“Esta notícia é de 2017 mas os nomes presentes no seu texto são bem atuais. A obreira desta burla foi… Marta Temido, atual ministra da Saúde”, denuncia o título de uma publicação na página “Direita Política”, datada de 15 de fevereiro de 2019. Acumulam-se as partilhas e os comentários de indignação nas redes sociais. Mas será que a atual ministra da Saúde está ligada a uma “burla”? No final da publicação destaca-se também um meme com a imagem de Temido e a seguinte mensagem: “Esta ministra não tem condições de se manter no cargo, tem de se demitir ou ser demitida”.
Em causa está uma notícia do jornal “Público”, datada de 17 de outubro de 2017. Título: “Tutela ‘falseou’ tempos de espera nos hospitais, diz o Tribunal de Contas”. De acordo com o artigo, “acesso a consultas e cirurgias no Serviço Nacional de Saúde piorou nos últimos três anos. Entre 2014 e 2016, mais 27 mil doentes ficaram em lista de espera por uma cirurgia e mais de 2600 morreram antes de serem operados”.
“Se os números da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) dizem que se esperou menos pela primeira consulta de especialidade nos hospitais públicos entre 2013 e 2016, isso, afinal, não significa que o acesso tenha melhorado. Quer antes dizer que a ACSS falseou os indicadores, através de ‘procedimentos administrativos de validação e limpeza das listas de espera’, diz o Tribunal de Contas (TdC). As conclusões de uma auditoria do TdC ao acesso a cuidados de saúde no Serviço Nacional de Saúde (SNS), que esta terça-feira foi divulgada, notam que a ACSS deu instruções aos hospitais para recusarem ‘pedidos de consulta com tempos de espera muito elevados’ e fazerem uma ‘nova inscrição a nível hospitalar’. Desta forma, os resultados sobre o tempo de espera que os hospitais apresentavam eram ‘falsos’”, salienta o mesmo artigo.
“Diz ainda o TdC que, no ano passado, apenas 34% das primeiras consultas de especialidade hospitalar feitas no SNS entraram para as contagens do sistema de Consulta a Tempo e Horas (CTH). Ou seja, foram contabilizadas pouco mais de um milhão de consultas em vez das quase 3,5 milhões de consultas realizadas”, acrescenta.
O artigo do jornal “Público” é factual e pode ser conferido na fonte, isto é, na Auditoria ao Acesso a Cuidados de Saúde no Serviço Nacional de Saúde (Relatório Nº15/2017) do Tribunal de Contas. Segundo esse relatório, “o Tribunal de Contas concluiu que no triénio 2014-2016 ocorreu no Serviço Nacional de Saúde uma degradação do acesso dos utentes a consultas de especialidade hospitalar e à cirurgia programada. Esta degradação traduziu-se no: aumento (i) do tempo médio de espera para a realização de uma primeira consulta de especialidade hospitalar, de 115 para 121 dias, e (ii) do incumprimento dos tempos máximos de resposta garantidos de 25%, em 2014, para 29% em 2016; aumento (i) do número de utentes em lista de espera cirúrgica, em 27 mil utentes (+15%), (ii) do tempo médio de espera até à cirurgia, em 11 dias (+13%), e do (iii) incumprimento dos tempos máximos de resposta garantidos, de 7,4%, em 2014, para 10,9%, em 2016”.
Concluir que Temido foi “a obreira desta burla” não é rigoroso, de todo, extrapolando a responsabilidade da visada (tem responsabilidade em apenas um dos três anos analisados pelo Tribunal de Contas)
Mais, “as iniciativas centralizadas, desenvolvidas pela Administração Central do Sistema de Saúde, em 2016, de validação e limpeza das listas de espera para primeiras consultas de especialidade hospitalar do universo das unidades hospitalares do SNS, incluíram a eliminação administrativa de pedidos com elevada antiguidade, falseando os indicadores de desempenho reportados. Na área cirúrgica, a não emissão atempada e regular de vales cirurgia e notas de transferência aos utentes em lista de espera, aumentou os tempos de espera suportados pelos utentes. A qualidade da informação disponibilizada publicamente, pela ACSS, sobre as listas de espera não é fiável, devido a falhas recorrentes na integração da informação das unidades hospitalares nos sistemas centralizados de gestão do acesso a consultas hospitalares e cirurgias, bem como devido às iniciativas centralizadas acima referidas”.
E qual é a relação de Marta Temido, atual ministra da Saúde, com este relatório do Tribunal de Contas? Entre 2016 e 2017, Temido exerceu o cargo de presidente do Conselho Diretivo da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), instituto público visado na auditoria como tendo “falseado os indicadores de desempenho reportados” quanto às listas de espera para consultas e cirurgias nos hospitais.
A extrapolação é tão grosseira e acusação de burla tão injustificada que a publicação em causa acaba por entrar no território da desinformação e da falsidade, embora se baseie num artigo de jornal e numa auditoria do Tribunal de Contas que são factuais e verdadeiros.
O nome de Temido não é referido nem no artigo do jornal “Público” nem na auditoria do Tribunal de Contas, ao contrário do que indica a publicação em análise da página “Direita Política”. Não obstante, tendo presidido à ACSS, Temido tem responsabilidade nas práticas sinalizadas pela auditoria. Importa porém ter em atenção que a auditoria se focou no triénio 2014-2016. Ou seja, abrange somente um ano (2016) em que Temido exercia funções na ACSS.
Daí que concluir que Temido foi “a obreira desta burla” não é rigoroso, de todo, extrapolando a responsabilidade da visada (tem responsabilidade em apenas um dos três anos analisados pelo Tribunal de Contas) e também a gravidade do procedimento: a auditoria não classifica o falseamento dos indicadores de desempenho reportados como uma “burla”. Aliás, a burla constitui um crime tipificado no Código Penal, Capítulo III (Dos crimes contra o património em geral), Artigo 217º, a saber: “1 – Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa; 2 – A tentativa é punível; 3 – O procedimento criminal depende de queixa”.
A extrapolação é tão grosseira e acusação de burla tão injustificada que a publicação em causa acaba por entrar no território da desinformação e da falsidade, embora se baseie num artigo de jornal e numa auditoria do Tribunal de Contas que são factuais e verdadeiros. Mas ressalve-se que a falsidade desta publicação, no global, não anula a responsabilidade de Temido (referente ao ano de 2016, como presidente da ACSS) quanto às práticas identificadas pelo Tribunal de Contas.
Avaliação do Polígrafo: