Carlos Moedas deu a ordem e só depois avisou a população: a Polícia Municipal já está autorizada a deter cidadãos em Lisboa. As circunstâncias da detenção só ficaram claras ao longo dos dias, à medida que o autarca prestou mais declarações sobre o tema: afinal, Moedas só quer os Polícias Municipais a fazer detenção de pessoas em flagrante delito. Mas há várias questões que se levantam perante este assunto.
1.Afinal, um Polícia Municipal não pode já deter um cidadão em flagrante delito? A resposta é sim
A Polícia Municipal nunca precisou de uma ordem do autarca para proceder a uma detenção. Ao Polígrafo, o advogado Paulo Saragoça da Matta explica que é “irrelevante” o presidente da CML dizer que deu ordem à Polícia Municipal para fazer detenções em flagrante delito porque tal já está previsto no artigo 255.º do Código do Processo Penal (CPP). Segundo a lei, nestes casos, “qualquer autoridade judiciária ou entidade policial”, bem como “qualquer pessoa”, pode proceder à detenção do suspeito. Ou seja, é verdade que Moedas não precisa de ordenar que a Polícia Municipal faça algo que qualquer cidadão já pode fazer.
2. Mas… e fora do flagrante delito? A resposta é não. Mas nem Moedas quer isso
Raquel Carvalho, professora na Universidade Católica Portuguesa e doutorada em Direito, indica ao Polígrafo que, “de acordo com o regime das Polícias Municipais“, estas “são serviços municipais especialmente vocacionados para o exercício de funções de polícia administrativa, com as competências, poderes de autoridade e inserção hierárquica definidos na presente lei”. Ou seja, estes serviços estão na dependência hierárquica do presidente da CML, pelo que este pode dar ordens à Polícia Municipal, como definir as orientações estratégicas e de fiscalização desde que estejam dentro das competências municipais.
Mas esta questão em particular prende-se “com as competências das Polícias Municipais”. Não existindo a competência das Polícias Municipais para deter fora do flagrante delito, “não pode existir ordem para cumprir uma competência que não está na lei“.
Segundo o artigo 257.º do CPP, esta “detenção só pode ser efectuada por mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público” ou por “autoridades de Polícia Criminal” que “podem também ordenar a detenção fora de flagrante delito” em casos específicos.
Portanto, quando a lei se refere a Polícia Criminal, está em causa a “PSP, GNR ou até a Brigada Fiscal – que era a antiga Guarda Fiscal – a Polícia Marítima, a Polícia da Força Aérea ou a Polícia Naval”. Para Saragoça da Matta, “não há discussão nenhuma” neste tópico porque a “Polícia criminal não abrange as Polícias municipais”. Além disso, alerta: “As Polícias Municipais não têm grau de formação suficiente para saber, em processo penal, aplicá-lo à prática como os órgãos de polícia criminal”.
No entanto, Carlos Moedas garantiu em entrevista à Renascença e jornal “Público”, bem como ao Polígrafo, que não quer que isto aconteça e que a sua ordem se aplica apenas a situações de flagrante delito.
3. Mas se a lei é favorável à detenção… o que pretende Moedas?
“Aquilo que eu pedi foi uma pequena mudança num decreto-lei para que a Polícia Municipal possa fazer a detenção”, reclamou Carlos Moedas, em declarações aos jornalistas. Isto, explicou, porque a “Polícia Municipal detém e depois tem de telefonar à Polícia de Segurança Pública“, sendo que “muitas vezes, a Polícia de Segurança Pública não está disponível e não pode vir no imediato”.
4. É verdade que um Polícia Municipal tem que esperar por um agente da PSP?
Segundo Saragoça da Matta, não. De acordo com o artigo 255.º do CPP, “a pessoa que tiver procedido à detenção entrega imediatamente o detido a uma das entidades referidas na alínea a) [autoridade judiciária ou a entidade policial], a qual redige auto sumário da entrega e procede de acordo com o estabelecido no artigo 259.º”. Depois desta entrega, como indica o artigo 259.º, a entidade policial comunica a detenção “de imediato” ou ao “juiz do qual dimanar o mandado de detenção” ou “ao Ministério Público, nos casos restantes”, dependendo do caso.
O advogado interpreta assim esta lei: a Polícia Municipal ou o cidadão que procedeu à detenção “tem de entregar o detido“, não tem de ficar à espera da PSP como leva a crer Moedas. “Isto foi o argumento que Carlos Moedas utilizou, mas é falso. Se qualquer cidadão ou um Polícia Municipal detiver uma pessoa no meio da rua, não telefona à PSP para a vir buscar. Entrega-a à esquadra mais próxima. Ou a um PSP que vá passar na rua. Portanto, isso é uma falsa questão. Na detenção em flagrante delito, qualquer um tem a obrigação de entregar às autoridades”, conclui o especialista.
Poderia então retê-lo na esquadra da Polícia Municipal? O advogado explica que a “Polícia Municipal nem sequer tem condições” para o fazer, uma vez que “não tem instalações físicas” e tudo isso “teria de ser construído”.
E ressalta o problema lógico dessa questão: “Há muito poucas esquadras da Polícia Municipal. Imagine-se que a Polícia Municipal detém o indivíduo na Expo, no Parque das Nações, e trá-lo até à Praça de Espanha. Por quantas esquadras da PSP passou o carro da Polícia Municipal? Qual é a lógica?”
Em suma, é pouco claro o que Carlos Moedas quer acrescentar à lei: o que é certo é que o papel da Polícia Municipal já está previsto na legislação portuguesa e é interpretado de formas diferentes por várias entidades. Por exemplo, o Polígrafo consultou um Parecer Consultivo da PGR e ainda um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
No primeiro caso, o parecer dita que “os agentes das Polícias Municipais somente podem deter suspeitos no caso de crime público ou semi-público punível com pena de prisão, em flagrante delito, cabendo-lhes proceder à elaboração do respetivo auto de notícia e detenção e à entrega do detido, de imediato, à autoridade judiciária, ou ao orgão de Polícia Criminal”.
Já no acórdão, é anulada uma prova obtida pela Polícia Municipal que “se substitui à entidade policial competente (efetuando o teste quantitativo de álcool nas suas instalações)”. A arguida foi, assim, absolvida e o teste quantitativo realizado pela Polícia Municipal constituiu uma prova proibida em processo penal.
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Avaliação do Polígrafo: