Durante um discurso numa cerimónia de inauguração de uma oficina de reparação de automóveis em Casal de Cambra, em Lisboa, um alegado “líder extremista da comunidade bangladesa em Portugal” terá anunciado o seguinte, segundo o texto de uma publicação que está a ser veiculada através de diferentes plataformas: “Somos agora 60 mil blangladeses em Portugal. Somos fortes! Roma não se fez em 3 dias! Vamos investir em todos os setores da economia, estamos por todo o país.”
De acordo com a autora desta publicação, as palavras proferidas em março de 2023 por Rana Taslim Uddin, líder da Comunidade do Bangladesh em Lisboa – que pode ser identificado no vídeo –, indicam que os indivíduos que a ela pertencem estão, “aos poucos”, a “conseguir infiltrar-se em Portugal” e, além do mais, que “vão querer implementar a sua religião aqui no nosso país”. Pelo que deixa, para concluir, um apelo para que “a verdadeira direita” ascenda ao poder.
Mas será que esta é uma interpretação correta do discurso de Rana Taslim Uddin?
A legenda – parcialmente legível – que acompanha o vídeo que viralizou nas redes sociais permitiu constatar que o mesmo foi partilhado, pela primeira vez, pelo próprio líder da Comunidade do Bangladesh em Lisboa, a 2 de abril de 2023, no YouTube.
Segundo informa o título que acompanha as imagens, trata-se, de facto, de um discurso proferido pelo próprio em bengali, língua oficial do Bangladesh, durante a cerimónia de inauguração de uma oficina automóvel em Casal Cambra, Lisboa, a 29 de março desse ano. Nesse dia, ocorreu ainda um “Iftar Mahfil” – ou, por outras palavras, celebração de natureza islâmica durante a qual os membros da comunidade se juntam para a quebra do jejum típico durante o Ramadão.
A descrição (em inglês) que acompanha este vídeo publicado no YouTube fornece mais alguns detalhes sobre o teor das afirmações de Rana Taslim Uddin: “Portugal é agora um paraíso para os bengalis. Estou muito surpreendido com o facto de tantas pessoas terem vindo para Portugal num curto espaço de tempo. Não só vieram como o nosso povo está a investir muito bem em todos os setores em Portugal.”
Em declarações ao Polígrafo, Rana Taslim Uddin confirmou ser o protagonista do vídeo viral, mas assegurou que a tradução do vídeo não está totalmente correta, tendo classificado que as incorreções presentes derivam de uma atitude “xenofóbica” contra a comunidade islâmica em Portugal.
“No meu discurso, expliquei que, a certa altura, nós éramos muito poucos [em Portugal], que não havia muita gente [da comunidade] cá. Mas lembrei que, agora, já temos muita gente no país e que há cada vez mais pessoas a investir aqui em Portugal, com hotéis, carne halal [autorizada para o consumo entre a comunidade muçulmana], lojas de souvenirs e outras coisas”, começou por explicar Rana Taslim Uddin. O líder da Comunidade do Bangladesh em Lisboa deu ainda conta de uma “novidade” que foi introduzida no dia da gravação daquele vídeo, que passava pela abertura de “uma oficina de reparações de carros” na cidade de Lisboa.
“Tudo isto significa que a economia se vai desenvolver e, também, que a nossa comunidade vai aumentar. Nós temos agora 50 mil ou 60 mil pessoas cá e que podem contribuir para o Estado português, para a economia portuguesa. E que, também, podem fazer branding no Bangladesh”, ou seja, convencer outros cidadãos desse país a fazer o mesmo, clarificou ainda ao Polígrafo, sobre a natureza da sua intervenção naquela cerimónia de inauguração.
Durante o seu discurso, que viralizou nas redes sociais, disse ainda o seguinte, com vista a elucidar o modo como esta comunidade se tem vindo a inserir noutras regiões do mundo, segundo apontou em declarações ao Polígrafo: “As nossas pessoas, há 200 anos, já estavam em Inglaterra. Disse ainda que estão lá milhões de pessoas e que é uma história longa. Com Itália também é uma história longa, temos 200 mil pessoas em Itália. Em Portugal, só estamos há três décadas.”
Sobre a afirmação “Roma não se fez em um dia”, que confirmou ter proferido, referiu ter feito tal menção “para lembrar que Roma demorou mil anos a ser construída”. E acrescentou: “Então, a comunidade do Bangladesh também levou três décadas para fazer todas estas coisas [estabelecer os seus negócios e ofícios]. Nós temos agora muitos médicos, engenheiros, advogados, todo o tipo de pessoas a chegar cá. Portanto, nós queremos sucesso para a comunidade, queremos trabalhar para a comunidade portuguesa, para desenvolver a economia.”
Nesta cerimónia em Casal de Cambra, o líder desta comunidade afirmou ainda ao Polígrafo ter dito o seguinte: “Nós vimos aqui para trabalhar, contribuir para Portugal. Nós não pedimos esmola. Nós ajudamos a economia portuguesa. Então, vocês têm de estar mais atentos para ajudar a contribuir para Portugal. Porque Portugal é parte de vocês agora.”
Questionado sobre se esta sua intervenção pode ter qualquer tipo de interpretação religiosa, com vista a garantir que esta comunidade conseguirá “implementar a sua religião aqui no nosso país”, Rana Taslim Uddin negou as acusações. “Não precisamos de implementar nada. Os muçulmanos praticam a sua religião constitucionalmente. Não querem fazer nada contra a cultura portuguesa ou a religião portuguesa. E também nem todos são praticantes. Há 50 mil pessoas cá em Portugal, o número de praticantes é muito baixo”, assegurou.
Ao Polígrafo, Jayanti Dutta, investigadora do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) da Universidade de Lisboa, ofereceu mais alguns detalhes sobre o que foi verdadeiramente dito pelo líder desta comunidade, confirmando a narrativa por ele oferecida. “O que ele disse foi: ‘Roma não se fez em um dia. Inglaterra tem uma história de 200 anos, Roma tem mais, mas Portugal só tem três décadas’”, fazendo aqui referência, de facto, “ao tempo decorrido desde que as pessoas do Bangladesh começaram a vir para Portugal”, explicou a docente.
Segundo a investigadora, Rana Taslim Uddin referiu ainda, no seguimento desta afirmação, que existem já “entre 50 mil a 60 mil pessoas do Bangladesh em Portugal”, tendo acrescentado: “É uma comunidade grande. Estas pessoas trabalham, não mendigam. Assim, eles estão a ajudar a desenvolver a economia de Portugal.”
E se, prosseguiu o protagonista do discurso, “há 30 anos atrás os imigrantes do Bangladesh vendiam flores e lavavam carros nos sinais, agora já têm outras profissões”. O líder desta comunidade forneceu ainda um exemplo para sustentar esta tese, de acordo com a tradução fornecida ao Polígrafo por Jayanti Dutta: “São donos de restaurantes, comercializam carne halal, entre outras coisas, e, neste momento, há um grande número de condutores de Uber.”
Acerca do segmento da declaração de Rana Taslim Uddin que suscitou a polémica, a docente confirmou que o líder desta comunidade de imigrantes disse o seguinte, tal como se destaca na publicação analisada: “Vamos investir em todos os setores da economia, estamos por todo o país.” Porém, “nesta afirmação não há evidência clara de qualquer conotação de, por exemplo, [se pretender] invadir o país ou infiltrar-se na economia com segundas intenções”. Até porque o interlocutor “não falou de religião em nenhum momento”, durante essa afirmação. Pelo que consideramos, assim, que as afirmações do líder da Comunidade do Bangladesh em Lisboa estão a ser partilhadas de um modo descontextualizado nas redes sociais.
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Avaliação do Polígrafo: