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Organograma das 52 entidades que “controlam os incêndios em Portugal” tem fundamento? Não passa de uma extrapolação grosseira

Sociedade
Este artigo tem mais de um ano
O que está em causa?
Propagou-se viralmente nas redes sociais, especialmente na semana de meados de julho em que se registaram mais e maiores incêndios rurais ou florestais em Portugal. Consiste na imagem de um organograma com as 52 entidades públicas que supostamente "controlam os incêndios em Portugal". Respondendo à solicitação de leitores, o Polígrafo verifica.

Da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF) à Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) e ao Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), passando ainda pela Guarda Nacional Republicana (GNR). A partir destas quatro entidades em destaque avança-se para um desdobramento em mais 48 entidades que supostamente “controlam os incêndios em Portugal”, o que perfaz um total de 52 entidades públicas.

A imagem do organograma propagou-se viralmente nas redes sociais, especialmente na semana de meados de julho em que se registaram mais e maiores incêndios rurais ou florestais em território nacional, associada à seguinte mensagem: “Entidades que controlam os incêndios em Portugal. Estou tranquilo.”

“Milhares de boys espalhados pela Administração Pública a desgraçarem o país”, comenta-se numa das publicações com a imagem em causa. Estas invectivas contra a Administração Pública – da profusão de entidades com competências sobrepostas ao alegado caos organizacional do processo de gestão da prevenção e combate aos incêndios rurais em Portugal – são recorrentes na maior parte das partilhas detectadas nas redes sociais. Mas será que a composição do organograma tem fundamento?

O Polígrafo analisou as missões e competências das 52 entidades identificadas no organograma, cruzou essa informação com o disposto na Diretiva Operacional Nacional nº 2 – Dispositivo Especial de Combate aos Incêndios Rurais (DECIR 2022) e chegou à conclusão de que se trata de uma extrapolação grosseira. Nesse sentido apresentamos uma dezena de exemplos, com informação condensada, evitando assim um levantamento demasiado exaustivo:

Afocelca: É um agrupamento de empresas privadas, criado em 2002, conjugando então a Aliança Florestal (Grupo Portucel-Soporcel), Celbi (Stora-Enso), e Silvicaima (Caima). Atualmente mantém-se com as empresas florestais do grupo The Navigator Company e do grupo Altri. É verdade que, desde 2005, a Afocelca integra o dispositivo nacional de defesa da floresta contra incêndios florestais (DFCI), da Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC), mas não é uma entidade pública e não tem qualquer relação de dependência com a Força Especial de Bombeiros (FEB), ao contrário do que se indica no organograma.

ANAC: A Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC) é a autoridade nacional em matéria de aviação civil, pessoa coletiva de direito público, com a natureza de entidade administrativa independente, dotada de autonomia administrativa, financeira e de gestão, bem como de património próprio. A ANAC exerce funções de regulação, fiscalização e supervisão do setor da aviação civil e rege-se de acordo com o disposto no direito internacional e europeu, na Lei-Quadro das entidades reguladoras, nos presentes estatutos e na demais legislação setorial aplicável.

É verdade que tem competências em matéria de certificação de meios aéreos utilizados no combate aos incêndios, mas é uma competência geral, aplicável a todo o setor da aviação civil, pelo que classificá-la como uma entidade que “controla os incêndios” não deixa de ser uma extrapolação.

APA: A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) tem como missão a gestão integrada das políticas ambientais e de sustentabilidade. De acordo com o estabelecido no DECIR 2022, “disponibiliza em tempo real, via Internet, dados hidrometeorológicos das estações com telemetria, da rede de monitorização do Sistema Nacional de Informação de Recursos Hídricos (SNIRH). Por videoconferência, quando necessário, garante a troca de informações no âmbito da prevenção dos incêndios rurais com os técnicos da ANEPC. Fornece esclarecimentos técnico-científicos sobre as observações hidrometeorológica, registadas na rede de monitorização do SNIRH, quando necessário e a pedido da ANEPC”.

Ou seja, quase tudo relacionado com dados hidrometeorológicos e sob uma lógica de cooperação e partilha de informação, não de “controlo dos incêndios”.

CNE: Além dos voluntários do Corpo Nacional de Escutas (CNE) que participam em Equipas de Apoio de Retaguarda (EAR) e realizam trabalhos humanitários de apoio a bombeiros e populações, não se vislumbra em que sentido formal é que o CNE representa uma entidade que “controla os incêndios em Portugal”. Este trabalho voluntário de auxílio, aliás, está previsto no DECIR 2022, na categoria de “cooperação de outras entidades”, delimitando-se que o CNE “intervém e atua nos domínios do apoio logístico, assistência sanitária e social, de acordo com as suas próprias disponibilidades”. Mais uma vez, uma clara extrapolação patente no organograma.

DGAM: A Direção-Geral da Autoridade Marítima (DGAM) é um serviço público, integrado no Ministério da Defesa Nacional, dotado de autonomia administrativa, estando-lhe legalmente cometidas a direção, coordenação e controlo das atividades exercida​​​​s pelos seus órgãos e serviços, a desenvolver em âmbito da Autoridade Marítima Nacional e nos espaços sob sua jurisdição. Cabe à DGAM, em especial, apoiar em termos técnicos, jurídicos, logísticos e financeiros, a ação das Capitanias dos Portos, como seus órgãos locais, atendendo a que neles reside, em termos funcionais, o exercício da Autoridade Marítima do Estado Português.

Ora, a única ligação da DGAM aos incêndios florestais que identificamos está inscrita no DECIR 2022, referente aos “locais de scooping para os aviões anfíbios“, cujo estudo para a sua definição “é efetuado pelo CNEPC, em colaboração com os operadores dos meios e com a DGAM, nos locais do domínio público marítimo”.

INEM: O Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) é o organismo do Ministério da Saúde responsável por coordenar o funcionamento, no território de Portugal Continental, de um Sistema Integrado de Emergência Médica (SIEM), de forma a garantir aos sinistrados ou vítimas de doença súbita a pronta e correta prestação de cuidados de saúde. A prestação de cuidados de emergência médica no local da ocorrência, o transporte assistido das vítimas para o hospital adequado e a articulação entre os vários intervenientes do SIEM, são as principais tarefas do INEM.

De acordo com o DECIR 2022, “o INEM coordena todas as atividades de saúde em ambiente pré-hospitalar, a triagem e evacuações primárias e secundárias, a referenciação e transporte para as unidades de saúde adequadas, bem como a montagem de Postos Médicos Avançados (PMA). Cabe-lhe também a triagem e o apoio psicológico a prestar às vítimas no local da ocorrência, com vista à sua estabilização emocional e posterior referenciação para as entidades adequadas, de acordo com esta DON, os planos de emergência de proteção civil dos respetivos escalões territoriais e as suas próprias disponibilidades”.

Neste caso, a intervenção da entidade em causa não é despicienda, mas trata-se essencialmente de assistência médica, não de gestão ou “controlo dos incêndios”.

ONGA: Além de não serem entidades públicas nem terem qualquer referência no DECIR 2022, as Organizações Não-Governamentais de Ambiente também não têm qualquer relação direta (de dependência) com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e vice-versa.

PJ: A Polícia Judiciária (PJ) tem por missão coadjuvar as autoridades judiciárias na investigação criminal que lhe esteja especificamente cometida pela Lei de Organização da Investigação Criminal ou que lhe seja delegada pelas autoridades judiciárias competentes. Surge referida no DECIR 2022 na categoria de “cooperação de outras entidades”, a par das câmaras municipais e juntas de freguesias, por exemplo. Sob esta lógica teria que se incluir no organograma todas as 308 câmaras municipais e 3.092 juntas de freguesias existentes em Portugal.

No referido documento informa-se que “a colaboração da PJ ocorrerá quando a gravidade da situação assim o exija, mas sempre enquadrada pela legislação específica. A PJ, no âmbito da coordenação das suas ações e meios, disponibiliza informação permanente de apoio à decisão ao CNEPC, através do seu Oficial de Ligação nomeado em regime de permanência naquela estrutura”.

RNAP: A Rede Nacional de Áreas Protegidas (RNAP) não é uma entidade e não se entende o sentido da sua inclusão no organograma das entidades que “controlam os incêndios em Portugal”. Neste caso, mais do que uma extrapolação, trata-se de uma efabulação.

SEPNA: O Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) faz parte integrante da Guarda Nacional Republicana (GNR), pelo que a sua inclusão no organograma serve apenas para duplicar a intervenção de uma mesma entidade.

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