A 25 de outubro, o jornalista freelancer francês Djaffer Ait Aoudia, diretor do órgão de comunicação independente onde escreve, “Le Correspondant”, publicou uma peça de investigação sobre a atleta argelina que venceu o Ouro em Paris meses antes. “Imane Khelif: nem ovários nem útero, mas testículos” é o título do mais recente de vários textos que Ait Aoudia publicou este ano sobre a pugilista. E é também o único que permanece disponível para leitura.
Recuemos até 30 de agosto quando, no X, o jornalista francês anunciava a publicação de um artigo “explosivo” depois de ter acesso ao registo médico “do argelino Imane Khelif [sic]”. Ait Aoudia prometia que a investigação seria publicada dali a “algumas horas”, mas a peça só chegou a 8 de setembro, quando foi partilhada no X pelo autor e diretor do jornal.
“Imane Khelif: mulher até às bolas“, era o título do texto a que já não é possível aceder. A 11 de setembro, nova tentativa com um título menos polémico: “Não, Imane Khelif não é uma mulher.” Também esta peça não está disponível para leitura.
Entre 11 de setembro e 24 de outubro, Ait Aoudia não publicou nada sobre Khelif e as suas duas primeiras tentativas tiveram um alcance mínimo nas redes sociais. Mas algo mudou: a 25 do mês passado, o jornalista revelou pela terceira vez que a argelina, afinal, tem “testículos”. O seu nome ganhou dimensão quando o site “Reduxx”, fundado pela canadiana Anna Slatz que tem um currículo de ligações à extrema-direita, divulgou a sua investigação dias depois de esta ser originalmente publicada. A autora do texto, Slatz, já foi detida enquanto trabalhava como repórter para o site de extrema-direita canadiano “RebelNews”. Além disso, assim como o conteúdo do seu site, é abertamente homofóbica e transfóbica nas suas redes sociais, de onde foi banida em 2020 (e para onde voltou recentemente com um novo perfil).
Anna Slatz não é, porém, responsável pela autoria da peça original, mas apenas pela sua divulgação. Foi através do seu site que Ait Aoudia colheu reconhecimento (e milhares de partilhas). E é no artigo escrito pelo jornalista francês que encontramos várias incoerências, sobretudo quando confrontamos um dos médicos citados na peça.
Comecemos pelo texto: “O ‘Le Correspondant’ investigou o dossier médico da pugilista. Este dossier vem dos arquivos confidenciais de dois hospitais renomados: o hospital Kremlin Bicêtre, em Paris, e o hospital Mohamed Lamine Debaghine, em Argel. É nestes locais que a campeã é acompanhada pelos melhores especialistas em endocrinologia, os professores e chefes de serviço Soumaya Fedala e Jacques Young.”
O texto atribui a autoria do relatório, “apresentado em junho de 2023” aos dois médicos, “Young e Fedala”, que “apontam de forma clara a patologia de Imane Khelif: um ‘défice de alfa-5-redutase tipo 2, uma anomalia genética que causa um problema metabólico na testosterona e na desidroepiandrosterona'”. No X, Ait Aoudia vai até mais longe e diz que a revelação foi feita pelo médico de Khelif, “o professor Jacques Young, aos seus estudantes em Paris”.
O Polígrafo investigou a existência destes dois profissionais e dos respetivos cargos nos locais mencionados. Nora Soumeya Fedala (e não Soumaya, como surge no texto), é a chefe do Serviço de Endocrinologia e Doenças Metabólicas no Centro Hospital Universitário Bab El Oued (CHU-BEO). Do que é possível perceber pelas imagens do local, o CHU-BEO faz parte do hospital Mohamed Lamine Debaghine, pelo que seria válido que a assinatura fosse comum entre ambos. Isto se Jacques Young não negasse por completo ser o autor (ou divulgador, como sugere Ait Aoudia) deste ou de qualquer outro relatório sobre Imane Khelif.
As provas já existiam: Jacques Young, segundo o seu próprio Linkedin, só assumiu o cargo de Chefe de Serviço do Departamento de Endocrinologia do Hospital Bicêtre em setembro de 2023. Segundo a peça do “Le Correspondant”, o relatório, alegadamente assinado pelo “chefe de serviço” Young, é de junho (ou maio, mês que também é mencionado na peça) do mesmo ano.
Ao Polígrafo, o médico garante que estas fontes não são “confiáveis” e que “nunca” escreveu ou publicou “nada sobre esta pessoa [Imane Khelif]”. O Polígrafo tentou ainda contactar Soumeya Fedala, a outra alegada autora do relatório, mas até à publicação deste artigo não obteve resposta.
Sobre o relatório: não é possível, para já, afirmar que o documento é falso. Apesar de conter várias informações incorretas, nomeadamente sobre a sua autoria, o texto é consistente e semelhante a um relatório médico. No entanto, nem isso prova que Imane Khelif é um homem. Em causa, se tomarmos por correta a avaliação médica, está um défice de 5 alfa-redutase tipo 2, que resulta numa ambiguidade genital e pode, efetivamente, significar o aparecimento tardio de orgãos sexuais masculinos. Apesar disso, o relatório é claro: “Com efeito, nestes casos diagnosticados tardiamente, face à história clínica, aos dados biológicos hormonais, aos dados radiológicos e à perícia psicológica e neuropsiquiátrica, o sexo feminino é sempre favorecido. Este é também o caso de Imane, que se identifica totalmente como uma mulher.”
Por fim, entrámos em contacto com Djaffer Ait Aoudia, que não remeteu qualquer tipo de resposta às questões sobre o relatório que divulgou a 25 de outubro.