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Sócrates: “Nunca houve comportamento contrário aos deveres do cargo” de primeiro-ministro. Confirma-se?

Política
Este artigo tem mais de um ano
O que está em causa?
"O que o juiz [Ivo Rosa] diz é que ao longo dos meus seis anos de mandato [como primeiro-ministro], isto é muito importante para mim, nunca houve um comportamento contrário aos deveres do cargo, nunca houve", garantiu esta noite José Sócrates, na entrevista à TVI. Verdade ou falsidade?

Consultando a decisão instrutória da “Operação Marquês”, apresentada pelo juiz Ivo Rosa no dia 9 de abril, deparamos com várias conclusões e factos indiciados que desmentem a supracitada alegação de José Sócrates.

“Atenta a análise da prova e perante a factualidade imputada aos arguidos, tal como amplamente exposto e expendido, mostra-se indiciado que existem entregas de dinheiro por parte do arguido Carlos Santos Silva ao arguido José Sócrates, bem como pagamentos feitos por aquele arguido a favor deste, no montante global de 1.727.398,56 euros, no entanto, não se mostra indiciado, entre 2006 a 2011, a prática de nenhum acto concreto pelo arguido José Sócrates, de forma a que se lhe possa imputar um crime de corrupção passiva de titular de cargo político, contrário ou não aos seus deveres de primeiro-ministro, ou seja, um crime de corrupção passiva para acto lícito ou acto ilícito”, escreve o juiz de instrução, Ivo Rosa, na página 2608 da decisão.

“No entanto mostra-se indiciado, como acabamos de referir, a existência de entregas em numerário e pagamentos feitos pelo arguido Carlos Santos Silva ao arguido José Sócrates que, quer pela forma como foram entregues, quer pelos montantes envolvidos e perante a ausência de elementos de prova que sustentem a versão do alegado empréstimo por parte do arguido Carlos Santos Silva, indiciam uma aceitação de vantagem patrimonial por parte do arguido José Sócrates, na qualidade de primeiro-ministro, por parte do arguido Carlos Santos Silva”, ressalva.

“O modo como a entregas em numerário, bem como os pagamentos, foram realizadas, o modo como foram usufruídas, nomeadamente com a interposição de terceiros, e o facto de o arguido Carlos Santos Silva exercer funções no domínio da angariação de obras, projectos e solução de dificuldades do Grupo Lena junto de clientes, levam-nos a presumir que as entregas em numerário tinham como objectivo criar um clima geral de simpatia ou de permeabilidade por parte do primeiro-ministro, ou aquilo a que o Ministério Público designou em sede de debate instrutório, de ‘compra da personalidade‘”, acrescenta Ivo Rosa.

“Com efeito, apesar da relação de amizade que existia entre os arguidos Carlos Santos Silva e José Sócrates, as entregas em numerário, pelas razões referidas no parágrafo precedente, não podem ser concebidas no contexto da pessoalidade, mas apenas no âmbito da funcionalidade. Foi o facto de o arguido José Sócrates ser primeiro-ministro que conduziu àquelas entregas“, conclui.

Total: 1.727.398,56 euros. Desde a "compra de livros" até ao "pagamento de viagens" e "obras de arte", passando por "quantias em numerário entregues pelo arguido João Perna" e "feitas de forma direta pelo arguido Carlos Santos Silva ao arguido José Sócrates".

Outro exemplo, na página 2566, ao fundamentar em relação às “quantias entregues de forma direta pelo arguido Carlos Santos Silva ao arguido José Sócrates”. Segundo o juiz de instrução, “quanto às entregas em dinheiro feitas pelo arguido Carlos Santos Silva ao arguido José Sócrates, bem como quanto ao pagamento de algumas despesas, ambos os arguidos referiram, em sede de instrução, que as quantias em causa traduziram-se em empréstimos realizados pelo arguido Carlos Santos Silva e por iniciativa deste face às necessidades financeiras do arguido José Sócrates. (…) Quanto a esta explicação, tendo em conta os montantes envolvidos, a forma como eram realizadas as entregas e o destino que era dado às mesmas, suscitam-se dúvidas quanto à realidade do alegado pelos arguidos em causa”.

“Com efeito, as entregas feitas pelo arguido Carlos Santos Silva ao arguido José Sócrates eram em numerário e, em regra, com a interposição de terceiros, o que contraria, em termos da normalidade, a realização de um verdadeiro empréstimo. Na verdade, nada impedia que o arguido Carlos Santos Silva, atenta a relação de amizade que mantinha com o arguido José Sócrates e à disponibilidade financeira que detinha realizasse empréstimos a este arguido. Também é normal, em nome dessa amizade e dessa proximidade, que o fizesse de forma informal e sem exigir qualquer garantia ou retribuição a título de juros”, salienta.

“Em face do exposto, indicia-se que as quantias em causa não correspondem a um empréstimo, mas sim a entregas relacionadas com as funções de primeiro-ministro exercidas pelo arguido José Sócrates e como contrapartida pela disponibilidade por este manifestada perante o arguido Carlos Santos Silva”, escreve o juiz Ivo Rosa, na decisão instrutória, contrariando a alegação desta noite de José Sócrates na entrevista à TVI.

“O que não pode ser qualificado como normal à luz dos critérios da razoabilidade e de experiência comum é que esses empréstimos tenham sido realizados, sobretudo pelos montantes envolvidos, na forma como o foram. Nada impedia que os mesmos tivessem tido lugar por transferência bancária, tanto mais que ambos os arguidos são titulares de contas bancárias e até, como resulta do extracto bancário de fls. 37, Apenso Bancário 11, já tinham recorrido a essa modalidade aquando da transferência bancária no valor de 7.500,00 euros realizada no dia 2-9-2010 da conta do arguido Carlos Santos Silva para a conta do arguido José Sócrates”, argumenta Ivo Rosa.

“Da análise feita às conversas telefónicas mantidas entre os arguidos Carlos Santos Silva e José Sócrates denota-se um cuidado, traduzido no recurso a uma linguagem codificada, mantido entre os mesmos quando falam sobre entregas de quantias em numerário, o que indicia, também, um conteúdo ilícito subjacente a essas entregas. Com efeito, os arguidos, por forma a evitar a utilização da palavra dinheiro, recorrem à utilização de palavras como ‘documentos‘, ‘fotocópias‘ e ‘livros‘”, prossegue.

“Acresce que muitas das entregas em numerário feitas pelo arguido Carlos Santos Silva ao arguido José Sócrates tiveram como destino terceiros, como é o caso das entregas feitas às testemunhas Célia Tavares, Maria João Rodrigues e Lígia Correia, o que contraria o argumento avançado pelo arguido José Sócrates de que esses empréstimos estavam relacionados com as suas necessidades económicas decorrentes da sua deslocação para Paris enquanto estudante. Em face do exposto, indicia-se que as quantias em causa não correspondem a um empréstimo, mas sim a entregas relacionadas com as funções de primeiro-ministro exercidas pelo arguido José Sócrates e como contrapartida pela disponibilidade por este manifestada perante o arguido Carlos Santos Silva”, escreve o juiz Ivo Rosa, na decisão instrutória, contrariando a alegação desta noite de José Sócrates na entrevista à TVI.

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Avaliação do Polígrafo:

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