A questão tem sido levantada pela comunidade científica desde o início da pandemia: terá o novo coronavírus impacto em outros órgãos do corpo, para além dos pulmões? “Isto não é só uma doença dos pulmões. Embora a tosse e a febre sejam sintomas mais vulgares, assim como a dificuldade em respirar, outros tipos de sintomas vão aparecendo cada vez com mais frequência”, diz ao Polígrafo Celso Cunha, virologista e professor no Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa.
Várias equipas de investigação têm-se focado precisamente nestes sintomas, na busca por evidências sobre os danos que o SARS-CoV-2 pode causar noutros órgãos. Um artigo publicado recentemente na revista Nature Medicine apresenta uma revisão completa dos estudos realizados sobre os efeitos extrapulmonares da Covid-19 e avança que o novo coronavírus pode afetar os principais sistemas do organismo – da pele ao coração, passando pelos rins, cérebro, estômago e intestinos.
Seja de forma direta – com o vírus a atacar e matar as células –, ou de forma indireta – que resulta de uma resposta exacerbada do sistema imunitário que acaba por causar danos ao tecido celular – a Covid-19 tem impacto nos principais sistemas do organismo. A plataforma de fact checking brasileira Agência Lupa reuniu as possíveis consequências da presença do SARS-CoV-2 nos diferentes sistemas.
Uma das principais razões que justifica a difusão do vírus é a presença do recetor ACE2, ao qual o vírus se conecta, em diferentes órgãos. “Nós sabemos há bastante tempo que o recetor ACE2 existe na superfície das células de muitos órgãos, nomeadamente no coração, nos pulmões e também nas células do trato gastrointestinal, desde o estômago aos intestinos, também nos rins e nos testículos”, explica o virologista.
“Isto não é só uma doença dos pulmões. Embora a tosse e a febre sejam sintomas mais vulgares, assim como a dificuldade em respirar, outros tipos de sintomas vão aparecendo cada vez com mais frequência”, diz ao Polígrafo Celso Cunha, virologista e professor no Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa.
O vírus pode ainda não ter sido encontrado nestes órgãos, mas, em alguns casos, já foi “detetado material genético do vírus”, o que coloca a hipótese de este ter lá estado e leva os investigadores a questionar como lá terá ido parar. O percurso mais comum do SARS-CoV-2 começa no trato respiratório superior, utilizando a mucosa oral e a mucosa nasofaringe como condutor até aos pulmões. No entanto, há várias teorias especulativas sobre a existência de trajetos alternativos: “Pode entrar na corrente sanguínea quando está na cavidade nasal, no bolbo olfativo há células que comunicam de perto com alguns neurónios sensoriais e o vírus pode infetar essas células e o sistema nervoso central”, exemplifica o virologista.
O coração e os rins
Ao nível do sistema cardiovascular, a formação de coágulos é uma das principais complicações da Covid-19. Segundo uma revisão publicada este mês, e citada pela Agência Lupa, complicações como embolias pulmonares, acidentes vasculares cerebrais ou a necessidade de amputação de membros, ocorrem em entre 20 a 60% dos pacientes internados em estado grave.
A resposta exagerada do sistema imunológico – referida como tempestade de citocinas – pode causar inflamações que geram coágulos nos vasos sanguíneos e acabam por bloquear a passagem do sangue. “Quando há uma produção muito grande de citocinas, é muito prejudicial porque vai danificar as células do organismo – quer sejam do pulmão quer sejam de outros órgãos. Elas podem ser danificadas ao ponto de morrerem”, explica Cunha. Vários estudos estão a testar o efeito de diferentes medicamentos neste cenário, como é o caso da dexametasona – e outros medicamentos da mesma família – que é utilizada para bloquear a tempestade de citosinas e evitar que o sistema imunológico ataque o próprio organismo.
As pessoas com doença cardíaca fazem parte do grupo de risco identificado pela Direção-Geral da Saúde precisamente devido ao impacto que o vírus tem no sistema cardiovascular. “Os doentes com hipertensão ou patologias do coração previamente são grupos de risco e, de facto, têm mais possibilidades de vir a ter sintomas mais graves ou um desfecho fatal”, esclarece o virologista. “A tensão arterial tem de ser bem monitorizada nestes doentes porque tem tendência a ficar desregulada, mesmo que estejam medicados.”
A questão do sistema cardiovascular prende-se também com a existência de grandes quantidades da proteína ACE2. “Neste momento não sabemos exatamente se o vírus infeta as células do coração, embora estejam lá os recetores para o vírus. Mas o que é certo é que as células do coração, em alguns casos, são afetadas”, avança Celso Cunha.
Também no caso dos rins, a mesma proteína é encontrada o que aumenta a possibilidade de o vírus se conectar com as células provocando “síndrome renal-agudo, que pode levar à falência dos rins”, podendo ser atenuado ou tratado através da “terapia de análises de substituição ou hemodialise”, identifica o professor do IHMT. Também o trabalho de revisão publicado na revista Nature Medicine [LINK1-repetido] indica que foram encontrados indícios de que o vírus tenha a capacidade de penetrar diretamente no órgão, mas alerta que são necessários mais estudos para entender o efeito.
“Neste momento não sabemos exatamente se o vírus infeta as células do coração, embora estejam lá os recetores para o vírus. Mas o que é certo é que as células do coração, em alguns casos, são afetadas”, avança Celso Cunha.
Vários estudos estão a decorrer atualmente sobre a atuação do vírus. Cunha refere uma investigação [LINK4] que utilizou protótipos de órgãos em miniatura, cultivados in vitro, para identificar se o vírus é capaz de se replicar nas diferentes células. Nesta experiência foram utilizados mini órgãos de pulmões, rins e do coração e foi observado que o vírus tem capacidade de se replicar. Apesar de ter sido realizada em laboratório – que poderá ter resultados diferentes em ensaios clínicos – “é mais uma evidência que suporta a possibilidade de [o vírus] infetar células para além do trato respiratório”.
O cérebro
A perda de olfato e paladar são sintomas de que a Covid-19 afeta o sistema neurológico. Mas há mais: “desde algumas convulsões, as vulgares dores de cabeça, há também doentes que entram em depressão profunda com tendências suicidas”. “Especula-se muito que o vírus pode estar presente no cérebro, o que seria uma coisa realmente nova porque teria de passar pela barreira hematoencefálica – um conjunto de células que impedem os micro-organismos, os vírus e as bactérias de passarem para o nosso cérebro. O que é certo é que o ARN viral foi detetado no tronco encefálico e essa parte da anatomia controla várias coisas, entre elas a respiração”, explica o virologista, reforçando que ainda existe muita especulação sobre este assunto.
Esta vertente neurológica do vírus já tinha sido identificada nos antigos surtos de SARS e MERS. Estudos focaram-se nos diferentes sintomas relacionados com o sistema neurológico e, no final de junho, a revista Annals of Neurology avançou que cerca de 30 a 40% dos doentes de Covid-19 podem desenvolver sintomas neste campo. Os distúrbios cerebrais podem afetar mesmo os pacientes com formas mais leves da doença e, como indica Cunha, em alguns casos, chegam a preceder os sintomas mais conhecidos.
Foi desenvolvido um esquema de classificação que exemplifica a possível forma como o vírus pode atacar o sistema neurológico: o “NeuroCovid”. Este artigo explica o processo completo do SARS-CoV-2, desde a entrada através da mucosa nasal até chegar ao cérebro, incluindo os danos provocados na barreira hematoencefálica.
O estômago, os intestinos e a pele
Nos últimos tempos têm aumentado o registo de sintomas como náuseas, vómitos, dor abdominal e até anorexia em doentes infetados com o novo coronavírus. Vários estudos foram desenvolvidos sobre estes sintomas e, segundo uma revisão da Nature Medicine , existe uma variação entre 12 a 61% de manifestações destes sintomas.
Os autores identificaram também que os sintomas ao nível do sistema gastrointestinal podem estar relacionados com diversos fatores, inclusive a presença da proteína ACE2 nas células glandulares do intestino. A existência de ARN viral do SARS-CoV-2 está presente nas fezes, mas não se sabe se existe a possibilidade de transmissão por esta via.
Por outro lado, os médicos têm também identificado algumas lesões ao nível da pele que podem estar relacionadas com a doença de Covid-19 – desde frieiras a pequenas bolhas, tendo sido também registadas algumas manchas, urticárias ou lesões avermelhadas.
Segundo o Journal of the European Academy of Dermatology, a incidência de problemas dermatológicos associados à Covid-19 surge em 20% dos pacientes hospitalizados. No entanto, a origem destas lesões é ainda desconhecida e se por um lado pode estar associada ao processo inflamatório do corpo – como defendem os especialistas –, por outro existe a possibilidade de estes sintomas serem uma consequência do uso de alguns medicamentos: “Há sintomas na pele associadas a alguns doentes, mas muitas vezes isso pode ser devido, não só à infeção viral, mas ao virotratamento administrado”, sublinha Cunha.
Segundo o Journal of the European Academy of Dermatology, a incidência de problemas dermatológicos associados à Covid-19 surge em 20% dos pacientes hospitalizados.
O virologista identifica ainda a existência de erupções ao nível da pele que surgem nas mucosas da cavidade oral e que estão “relacionadas com a presença de uma infeção”.
Uma reação cutânea que tem despertado curiosidade entre a comunidade científica são os chamados “dedos de Covid”, identifica ainda a Agência Lupa. Esta condição é uma erupção na pele que surge nos dedos dos pés dos doentes infetados, mesmo quando não existem outros sintomas, e tem tendência a registar-se mais entre os jovens. Sobre este fenómeno existem poucas informações, mas estão vários estudos a ocorrer para analisar o assunto.
Ainda há muito que não se sabe sobre a Covid-19, mas pouco a pouco a investigação e os estudos científicos vão desvendando as implicações que o novo coronavírus tem no organismo. No entanto, sabe-se que esta doença, apesar de ter grande predominância no sistema pulmonar, tem também impacto ao nível dos principais sistemas do organismo, podendo causar lesões no coração, estômago, intestinos e até no cérebro. Mais estudos são necessários para entender as implicações concretas da presença do vírus e o impacto que as proteínas ACE2 têm.
Avaliação do Polígrafo: