadas situações de violência, a “substituição da classe trabalhadora branca”, a suposta facilitação no acesso ao Serviço Nacional de Saúde e os apoios a refugiados – que seriam superiores aos atribuídos aos reformados portugueses – foram alguns dos principais temas verificados pelo Polígrafo. A situação não é exclusivamente portuguesa, como podemos analisar na base de dados do projeto Elections24Check, uma iniciativa da European Fact-Checking Standards Network (EFCSN) que juntou um consórcio de mais de 40 organizações de fact-checking em toda a Europa.
Legalização de imigrantes resulta em “votos no partido que os legalizou”?
Esta teoria de conspiração foi difundida nas redes sociais de forma mais intensa durante a campanha para as eleições legislativas portuguesas que se realizaram em março. Partindo de notícias sobre a regularização de imigrantes alegou-se que essas pessoas deveriam votar no partido do Governo logo nas eleições seguintes.
Denúncias similares já tinham circulado nas redes sociais aquando de eleições anteriores e geralmente surgem associadas a notícias sobre a regularização de imigrantes em Portugal, com especial atenção aos originários do Brasil e outros países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa que, em 2023, passaram a ter acesso à autorização de residência de forma automática.
No entanto, como o Polígrafo verificou a ideia é falsa já que no que respeita a eleições legislativas, entre os imigrantes entretanto regularizados (ou com autorização de residência) apenas poderão votar os cidadãos brasileiros titulares do Estatuto de Igualdade de Direitos Políticos, desde que inscritos no recenseamento no território nacional.
O facto é que para requerer o Estatuto de Igualdade de Direitos Políticos – informa-se na página do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras – “os cidadãos devem preencher, cumulativamente, os seguintes requisitos: ter obtido previamente o Estatuto de Igualdade de Direitos e Deveres; não se encontrar privado dos direitos políticos no Brasil; ser residente legal, com título válido há, pelo menos, três anos“.
Ou seja, mesmo esses cidadãos brasileiros (e sob as referidas condições e requisitos) ainda terão de esperar três anos para aceder ao direito de voto nas eleições.
Quanto às eleições para o Parlamento Europeu, além dos cidadãos nacionais e dos cidadãos brasileiros titulares do Estatuto de Igualdade de Direitos Políticos, podem votar os cidadãos da União Europeia, não nacionais do Estado português, mas recenseados em Portugal.
“Portugueses no estrangeiro perdem o acesso à Saúde, mas os imigrantes chegam e têm acesso a tudo”
“Os portugueses no estrangeiro perdem o acesso à Saúde, mas os imigrantes chegam e têm acesso a tudo. Isto faz sentido?”: em causa um argumento utilizado pelo líder do Chega, André Ventura, em abril, para ilustrar os desafios que a política de imigração atualmente em vigor tem para o país, segundo uma publicação partilhada pelo próprio na rede social X/Twitter.
Para sustentar a afirmação, o Chega recorreu a uma notícia do “Jornal de Notícias”, datada de 6 de abril deste ano e intitulada: “Emigrantes portugueses estão a receber email de desativação da inscrição no centro de saúde.”
Mas será que os “portugueses no estrangeiro perdem o acesso à Saúde, mas os imigrantes chegam e têm acesso a tudo”?
O Polígrafo verificou que a informação veiculada nessa notícia foi usada de modo descontextualizado por parte de André Ventura. É que, segundo esclareceu o Governo, em comunicado emitido em dezembro de 2023, os “emigrantes portugueses continuarão a ter pleno acesso ao SNS e não terão que pagar pelos cuidados recebidos”.
E esclareceu-se, por essa via, o que está verdadeiramente em causa: “Reitera-se que não está em causa que tenham que pagar por esses cuidados. O que se altera é a identificação das entidades financeiramente responsáveis para o caso dos cidadãos que não residem em Portugal, permitindo que o Estado português possa ser ressarcido das despesas em que o SNS incorre no tratamento de cidadãos que têm cobertura de saúde num outro país, sempre que isso seja aplicável.”
O comunicado clarificou ainda que “a correta identificação da entidade financeiramente responsável permite aos vários países faturarem a atividade entre si, assegurando assim as regras que estão em vigor a nível internacional e permitindo ao nosso país atuar num regime de reciprocidade e responsabilidade fiscal“.
Sobre a segunda parte da afirmação de André Ventura – que os imigrantes chegam e têm acesso a tudo” –, também apresenta imprecisões. Segundo a informação disponibilizada no site da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), “são beneficiários do Serviço Nacional de Saúde (SNS) todos os cidadãos portugueses, bem como todos os cidadãos com residência permanente ou em situação de estada ou residência temporárias em Portugal, que sejam nacionais de Estados-Membros da União Europeia ou equiparados, nacionais de países terceiros ou apátridas, requerentes de proteção internacional e migrantes, com ou sem a respetiva situação legalizada, nos termos do regime jurídico aplicável”.
Porém, o acesso ao SNS de indivíduos que não possuam “uma autorização de permanência ou residência” ou estiverem “em situação irregular” acarreta custos, “sendo-lhes exigido o pagamento dos cuidados recebidos segundo as tabelas em vigor”.
Refugiados recebem 800 euros e reformado português com 40 anos de descontos recebe apenas 280?
Através de um vídeo publicado no TikTok alegou-se, em maio, que um português com 40 ou mais anos de descontos recebe 280 euros de reforma e um refugiado chegado a Portugal recebe 800 euros de ajuda social.
O vídeo é composto apenas por duas imagens com a intenção de comparar duas realidades. Na de cima um idoso, cabisbaixo e roupa simples, com a indicação de que se trata de um “português com 40 anos ou mais de descontos” que receberá 280 euros mensais; na imagem colocada abaixo vê-se uma refugiada, com um colete salva-vidas e um smartphone na mão, que receberá 800 euros.
O autor da publicação, que em cinco dias reuniu mais de 17 mil visualizações, diz ainda que esta é “infelizmente uma realidade” e que os “Governos anteriores dão de borla aos de fora”.
Mas esta “realidade” não existe. Não só é falso que um reformado ganhe perto de 250 euros com 40 anos de descontos, como é falso que um refugiado ganhe 800 euros.
O Polígrafo confirmou junto do Conselho Português para os Refugiados que “um requerente de proteção internacional – ou seja, quem aguarda decisão ao pedido de proteção apresentado em Portugal – que não disponha de meios suficientes para permitir a sua subsistência, tem acesso a condições materiais de acolhimento, incluindo prestação pecuniária de apoio social no valor de 150 euros mensais”.
No caso das crianças acompanhadas esse valor cai para os 50 euros ou 75 Euros, consoante a criança tenha até 4 anos de idade, ou entre os 4 e os 18 anos. respetivamente;
Depois da transição dos requerentes para o apoio do Instituto de Segurança Social, o valor referido passa a corresponder a 70% do valor do Indexante dos Apoios Sociais (IAS), ou seja, cerca de 235 euros mensais.
Imagens de concentração de imigrantes em cidade portuguesa comprovam substituição da “classe trabalhadora branca”?
Na rede social X circulou um vídeo viral – em maio – que mostrava um conjunto de migrantes numa rua em Odivelas, cidade portuguesa do distrito de Lisboa. Alega-se que as imagens provariam a “substituição populacional“, mas estas foram gravadas junto a um local de culto dos sikhs, o único na região.
“Odivelas era um dormitório da classe trabalhadora branca de Lisboa… foi invadido! Devolver Portugal aos portugueses, antes que seja tarde demais!”, destacava o tweet que era acompanhado do vídeo com menos de um minuto que se tornou viral e que serviria para sustentar a tese de “substituição populacional”.
Sendo este o único local de culto do siquismo na região de Lisboa, justifica-se a concentração de mais imigrantes neste local, especificamente sikhs. O siquismo é uma religião minoritária em Portugal que prega pela “igualdade, justiça social, serviço à humanidade e tolerância para com outras religiões”.
De acordo com a Comunidade Sikh de Portugal, existem em Portugal cerca de 40 mil crentes e o templo de Odivelas tem uma comunidade de cerca de cinco mil sikhs.
Vídeo que era supostamente atual retratava uma situação de violência relacionada com imigrantes em Lisboa?
Em junho, poucos dias antes das eleições europeias, esteve a ser partilhado, de forma viral e em várias redes sociais, um vídeo que alegadamente retrataria uma situação de violência entre imigrantes e polícias em Lisboa. Conteúdo que motivou comentários xenófobos e racistas. Há quem tenha dito que é o “custo do multiculturalismo” e defenda a necessidade de limpar “o lixo da Europa” urgentemente. O problema é que as imagens não correspondem realmente à descrição que tem sido difundida em muitas publicações.
O Polígrafo analisou as imagens, verificando que estas foram captadas na noite de 6 de março de março de 2024, quando adeptos de um clube de futebol italiano (Atalanta, de Bergamo) entraram em confronto com adeptos de um clube escocês (Rangers, de Glasgow), junto ao hotel onde estavam hospedados os escoceses, em Lisboa.
O autor do tweet acabaria por indicar, duas horas depois da publicação, que tinha sabido que se tratava “de claques do Atalanta e do Rangers” e que estas demonstraram não ter “respeito nenhum”.
Questionado no dia 4 de junho sobre a ausência de contexto no tweet inicial, o autor apontou já ter esclarecido “que se tratava de duas claques de futebol, Atalanta e Rangers” e questionou porque haveria de retirar a publicação.
“Só fiz uma pergunta e as pessoas foram respondendo o que achavam que era e eu esclareci quando o soube. Nunca mencionei imigrantes, mas poderiam perfeitamente ser“, concluiu.
Estes cinco exemplos retratam uma escalada da narrativa “anti-imigração” em Portugal, especialmente em altura de eleições – tanto nacionais, como europeias.
Algo que, de acordo com várias verificações de factos publicadas na base de dados Elections24Check, tem sido recorrente em vários países europeus.
Como exemplo do fenómeno, a espanhola Newtral, verificou – em junho – que é falso que os imigrantes irregulares recebam ajuda de 1.000 euros à chegada a Espanha. A Maldita.es – outra das principais organizações de verificação de factos em Espanha – analisou dois vídeos fora de contexto sobre o tema: que, alegadamente, mostravam cenas de violência: um deles em Barcelona e, outro, nas Canárias, ambos envolvendo pessoas imigrantes.
Também em março, a delegação grega da AFP desmascarou uma fotografia de 2010 que foi usada para difundir uma retórica anti-imigrante e antimuçulmana. Por fim, a Re:Baltica, uma plataforma internacional, sediada na Lituânia, verificou – em abril – que não é verdade que milhares de imigrantes chegam ilegalmente a Inglaterra todos os dias.
Os temas relacionados com as migrações são a 4ª categoria com mais conteúdo inserido na base de dados Elections24check. São 255 artigos ao todo, só atrás de categorias como o clima, a guerra na Ucrânia e assuntos domésticos dos vários países europeus.