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Marisa Matias diz que o BE é o único partido que “no seu documento fundador” tem “referência clara ao imperialismo de Putin”. Confirma-se?

O que está em causa?
"Não conheço nenhum outro partido em Portugal que no seu documento fundador tenha feito referência clara ao imperialismo de Putin e à demarcação que era necessário fazer e à crítica desse regime autoritário", garantiu a eurodeputada do Bloco de Esquerda, em entrevista ao jornal "Observador". O Polígrafo verifica.

No âmbito de uma entrevista ao jornal “Observador”, questionada sobre uma série de críticas de Mário Tomé, fundador do Bloco de Esquerda (representante histórico da corrente oriunda da antiga UDP), dirigidas à atual corrente maioritária no partido (em torno da liderança de Catarina Martins e na base de apoio à sucessão por Mariana Mortágua), mais especificamente quanto a uma suposta posição “oportunista” do Bloco de Esquerda face à Guerra na Ucrânia e pouco solidária com a posição da Rússia, a eurodeputada bloquista Marisa Matias respondeu da seguinte forma:

“Não conheço nenhum outro partido em Portugal que no seu documento fundador tenha feito referência clara ao imperialismo de Putin e à demarcação que era necessário fazer e à crítica desse regime autoritário. Dizer que é um desvio quando vem dos documentos fundadores provoca-me alguma confusão, sobretudo de alguém como Mário Tomé que conhece tão bem a história do partido.”

Esta alegação de Matias tem fundamento?

Ao examinar o “Manifesto Fundador do Bloco de Esquerda”, sob o mote “Começar de Novo” (disponível aqui), identificamos apenas uma referência direta à Rússia – sem nomear Vladimir Putin que, aliás, em março de 1999, quando o Bloco de Esquerda foi fundado em Portugal, ainda nem sequer tinha sido eleito Presidente da Federação Russa.

Num texto de contextualização e crítica a um processo de “globalização contra a cidadania”, os fundadores do Bloco de Esquerda sublinham que “a herança democrática da separação de poderes tende a ser substituída pela escolha única – a de saber quem é a figura que dirige o Governo. Os partidos de massa transformam-se em federações de interesses que ocultam a ideologia por detrás de programas e declarações minimais de circunstância. A militância, que incorporava em si a ideia de participação e cidadania activa, dá lugar a um processo de integral profissionalização das actividades políticas e sociais. Mas os sinais não se ficam por aqui: a fusão de interesses entre capitalistas, proprietários de medias e esfera pública começa a traduzir-se em candidaturas directas de grandes fortunas à liderança de nações e este é um passo de imprevisíveis consequências. Como imprevisível é o tipo de Estado que está a nascer na Rússia e noutros países do antigo bloco de Leste, onde a esfera pública surge como simples fachada legal da acumulação primitiva de economias mafiosas que traficam votos e influências”.

“O mundo assistiu ainda ao fim da Guerra Fria, mas daí não nasceu uma nova ordem onde as nações passassem a ter mais voz ou onde os Direitos Humanos tivessem adquirido novo valor”, prossegue-se no mesmo texto.

“Ao contrário do que prometia a propaganda dos anos 80, a globalização alimenta-se de regimes ditatoriais desde que estes apliquem as receitas do FMI e do Banco Mundial; convive com regimes como o da China, desde que a burocracia de Estado aceite implantar territórios de capitalismo selvagem no seu interior; financia poderes mafiosos nos Estados que resultaram da desagregação da URSS, uma estratégia de loucura em países com poder nuclear; e estimula o renascimento de velhos conflitos nunca sarados pelo antigo mundo bipolar, do mesmo modo que alimenta o fundamentalismo islâmico através de políticas de agressão e provocação permanente”.

"Portugal ainda tem muito a aprender com a China. Nunca a China iria permitir que um partido radical como o Chega tivesse direito a participar numas eleições presidenciais. (…) Por isso é que é a China está cada vez mais rica e poderosa, porque honra o compromisso de ser um país democrata", terá escrito a eurodeputada do Bloco de Esquerda, num suposto "tweet" cuja imagem está a ser difundida nas redes sociais. Verdadeiro ou falso?

Mais à frente surge uma crítica explícita à “hegemonia militar” e “direito de ingerência” dos EUA, no que pode ser entendido – aí sim – como uma crítica ao “imperialismo” norte-americano, ainda que esse termo não seja utilizado pelos bloquistas.

No que concerne à Rússia, o facto é que não encontramos qualquer “referência clara ao imperialismo de Putin”, desde logo porque o então diretor do Serviço Federal de Segurança ainda não tinha sucedido a Boris Ieltsin na Presidência da Federação Russa.

Quanto à evocada “demarcação que era necessário fazer e à crítica desse regime autoritário”, esse ponto tem maior fundamento, na medida em que no “Manifesto Fundador do Bloco de Esquerda” identificamos referências à “fachada legal da acumulação primitiva de economias mafiosas que traficam votos e influências” ou aos “poderes mafiosos que resultaram da desagregação da URSS”.

Em suma, Matias extrapola claramente o conteúdo do “Manifesto Fundador do Bloco de Esquerda” em relação à Rússia.

De resto, não encontramos referências ao “imperialismo de Putin” nos documentos fundadores dos demais partidos portugueses, desde logo porque – na maior parte dos casos – são partidos mais antigos, fundados ainda na época da URSS, em plena Guerra Fria.

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Avaliação do Polígrafo:

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