“A OMS divulgou um boletim de orientação (14 de dezembro) a avisar que os limites de ciclo elevados nos testes de PCR podem resultar em falsos positivos. Ou seja, 10 meses depois, só agora admitiram”, alega-se na publicação em causa, denunciada como sendo fake news por vários utilizadores do Facebook.

“Perguntamos: se essa informação já estava disponível há meses, porque só agora a admitem e divulgam? A resposta pode ser esta: porque agora já há vacina, não importam mais os falsos positivos”, conclui-se.
Verificação de factos.
O documento em questão, publicado no dia 14 de dezembro na página da OMS, indica ter como objetivo “garantir que os utilizadores de determinadas tecnologias baseadas em ácidos nucleicos estejam cientes de alguns aspetos de instruções de uso”. Na descrição do problema, a OMS refere ter recebido por parte de vários utilizadores “informação sobre o elevado risco de resultados falsos para o SARS-CoV-2, ao testar amostras utilizando reagentes RT-PCR”.
Para compreender o aviso da OMS na sua totalidade importa distinguir o que se entende por sensibilidade e especificidade de um teste de rastreio. A sensibilidade diz respeito à proporção de indivíduos com teste positivo na população, ao passo que a especificidade tem em conta a proporção de indivíduos com teste negativo. Quanto maior a sensibilidade, menor o risco de falsos-negativos. Quanto maior a especificidade, menor o risco de falsos-positivos.
Se a prevalência da doença na população baixar (valor preditivo positivo), aumenta o risco de surgirem falsos-positivos – e é em relação a este fenómeno que se foca o aviso da OMS. Ou seja, um teste de rastreio utilizado numa população com poucos casos de infeção será menos confiável, uma vez que nessas circunstâncias se espera que a uma proporção considerável dos casos positivos sejam falsos-positivos.
Se a prevalência da doença na população baixar (valor preditivo positivo), aumenta o risco de surgirem falsos-positivos – e é em relação a este fenómeno que se foca o aviso da OMS. Ou seja, um teste de rastreio utilizado numa população com poucos casos de infeção será menos confiável, uma vez que nessas circunstâncias se espera que a uma proporção considerável dos casos positivos sejam falsos-positivos.
Em declarações ao Polígrafo, Vasco Barreto, biólogo doutorado em imunologia do Centro de Estudos de Doenças Crónicas (CEDOC) da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, destaca que “este aviso seria um pouco extemporâneo se a Covid-19 fosse uma infeção normal, pois a prevalência da Covid-19 ainda se mantém alta em muitas regiões do globo”.
“Mas como é uma doença que polarizou a sociedade, creio que a OMS se está a defender de um provável aumento da proporção de falsos positivos quando a prevalência começar a baixar, antecipando o que se vai passar no Hemisfério Norte com o arranque das vacinações e depois a chegada da Primavera“, sublinha Barreto.
Por sua vez, Miguel Castanho, investigador do Instituto de Medicina Molecular (IMM) da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, aponta no mesmo sentido: “Em situações em que este valor é muito baixo, eventualmente porque existe baixa densidade de vírus em circulação, a deteção do vírus torna-se mais exigente do ponto de vista técnico“.
Consequentemente, explica, “os procedimentos têm de ser mais escrupulosos e o procedimento instrumental tem de ser muito rigorosamente afinado. Se assim não for, no limite da capacidade de deteção, algumas pessoas não infetadas podem ser dadas como positivas. Esta regra é válida para muitas outras circunstâncias além da deteção de SARS-CoV-2, é uma regra geral“.
“Os procedimentos têm de ser mais escrupulosos e o procedimento instrumental tem de ser muito rigorosamente afinado. Se assim não for, no limite da capacidade de deteção, algumas pessoas não infetadas podem ser dadas como positivas. Esta regra é válida para muitas outras circunstâncias além da deteção de SARS-CoV-2, é uma regra geral”, sublinha o investigador Miguel Castanho.
Para quem é que foi dirigido e qual o objetivo da nova orientação da OMS? O cientista esclarece que a circular se destina aos “responsáveis técnicos” dos testes de PCR para que, em condições de baixa prevalência de doença, se utilizem “condições técnicas muito rigorosas”. Além disso salienta a importância de se fazer um enquadramento com “outras circunstâncias que possam reforçar a conclusão do teste” – quadro sintomático, por exemplo. Miguel Castanho acrescenta que o documento “é uma chamada de atenção” e “não propriamente uma novidade”.
A segunda parte do aviso da OMS diz respeito “às particularidades do teste de RT-PCR para o SARS-CoV-2”, nomeadamente “à possibilidade de para resultados positivos obtidos com muitos ciclos o indivíduo poder já não funcionar como um foco de infeção, porque apenas tem ‘vestígios’ do vírus e não vírus ativos”, aponta Vasco Barreto.
“Estes casos podem suceder quando a carga viral está em queda (como há pouco material viral, foi preciso amplificá-lo muitas vezes, o que se traduz no aumento dos famosos ciclos de amplificação). Muitos dizem que foi o que terá sucedido ao Cristiano Ronaldo, quando os testes ainda deram positivo durante muitos dias depois de ele já estar aparentemente recuperado. E é verdade que testes em laboratório dizem que quando muitos ciclos são necessários, geralmente a amostra já não é contagiosa. A OMS pode estar a integrar no aviso este conhecimento relativamente recente”, sublinha.
De facto, a comunidade científica chegou recentemente à conclusão de que a partir do décimo dia de doença, a carga viral de um doente assintomático é insuficiente para que este infete outras pessoas. Mesmo que ainda existam partículas do vírus no seu organismo, ou seja, mesmo que teste positivo nessa altura, a transmissão terá poucas probabilidades de acontecer. Até então, quer um doente fosse assintomático ou tivesse sintomas agudos, o fim do período de isolamento e consequente alta médica eram ditados por um teste negativo.
O biólogo alerta, porém, que “um resultado positivo obtido com muitos ciclos pode também surgir quando a amostra apanhou a fase inicial da infeção (a carga viral é baixa mas está a aumentar)”, pelo que “não dá a certeza absoluta de que o indivíduo já não pode contagiar”.
O biólogo alerta, porém, que “um resultado positivo obtido com muitos ciclos pode também surgir quando a amostra apanhou a fase inicial da infeção (a carga viral é baixa mas está a aumentar)”, pelo que “não dá a certeza absoluta de que o indivíduo já não pode contagiar“.
João Júlio Cerqueira, médico especialista de Medicina Geral e Familiar e criador da página Scimed, indica que “a especificidade do teste RT-PCR é muito próxima de 100%, como foi observado no estudo realizado na China em que foram testadas 10 milhões de pessoas e apenas surgiram 300 casos, sendo que a maioria tinha anticorpos para a doença demonstrando que estiveram, de facto, infetadas”. Ou seja, “mesmo num cenário como este, de extrema baixa prevalência de infeção, dada a alta especificidade do teste, foram detetados poucos falsos-positivos”.
“Portanto, apesar do alerta, o teste é bastante fiável no que se propõe a testar: a existência de material genético do SARS-CoV-2 na amostra”, conclui.
“Portanto, apesar do alerta, o teste é bastante fiável no que se propõe a testar: a existência de material genético do SARS-CoV-2 na amostra”, conclui.
Em suma, a situação descrita na circular da OMS centra-se em dois pontos: o facto de uma amostra positiva poder não ser contagiosa se for detetada após vários ciclos de amplificação; e a importância de se ter em conta se estamos em circunstâncias de baixa prevalência da doença (o que se pode traduzir num aumento de falsos positivos). Contudo, importa ressalvar que a prevalência da doença em Portugal ainda é alta, pelo que as teorias de que estamos perante uma pandemia de falsos positivos não fazem sentido.
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Nota editorial 1: Este artigo foi atualizado às 12h27m do dia 29 de dezembro com declarações do médico João Júlio Cerqueira sobre a especificidade dos testes PCR. Introduzimos também o conceito de “valor preditivo positivo” que é referido no boletim de orientação da Organização Mundial da Saúde. Esta atualização não altera a avaliação inicial.
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Nota editorial 2: este conteúdo foi selecionado pelo Polígrafo no âmbito de uma parceria de fact-checking (verificação de factos) com o Facebook, destinada a avaliar a veracidade das informações que circulam nessa rede social.
Na escala de avaliação do Facebook, este conteúdo é:
Verdadeiro: as principais alegações do conteúdo são factualmente precisas; geralmente, esta opção corresponde às classificações “Verdadeiro” ou “Maioritariamente Verdadeiro” nos sites de verificadores de factos.
Na escala de avaliação do Polígrafo, este conteúdo é: