“A desinformação foca-se muito em atacar as potenciais falhas do sistema”. Este é um dos principais destaques que Miguel Crespo, investigador do ISCTE, elenca ao Polígrafo na sequência do mais recente estudo do Observatório Ibérico dos Media Digitais (Iberifier), que se debruçou sobre as particularidades do panorama da desinformação em Portugal e Espanha entre 2020 e 2023.
Durante este período, foram “três os “acontecimentos que em termos políticos, sociais e mediáticos se destacaram” no país e que, por essa mesma razão, eram “mais permeáveis à desinformação”: a crise inflacionista, as eleições parlamentares de 2022, e a invasão da Ucrânia. Segundo o especialista citado, foram estas as motivações que levaram a equipa de investigadores do Iberifier a debruçar-se sobre os mesmos neste “Relatório sobre os aspectos políticos e jurídicos da desinformação em Portugal e Espanha”.
Em causa estavam, respetivamente, um “acontecimento conjuntural, que foi uma inflação única em 30 anos”, um “acontecimento estrutural, que foram as eleições em 2022”, e, finalmente, “um acontecimento internacional com impacto direto sobre a política e a desinformação em Portugal”, explicou o investigador. E concluiu-se com este estudo que “todos estes temas tinham um grande espaço mediático, um impacto sobre a população portuguesa, e eram tema de discussão e de batalha política” – tendo motivado inúmeros conteúdos desinformativos, segundo mostra o estudo.
Só sobre o conflito atualmente em curso na Ucrânia, registou-se o “desmentido de 12 peças por semana” em Portugal, apontou a investigação. Nas palavras de Miguel Crespo, determinou-se ainda que “a maior parte da desinformação relacionada com a guerra era mais favorável ao lado russo do que ao lado ucraniano”. A mesma fonte explicou também que ela terá sido “gerada, na sua grande maioria, a nível internacional”, e provavelmente com um “estrutura organizada” por trás, capaz de possibilitar a “criação e disseminação dessa desinformação enquanto arma de guerra”.
Já no que toca aos fenómenos eleitorais citados, o especialista destacou que se registou, durante o período analisado, “mais desinformação favorável às posições políticas da direita do que favorável às posições políticas da esquerda”. Mas fez um reparo: “Se ela é organizada e tem algum tipo de relação com um partido ou outras organizações políticas ou sociais, isso é muito difícil de dizer.”
Finalmente, destaque para a temática da inflação em Portugal. “O que nos pareceu mais relevante foi o tipo de campanhas, e não estou a dizer que são organizadas, que têm como objetivo desestabilizar as instituições”, apontou aquele que foi um dos participantes deste estudo. Mas do que se trata ao certo? De acusações diretas ao “Governo, autarquias e outros órgãos de soberania”, por serem alegadamente “incapazes de lidar com a situação” causada pela crise inflacionista e do “impacto direto” da mesma sobre “cada um dos cidadãos”.
Sobre a “origem” destas correntes de desinformação registadas nos últimos anos em Portugal, o docente do ISCTE destacou que “identificar” a mesma é “um dos grandes problemas” no que diz respeito a esta matéria. E acrescentou: “Consegue-se com alguma facilidade mapear o percurso da desinformação e o impacto que ele tem, mas é difícil determinar a origem.”
Relativamente ao país vizinho, importa notar que os temas salientados pelos investigadores foram outros, “tendo em conta o impacto” sobre os cidadãos locais. O destaque foi, assim, para: a “Lei Só sim significa sim”, referente ao consentimento sexual; as eleições espanholas, locais e regionais, de 2023; e a imigração. Sobre este último tema, Miguel Crespo fez um apontamento: “Todos os estudos internacionais, bem como dados do Conselho da Europa e do Eurostat, põem sempre a imigração como um dos grandes problemas da maior parte dos países europeus. Portugal aí é exceção.”
Concluindo, qual será, então, o objetivo destes produtores de desinformação? Miguel Crespo explicou: “A democracia é um sistema como qualquer outro, tem as suas falhas como qualquer outro. E a desinformação foca-se muito em atacar as potenciais falhas do sistema, que existem sempre, pois não existem sistemas perfeitos, e atacá-lo, tentando assim minar o próprio sistema.” Ou seja, o seu intuito passa por “pôr em causa o funcionamento das democracias e, com isso, criar dificuldades ao funcionamento” das mesmas, “criando descrédito nas instituições perante os cidadãos”.
Entre os principais alvos neste âmbito, destacou ainda que, segundo a mais recente literatura sobre o tema, se conclui que “os Governos são sempre mais atacados, porque são eles os detentores do poder”. Porém, a desinformação pode ainda versar sobre “o sistema de Justiça, o próprio Parlamento e o seu funcionamento”, bem como sobre outros “agentes políticos, de forma individual ou em grupo”. Uma ligeira exceção prende-se, em Portugal, com a “Presidência da República”, que “não é particularmente atacada” por via da desinformação.